CRISTOLOGIA LATINO-AMERICANA E TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
Um testemunho, antes de falar do tema proposto: Algumas vezes, sinto-me uma avis rara no catolicismo: fui liberto da prisão da introversão e da timidez que me consumiam por dentro quando tinha uns doze ou treze anos. Contrariamente à maioria, fugia dos colegas, era um “perna-de-pau”, “um grosso” e sentia-me excluído daquele mundo esportivo que todos apreciavam. Preferia, então, as atividades individuais que podia exercer no meu canto, sozinho. Eu e Deus. Quando ia ao cinema, naquela pequena cidade interiorana, sentia-me invadido quando algum colega de mim de aproximava para puxar conversa. Normalmente, eu era péssima companhia.
Pra encurtar a história: Certo dia uma garota me convidou para um convescote, um passeio numa chácara que um grupo de jovens iria fazer. Era o final do ano 1965. Não sei por qual razão, provavelmente, por causa da beleza e simpatia de quem convidara, aceitei. Aceitando, gostei. Gostando, permaneci no grupo. Permanecendo no grupo, entrei para o movimento chamado CJC – Comunidade de Jovens Cristãos. Fui guindado depois de alguns meses a fazer parte da coordenação geral. Minha vida, depois disso, busca ser um compromisso em defesa dos que não têm vez e voz. De espírito cejocista até hoje sou. E a CJC tinha uma direção espiritual avançada. Um jovem padre de ideias avançadas levava o grupo a refletir sobre toda a problemática social, ocupava-se de mostrar um Cristo ocupado com os pobres e pecadores, levava-nos a práticas de criação de comunidades com música e reflexões bíblicas, construção de casas em regime de mutirão, hortas comunitárias e a protestar contra algumas decisões políticas que contrariavam o interesse dos pequenos que não tinham voz. Sempre me identifiquei e me senti bem com toda essa vivência e militância.
Da pequena cidade interiorana aos dezenove anos transferi-me com pequena mala, sem cuia, à cidade grande: São Paulo. Mundo diferente: grande, cinza e frio. Empreguei-me, estudei, casei, passei em concurso público concorridíssimo e, para não viver da corrupção, recusei-me a tomar posse; conheci a Renovação Carismática Católica e dela participei e participo, sempre tentando levar a mensagem da conscientização política. Hoje, estudando teologia na PUC, muitas vezes, sinto-me “volver a los 17”. Procuro da RCC e da TdL extrair o melhor, desprezando os exageros e os arroubos de ambos, fixando-me e acreditando sempre que a união hipostática válida para Jesus Cristo possa ser, mutatis mutandis, aplicada aos dois movimentos cada qual com seu valor próprio provindo da única fonte salvífica que se conhece: O próprio.
Teologia da Libertação na América Latina lembra alguns nomes e situações: Comunidades Eclesiais de Base – CEB, Medellin, lutas sociais, justiça social, opressores, oprimidos, D. Hélder Câmara, D. Paulo Evaristo Arns, Leonardo Boff, D. Aloísio, D. Luciano, Jon Sobrino, Gustavo Gutierrez dentre outros, CNBB, Ditadura Militar, Paulo Freire e a pedagogia do oprimido, enfim, cada um deles pesquisado profundamente terá a sua importância histórica em relação ao tema. Em face da exiguidade do espaço não inclui a participação de outros segmentos do cristianismo que também aderiram ao pensamento da libertação.
Teologia da Libertação é um movimento de pensamento político e religioso católico nascido nos anos setentas, no rescaldo do concílio Vaticano II (1962-1965) e da Conferência de Medellin (Colômbia, 1968). Nesta, representando os mais de 600 bispos católicos, em torno de 150 bispos reunidos empreenderam a tarefa de aplicar as conclusões daquele concílio na América Latina. Houve extrapolação do que pretendeu o Concílio é o registro da história. Ratificada pelo que houve, na próxima conferência do episcopado, na cidade mexicana de Puebla (1979) envolvendo o enviado do papa, D. Trujillo e a mensagem “direcionadora” que trazia e não foi levada adiante pela tragicômica interferência da mídia, gerando consequentemente o protagonismo de D. Luciano Mendes de Almeida.
A realidade das lutas sociais e o compromisso dos cristãos em prol da justiça compreendem o “lugar teológico” e a base da elaboração do pensamento e do discurso da TdL. América Latina é inspirador nesse sentido. Pode ser que aos europeus, esta linguagem se apresente muito estranha e, até incompreensível. Compreensível estranheza. Em 1955 os bispos de todo o continente, na 1.ª reunião plenária do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano), no Rio de Janeiro, extrapolaram o tema proposto de reação à difusão do protestantismo, comunismo e secularismo. Reconheceram os problemas sociais do continente. Havia na época um discurso católico de denúncia da injustiça social como “um grande pecado contra Cristo”, em aliança com uma hierarquia eclesiástica progressista e uma elite de estudantes universitários que se empenharam num trabalho de campo com os pobres. Em destaque um jovem professor, Paulo Freire, fundador da Pedagogia da Libertação. Naquela época registrou-se a eclosão da revolução cubana de Fidel Castro e das guerrilhas rurais na Venezuela, Guatemala e Peru, contribuindo para criar o cenário de fundo à temática social no discurso da Igreja.
Tenho comigo que um aspecto altamente positivo é o trabalho de cidadania na conscientização do “Eu” social e político para realizar e reivindicar melhorias e aplicação dos direitos sociais, direitos estes que não podem, simplesmente, permanecerem como palavras bonitas em constituições bem escritas, mas mal aplicadas, como é o que ocorre em nossa “pátria amada, salve, salve, gigante pela própria natureza”. E também, sempre é bom mencionar, em países vizinhos de língua espanhola, que padecem de realidade similar.
Os documentos de Medellin, pela novidade da linguagem e do enfoque pastoral servem ao clero e aos ativistas leigos a Carta Magna da Teologia da Libertação. Ao falar da prioridade do carisma sobre a instituição, Leonardo Boff aplicava o método das ciências sociais à análise da Igreja. Segundo os que o detratam, introduziu a análise marxista ao substituir a filosofia pelas ciências sociais, no seio da Igreja. Tal posicionamento gerou controvérsias, considerando-se alguns princípios incorporados ao discurso oficial da Igreja. Priorização do carisma sobre a Igreja que Boff propunha foi um deus-nos-acuda! Mesmo assim, Boff permaneceu fiel às suas convicções, suportando o ônus de pensar diferente e externar o que pensa de forma límpida, clara e corajosa.
Os católicos latino-americanos passaram a apresentar uma atitude mais crítica em relação à Igreja e ao modelo de sociedade vigente, muitos vivendo um processo de radicalização política e social. Tudo isso assustou um pouco o catolicismo tradicional que jamais experimentara linguagem tão impregnada de “socialismos” (no sentido do adjetivo social empregado à exaustão para diversos substantivos: luta, justiça, interesse).
Clodovis Boff, escreveu: A Teologia da Libertação (...) devido à sua ambiguidade epistemológica, acabou se desencaminhando: colocou os pobres em lugar de Cristo. Dessa inversão de fundo resultou um segundo equívoco: instrumentalização da fé "para" a libertação. Erros fatais, por comprometerem os bons frutos desta oportuna teologia. Um duro golpe desferido por um dos teólogos da TdL. A Congregação para a Doutrina da Fé condenou os principais formuladores dessa Teologia nos anos oitentas. Outro golpe fortíssimo contra a TdL. Esta como todo bom propósito permanece viva no espírito, coração e atitude de muitos. Muitas vezes, no silêncio para não escandalizar, aceso para libertar.
Deus não é solidão, é comunhão, é solicitude, é comunidade em oração e ação!