A clareza na Bíblia
Hoje, ao escrever e publicar o texto “Por quê?”, eu fiquei pensativo. Eu tenho o hábito de pensar antes e depois do que eu escrevo. Hoje, porém, foi um trecho bíblico que me fez pensar antes e depois de publicá-lo. Na Edição Pastoral da Bíblia Sagrada, capítulo 17 do Evangelho escrito por Lucas, no versículo 10, está: “Assim também vocês: quando tiverem cumprido tudo o que lhes mandarem fazer, digam: ‘Somos empregados inúteis; fizemos o que devíamos fazer’”.
Alguém que não participe de igreja, nem tenha conhecimentos suficientes para entender no momento, poderá questionar: “É inútil quem faz o que deve fazer? Quando alguém faz o que devia ser feito, esse alguém merece ser chamado de inútil?” Se formos interpretar literalmente, de modo fundamentalista, ou seja, ao pé da letra, essa interpretação é possível. Entretanto, será que Jesus quis dizer isso? Vamos a outra versão da Bíblia!
O “Novo Testamento: tradução da CNBB” registra o final do versículo 10, que é o meu foco neste texto, com estas palavras: “Somos simples servos; fizemos o que devíamos fazer”. O questionamento continua. A “Edição de Luxo”, da DCL, registra quase as mesmas palavras: “Somos uns servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer”. O questionamento permanece possível. A “Tradução Ecumênica”, outra versão que eu tenho em casa (um presente do padre Jorge Miranda, em novembro de 2005), registra esse trecho com estas palavras: “Somos uns servos quaisquer. Não fizemos mais do que devíamos fazer”. Nesta tradução da Bíblia, a elaboração desse trecho elimina o questionamento possível, pois ela mostra que inútil é quem faz somente o que deve fazer, sem ir além do que deve. É certo fazer o que se deve, mas é importante fazer mais; ir além.
Huberto Rohden, educador brasileiro, místico e filósofo (já falecido), entre vários livros que escreveu, deixou um com este título: “A Mensagem Viva do Cristo: Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João”. Neste livro com os quatro Evangelhos, em Lucas, no capítulo 17, final do versículo 10, está assim: “Somos servos inúteis, fizemos apenas o que era da nossa obrigação”. Aqui, a mensagem de Cristo já está muito clara. A mensagem é a mesma das outras versões, mas a clareza é visível. Não há espaço para dizer que é errado fazer o que se deve fazer, mas a ênfase é nisto: Jesus diz que seus discípulos devem se considerar inúteis quando cumprem APENAS a sua obrigação.
Quem não faz mais do que deve não está fazendo nada extraordinário. Se um esposo ou pai, por exemplo, não deixa seus filhos passarem fome, não os deixa sem estudar, não maltrata a sua esposa, não briga com ela, não vive brigando com seus filhos, mas não dá carinho, amor e atenção à sua família, não dialoga, não escuta, não está presente em casa, não é amoroso, esse esposo e pai não está fazendo nada extraordinário, nada digno de admiração. A família merece ser respeitada; ninguém da família merece passar fome; os filhos têm o direito e dever de estudar; as brigas devem ser evitadas através do diálogo. No entanto, só isso não basta. É preciso ir além; é bonito ir além.
Não estou destacando nem insinuando superioridade de algumas versões da Bíblia e inferioridade de outras, pois a mensagem é a mesma. O que muda é a clareza das versões. A ausência da palavra APENAS ou de expressões sinônimas em algumas versões da Bíblia pode provocar a dúvida em muitas pessoas e muitas polêmicas também. É isso o que eu destaco. Se eu digo: sou inútil, pois fiz o que devia fazer, alguém poderá me questionar: “É inútil fazer o que se deve?” Mas, se eu digo: “Sou inútil, pois fiz apenas o que devia fazer”, não há mais essa possibilidade de questionamento.
No entanto, as diferenças não devem separar as pessoas, desde que essas diferenças sejam boas. São as diferenças que nos completam. Um homem, por exemplo, é muito diferente de uma mulher, apesar de terem semelhanças. É isso que os atrai.