Da vontade de se isolar

É bastante meu conhecido o sentimento de inadequação que leva uma pessoa a se isolar das demais e viver de forma solitária. Ele surgiu quando tomei consciência da minha própria individualidade e nela encontrei significativas diferenças em comparação com a maioria das pessoas. Diante dessas diferenças, percebi que não era compreendido pelos outros e que, para ser aceito, muitas vezes me obrigava a fazer o que não me agradava. Nada mais natural, então, que desejasse sair da companhia de quem pouco tinha a me oferecer e buscasse refúgio no isolamento, única possibilidade de me sentir à vontade. Julgando-me capaz de viver sem precisar do auxílio que não encontrei, e recusando-me a oferecer a eles o que eu também não recebia, deixei evidente todo o meu despeito. E a partir de então me julguei livre para fazer apenas aquilo que eu sentia vontade de fazer. No meu espaço, tornei-me pleno e autossuficiente – um projeto de deus.

Não é preciso ir muito longe para compreender que essa minha visão de mim mesmo se tornou inconciliável com a prática cristã, na qual sou instado a agir em favor do outro. E foi especialmente doloroso constatar que o meu sentimento de inadequação e o desejo de isolamento permaneciam mesmo em meio a outros cristãos. Também entre eles eu não era compreendido, também deles me afastei. E apenas recentemente é que vislumbrei a possibilidade de me reconciliar – não riam – com o resto da humanidade.

Ora, é preciso admitir que nenhuma diferenciação entre duas pessoas pode ser maior do que uma delas não ser totalmente humana. E o que os Evangelhos anunciam é justamente que houve entre nós uma pessoa com natureza divina, como nenhuma outra em tempo algum. Não por acaso, pouco foi compreendida. O que chama a atenção é que essa pessoa abriu mão das suas prerrogativas divinas para se fazer tão humana quanto qualquer um de nós. Era o Deus vivo que, ao se encarnar, aniquilou – é essa a expressão bíblica – a si mesmo para se tornar semelhante aos homens. Não sendo homem como nós, ele se fez homem – por amor de nós. Se acredito que esta palavra é verdadeira, tiro dela preciosos ensinamentos para lidar com o problema do meu isolamento.

De início, preciso reconhecer: Deus tinha mais motivos para se isolar dos homens do que eu. E ele continuaria sendo exatamente o mesmo se assim agisse (afinal, não depende da humanidade para coisa alguma). Tem em si mesmo tudo o que lhe é necessário – exatamente como eu me sinto ao me isolar. Só que em mim isso não passa de delírio, pois eu nunca deixei de precisar do auxílio de outras pessoas. Se o Deus que acredito onipotente foi capaz de abrir mão da sua própria natureza para se aproximar daqueles que não se igualam a ele, com muito mais razão deveria eu fazer o mesmo, homem mortal que sou e cuja diferenciação se resume a questões de temperamento.

Mas é preciso um bom motivo para alguém aniquilar a si mesmo em favor do outro. E nenhum seria mais forte do que o amor. É somente através dele que consigo explicar o impressionante gesto de desprendimento divino, capaz de nos constranger. Como nos amava, esvaziou-se de si mesmo e sujeitou-se a experimentar a condição humana, com todo o sofrimento que isso representa, não porque convinha a ele, mas a nós, que com ele nos reconciliaríamos. É precisamente o amor que resume o mandamento cristão e o qual somos convocados a repetir. Sei, portanto, que é através dele – vínculo perfeito – que posso vencer o sentimento de inadequação que leva ao isolamento.

Surge um novo problema: se aspiro ser deus, como resultado do meu afastamento das pessoas, é pouco provável que eu tenha algum amor pela condição humana em geral – ao contrário, a tendência é que eu a despreze. Para que eu ame alguém, é preciso que eu desça do trono que, consciente ou não, erigi para mim e busque me aproximar daqueles a quem, de início, considerei tão diferentes. Não é um movimento fácil – é até bem doloroso, mas preciso acreditar que isso convém também a mim. Como não sou deus e não tenho a vida mim, é apenas através da mediação com o outro que eu consigo existir. É através dele que consigo formar a minha identidade e reconhecer essas mesmas diferenças de que me orgulho. E até mesmo a minha autoestima só existe em consequência do meu contato com ele. Abrir-me ao outro não é, portanto, apenas um gesto de generosidade ou sacrifício da minha parte: eu preciso dessa convivência.

Tanto mais que é através dela que poderei afinar, levar adiante e concretizar os projetos que nascem da minha visão diferenciada de mundo. Isolados, eles não fazem nenhum sentido. Ao vivenciar o amor, eu estarei em condições de colocá-los a serviço do outro. Há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. Preciso entender que os outros não apenas são membros do mesmo corpo que eu, mas também que nós todos somos membros uns dos outros. Só então desistirei de me salvar sozinho.

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Referências: Filipenses 2:5-8, I Coríntios 12:6, Colossenses 3:14, Romanos 12:5, todo o Evangelho, além de artigos de Hélio Pellegrino e um pouco de Sartre.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 27/10/2014
Reeditado em 27/10/2014
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