O DIA EM QUE EU FUI DEUS

Crer em Deus, solicitar seu reino e seguir sua justiça basta. Crer em Deus é sentir que podemos sim, nós criaturas vivas, quem sabe também os minerais, termos sido feitos por um criador, cujo estágio evolutivo seja maior do que os seres que ele criou, condição necessária para o feito, e que esse criador, por amar suas criaturas, podendo ter toda condição de auxiliá-las, não as desaponta, as amparando sempre que solicitado. O amparo, sabe ele, só se faz necessário por ele ter dado a seus seres o livre arbítrio. E por não poder ele saber o que cada ser individualmente aspira, aspirar é diferente de precisar, contrariando o que muita gente imagina, por ser levado a imaginar, é necessário haver, por meio de oração, uma súplica para que as aspirações das criaturas sejam atendidas.

Quando menino eu brincava de criar planetas. Eu juntava barro de fontes diferentes, os amassava em meio a folhas de mato formando um globo, e depois os abandonava às intempéries em um ponto qualquer da grande área esburacada deserta, inteiramente nativa, que havia atrás da casa dos meus pais. De vez em quando eu ia até meus planetas os visitar. Eu ficava na esperança de ver alguma transformação ocorrer neles.

Certa vez, resolvi partir ao meio um dos globos de terra. Qual me surpreendi ao vir que larvas e moscas o habitavam, pequenas algas cresciam e a oxidação provocada por provavelmente bactérias também me chamavam a atenção. Somente bem depois que a minha infância passou é que vim a saber que nada extraordinário acontecera. Se a vida surge espontaneamente, como defendia Aristóteles, aquele monte de elementos da natureza fundido era a condição para tal.

Entretanto, eu não deixara de bancar o deus. Em posição evolutiva superior, em condições de pegar barro daqui e dali, juntar e colocar em um ambiente que serviu como uma incubadora, criei um lugar para larvas e plantas desfrutarem. Restava a elas conservar a harmonia para que o local durasse e fosse hospitaleiro. Aos seres que o populavam, seria interessante permanecer em bem estar, garantir o que precisavam e ser feliz. Cabia a eles entrar em acordo e dividir o espaço sem que fosse preciso disputá-lo. Sem modificá-lo para não esgotá-lo. Sem, portanto, provocar desequilíbrios ecológicos e desarmonia sócial por causa de ilusões e fetiches, quais são peculiares do progresso e da vida independente da natureza (ou do Criador).

O que me diferenciava nessa experiência do deus autêntico, que muitos de nós acredita ser o criador deste mundo, é que este sabia o que fazia e não pegou tudo pronto para apenas embolar e deixar num canto esperando para ver o que aconteceria. Não teve ele como contar com os recursos da geração espontânea. Talvez só não tenha tido ele que construir os espíritos que animam e dão independência para cada pedaço de pó reunido. Ou talvez ele tenha feito até isso. Só vamos saber quando em espírito voltarmos a viver, pois, por estarmos em nível de percepção mais elevado, teremos meios de conceber pensamentos fora dos nossos limites físicos. Quem sabe até teremos como verificar de que Deus é feito ou se algo de um nível ainda maior pode tê-lo feito. A única certeza que teremos é sobre sua magnanimidade para com os terráqueos. Possivelmente também sua eternidade.

Outra diferença entre mim e o deus judáico-cristão é que eu sou feito da mesma matéria que minhas criaturas. Por eu ser bem maior do que os planetas que fiz, eu podia ver de cima tudo o que acontecia na superfície dos meus bolos de terra. Minha onisciência não passava disso, eu não podia ver o interior das massas. Minhas criaturas podiam se esconder de mim. Mas, onipresente eu era: bastava eu tirar da minha frente os obstáculos que eu saberia o que acontecia onde quer que eu não enxergasse. Outra semelhança com Deus: eu podia destruir, quando eu bem entendesse, todos os mundos que criei e, por conseguinte, as criaturas. Portanto, com respeito ao que criei, eu também era onipotente.

Só que eu não faria isso, pois apeguei-me ao que criei e quis vê-lo progredir. Eu só destruiria meu mundo ou os seres vivos que gerei para viver nele, caso estes estivessem soberbos, avarentos, gulosos, invejosos, sedentos por poder e, burlando as regras que deixei para serem seguidas como um manual de conduta para a preservação da vida no globo, estivessem paulatinamente destruindo o planeta e me causando muito desgosto e arrependimentos. Nisso, aliás, eu não me diferia de Deus, pois este, conforme a Bíblia, também se enfureceu, arrependeu-se e quis afogar todos os seres, inclusive a criação que ele mais amou fazer: o homem. Não sei se faria o que Deus fez, que foi sair em busca de um homem que fosse perfeito para, por fim, poupá-lo, junto à sua família, da tragédia e entregar-lhe a missão de proteger um casal de cada espécie que fiz, para dar continuidade ao que comecei, porque não sei se eu teria entre meus reles um ser bastante inteligente, semelhante a mim e capaz de compreender e arcar com as minhas reivindicações. Se eu encontrasse algo, aí sim, eu lhe ensinaria a construir um envoltório que fosse capaz de isolar da minha ira aqueles que eu queisesse que fossem protegidos.

De certa forma, por ser cíclica, a vida na Terra também é eterna. Apenas é transitória. Tudo se transforma o tempo todo, indo compor outras coisas e fazer parte de outras que já estão compostas. Até os prédios para serem mantidos no lugar precisam que alguém lhes façam reformas. Em se tratando de teorias como a da reencarnação, que diz que após a morte vem uma vida em espírito para depois voltar-se à vida carnal, podemos visualizar um ciclo que vá gerar a ideia de continuidade, de eternidade. Apenas não dá para se viver novamente com o mesmo aspecto físico ou no mesmo ponto geográfico, sendo que esta última conclusão ainda pode ser mudada. Isso porque o ser humano ainda aprende a manusear seu corpo e poderá um dia ser capaz de resgatar no cérebro vigente memórias de épocas vividas não só pela experiência atual, mas também por outras experiêmcias carnais.

Há quem diga que para isso precisamos de mais desenvolvimento biológico, que pode vir por meio de cruzamentos entre raças ou por meio de artifícios tecnológicos criados pelo homem. Como a eugenia por exemplo. Para se aspirar tanto, é imperativo que o homem modifique seu modo de viver, que é voltado para a satisfação material na Terra, para a continuidade do status quo para os descendentes e para a sobrevivência no plano terrestre pelo máximo de tempo possível. Se dignando o homem, para o cumprimento dos três objetivos, a se dar o luxo de se lançar em guerras, disputas por espaços geográficos e por afirmação de egos e de poder, o que leva à desarmonia, destruições diversas e atraso na busca pelo conhecimento das potencialidades humanas. Isso devido ao grande período dedicado à futilidades.

Concluindo, ao povo dos meus planetas, dei as coisas do meu reino. Aquilo que não foi providenciado originalmente para esse povo desfrutar, e que era suficiente para suportar a sustentação e a felicidade para todos, não era próprio do meu reino. E, implicitamente, determinei a justiça para ser seguida. Seguindo aquela justiça, aquele povo viveria em paz. E vivendo em paz, tudo o mais que se quisesse ter seria acrescentado.

Resta saber se quem já tinha o necessário haveria de imaginar querer algo mais. Só se fosse algo que não era do meu reino. Algo que o livre arbítrio daquela população fizesse surgir. Algo comparado com as invenções do homem, que são fontes de infelicidade. Se meus povos evoluíssem criando coisas que modificassem a natureza ou eventos que não os que teriam que praticar em seu cotidiano, eu, o deus deles, não poderia arcar com a providência ou com a responsabilidade de consertar as consequências. Eu estaria, com isso, mudando o que fiz. E por estar num nível mais amplo de conhecimento, eu, para eles, não seria perfeito se eu permitisse que mudassem o mundo justo e perfeito que construí e quando notificassem os erros eu fosse correndo o reconstruir ou o voltar ao normal. Os pais amam seus filhos, mas quem os educa verdadeiramente são os erros que eles cometem.

Voltando a refletir sobre o mundo judáico-cristão, Deus teria determinado que o homem é para a mulher, mas não que ambos devessem costituir família, ou que sexo devesse ser feito entre opostos e que somente por amor ou para procriação é que seria praticado; que o homem vivesse conjugal e monogamicamente; que ele devesse se casar e que tal estado civil é que permitiria o ato sexual. Muitas dessas coisas foram interpretadas pelos membros mais influentes das sociedades e repassadas como verdades absolutas e acabaram por desvirtuar a verdade.

Se o homem inventasse meios de comunicação, escritas, transportes, moradias, música e outros entretenimentos, modelos sociais, ele seria o inteiro responsável por tudo que suas invenções o trouxesse. Deus não teria obrigação de corrigir e nem teria que ser responsabilizado.

Muito do que dizem em nome de Deus o torna um ente injusto. Teria ele, por exemplo, que garantir que houvesse pares para todos os seres, se fosse ele o responsável por dizer que cada pessoa deva ter uma companhia. Mulheres e homens, heteros e homossexuais, caso estes últimos ele faz nascer com tal variação de sexualidade, suficientes para que todo mundo ficasse acompanhado. As razões pelas quais os homens sofrem, coisas abstratas e concretas, Deus não tem nada a ver com elas. Foram instituídas pelo próprio homem.

Falta de parceiro, falta de sexo, opção sexual, castidade, falta de dinheiro, falta de posses, falta de bens, de status, de sucesso pessoal, de comida, de participação social, de presença em eventos, de conquistas de agremiações que simpatiza, de beleza, a cor que tem, a estatura que tem, por ser portador de doenças ou de deficiências físicas, excesso de devoção, por culto à moda, por ter caído em vícios, por trabalhar com o que não gosta, por ter que trabalhar, por não ser reconhecido, por ganhar salário injusto, por estar desempregado, for falta de afirmação, por causa de desigualdade, por pobreza. Todos esses sofrimentos o homem criou por si quando criou seus modelos sociais. E, se observarmos minha experiência como deus, se minhas crias criassem inteligência e caíssem nessa perdição, tudo o que elas teriam que fazer para se livrar dela seria entrar em um acordo entre si e voltar a viver do modo original, quando tudo tinham e tudo bastava. E tudo deus dava, era só pedir.

Se alguém pede para Deus um pão, ele saberá que Deus o deu quando vir à mesa um pão. Mas se pede coragem ou paciência, se Deus o der ele não saberá se Deus o deu. Por isso, para essas virtudes, Deus dá a oportunidade. Oportunidade para ser paciente, oportunidade para ser corajoso, oportunidade para ser amoroso. Portanto, não desperdice os desafios, pois é através deles que podemos perceber tudo o que Deus nos dá.

*Não é um texto religioso e sim filosófico.