As harmonias do Pai-Nosso
AS HARMONIAS DO PAI NOSSO
A oração do Pai Nosso, no dizer de Santo Afonso de Ligório, o “dou-tor da oração”, é a síntese de toda a revelação cristã. Contido nos evange-lhos Mt e Lc, ele representa uma das mais antigas formas cristãs de co-municação com Deus, quando Jesus ensina seus discípulos e, por exten-são, toda a Igreja, a chamar seu pai de “Nosso Pai”.
Tido como oração de libertação integral (Boff), conjunto harmônico (Sciadini), diálogo filial (Mesters), luz (Larrañaga), o Pai Nosso enquanto revela a pequenez humana e a grandeza de Deus, desvela nossa disponi-bilidade e a generosidade do Criador, numa simbiose da terra com o céu, do humano com o divino, do finito com o sobrenatural.
Se formos olhar bem, com os olhos do coração e do espírito ungido pelo Entendimento, com os quais se vê o essencial, veremos que essa oração contém uma doxologia e sete pedidos. A doxologia de invocação (hino de glória) está na abertura: “Pai Nosso, que estás no céu...”. Os sete pedidos, nós poderíamos dividir em dois grupos; três endereçados às ne-cessidades espirituais e quatro às materiais. Três é o número divino da Trindade e quatro é o número humano dos elementos físicos (terra, água, fogo e ar) e a soma, sete, retrata a perfeição.
Nos primeiros pedidos, na ordem sobrenatural temos “Santificado seja o teu nome”, “...venha o teu Reino” (e que venha!) “... assim na terra como no céu”. A segunda parte refere-se às necessidades de nossa vida. Se tivermos fé na realização do primeiro conjunto de pedidos, o segundo torna-se uma conseqüência natural: “o pão nosso (cotidiano) dá-nos ho-je”,”...perdoa nossas dívidas (pecados, ofensas, omissões) assim como nós costumamos perdoar”, “... não nos deixa cair em tentação (naquelas que lutamos por evitar)” e “... livra-nos de todos os males”. Os católicos encer-ram com o “amém” que, derivado do ‘emmet, hebraico, quer dizer, eu creio; é verdade; por certo!
O Catecismo da Igreja Católica classifica a oração do Pai Nosso como a oração que está no centro das Escrituras, “a Oração do Senhor” e a oração da Igreja. Trata-se da oração cristã por excelência. E, Santo Agostinho explica que todas as orações da Bíblia, inclusive os Salmos, se convergem nos pedidos do Pai Nosso. “Percorrei todas as orações que se encontram nas Escrituras, e eu não creio que possais encontrar nelas algo que não esteja incluído na oração do Senhor (Pai Nosso)”. Esta ora-ção deve ser tida como principal modelo de oração cristã, com a qual se inicia todas as demais orações. Todavia, não deve ser recitada como uma fórmula repetida “mecanicamente”.
Eu fico até meio triste quando vejo certas comunidades orando o Pai-Nosso. Para muitos o gesto é mais importante que o conteúdo da oração. Às vezes a fórmula se torna mais significativa que a interioriza-ção, deturpando tudo. Quando se anuncia o Pai-Nosso, seja numa reuni-ão, retiro ou celebração, começa aquele alvoroço de pessoas se deslocan-do, para se darem as mãos ocupando toda a sala ou a totalidade da igre-ja. Até aí tudo bem. O gesto significa um dar-se as mãos na vida, um ato de desinstalar-se, ir ao encontro do outro.
Voltando àquela coerência de que fala George Bernanos († 1948), é de perguntarmos: será que esses gestos são sinceros? Às vezes muitas pessoas que estendem as mãos durante a oração do Pai-Nosso se esque-cem de dar-se as mãos na vida. Muitos que trocam o “abraço da paz” são semeadores de discórdia e de confronto, distantes daqueles bem-aventurados. E a lição de Cristo é bem diferente... E diz o Senhor:
Este povo se aproxima de mim com sua boca, e com seus lábios
me glorifica, enquanto que o seu coração está longe de mim e
me presta culto segundo ritos e ensinamentos humanos (Is
29,13).
O Pai-Nosso, como a oração básica do cristão, é a prova por exce-lência de nossa conversão e coerência, pois não se pode dizer uma coisa com os lábios e dizer e fazer outra com nossa vida. Assim como o Sermão da Montanha é a síntese do evangelho de Jesus, a oração do Pai-Nosso se torna uma super-tese do evangelho de Jesus.
Às vezes se torna até uma heresia dizer Pai-Nosso quando nos acostumamos a personalizar todas as coisas sob o epíteto egoísta do meu, sem dar espaços aos demais. Aí se ressalta o enérgico brado de Jesus: Hipócritas! Esse egoísta meu às vezes vai até longe demais, representado por sistemas sociais injustos, que privilegiam uma minoria rica e poderosa, marginalizando pecaminosamente todo o povo.
Jesus alerta que suas palavras são mais perenes que os céus e a terra (cf. Mt 13,31) e por isto desperta em nós um inquietação de viver o que ele ensinou. As exigências das Bem-aventuranças e o compromisso do Pai-Nosso não estão ali por acaso. Estão aí para se tornarem a base para se viver, a partir daqui o Reino.
Se repararmos bem o Pai-Nosso, veremos que ele tem muito a ver com as grandes questões da existência pessoal e social de todos os ho-mens em todos os tempos. O Pai-Nosso é rico na dimensão comunitária, pois nos remete às grandezas comuns e disponíveis igualmente a todos: o Pai-Nosso, o Pão-Nosso, o louvor conjunto de todos os filhos ao Pai e o exercício do perdão.
Os irmãos protestantes e pentecostais usam a doxologia luterana: “Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre”. Nos eixos pão-e-perdão flui a essência do cristianismo. Só podemos dizer “Pai Nosso” se temos a generosidade de fazer circular o “pão nosso” (e não só o meu). Só tem o direito de chamar a Deus de Pai quem tem a coragem de chamar o próximo de irmão, partilhando fraternalmente, com ele. No terreno teológico, a oração gira entre dois eixos: a espiritualidade e a solidariedade, onde nenhum desses valores pode ocorrer divorciado do outro. Quem crê partilha; quem reparte os bens, o faz pela inspiração do Espírito. É impossível dissociar o desejo espiritual com a ação material.
Perdoar é um ato divino que Deus nos inspira. Seremos perdoados assim como costumamos perdoar, ou seja, quem não souber perdoar, talvez não seja perdoado. Outra exigência que vem embutida na essência do “Pai Nosso” é a partilha do pão. Quem acumula, enriquece ilicitamen-te e não tem olhos para a miséria dos outros, a esse deveria ser vetada a oração ao Pai que o Filho nos ensinou.
É pena constatar que muitos sabem rezar o Pai Nosso, mas nem todos conseguem vivê-lo em plenitude. Para uns é harmonia e perfeição, para outros, uma incoerência que pode se converter em uma ameaça.
A oração, assim vivida, se torna um contato pessoal e direto com Cristo, com o Pai e com seu Santo Espírito, através da palavra simples porém sincera, que às vezes nem chega aos lábios, mas brota de um vi-goroso gesto de fé transformadora, oriundo do coração e que vai direta-mente ao coração de Deus. Neste ponto, a oração atinge seu principal objetivo e seu mais rico significado: ser o conduto, o canal de comunicação com homem com seu Deus Trinitário, estabelecendo o diálogo, a sintonia permanente entre criatura e Criador, com vista à conclusão da obra, estabelecimento eficaz do projeto de implantação do Reino definitivo.