O SER HUMANO EM CRISTO: um texto a partir da declaração conjunta sobre a doutrina da justificação
O conceito de graça
A graça significa que Deus se abaixou, condescendeu com o ser humano; que o ser humano transcendeu até Deus.
Esse conceito nos remonta aos versos do Ofício de Nossa Senhora, que o povo impregnado de devoção e piedade, canta ajoelhado.
Para que o homem suba às sumas alturas
Desce Deus dos Céus para as Criaturas.
Isso significa que a fronteira entre o divino e o humano se torna permeável através de Jesus Cristo, por isso, a noção de graça é essencialmente cristã.
A graça incriada
O ser humano pecador é agraciado para se tornar santo.
O povo do Antigo Testamento era tido como um povo de cabeça dura e pecador, mas esse povo faz uma experiência amorosa pessoal e coletiva com um Deus que se entrega ao ser humano. “Eu serei para vós Deus, e vós sereis para mim um povo” (Lv 26,12-13).
No Novo Testamento Deus se entrega na pessoa do seu próprio Filho. A história da paixão é história de uma entrega. “O Filho do homem será entregue” (Mt 26,2).
Os que acolhem a Cristo na fé atingem uma vital comunhão com ele a ponto de dizer “não vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Aqui a autodoação chega a seu ponto culminante. Se antes havia sido invadido pelo pecado, aqui o ser humano é inebriado pela graça.
Teologia da graça incriada
A teologia tradicional diz que a habitação trinitária no ser humano se plasma concretamente numa tríplice forma de presença.
a) Presença operativa: Deus está ali onde atua.
b) Presença intencional: Deus está no justo como o conhecido. O amado no amante.
c) Presença quase formal: aqui a habitação consiste na atuação quase formal do ser humano por Deus.
A teologia do Vaticano II desprende desses esquemas e recupera a impressão personalista (cristológico-trinitária) característica da revelação no Novo Testamento.
Exemplos:
“A natureza assumida serve ao verbo divino como instrumento vivo de salvação” (LG 8,1; SC 5,1).
“O homem cristão, conformado à imagem do Filho, (...) se restaura internamente do Espírito. (...) Por meio desse Espírito (...) se restaura internamente todo o homem” (GS 22,4).
“Por Cristo, a Palavra feita carne, e no Espírito Santo, podem os homens chegar até o Pai e participar da natureza divina” (DV2).
Graça criada: quem é amado por Deus pode amar a Deus.
A Escritura, a patrística e a teologia medieval ensinam que no justificado registra-se uma real mudança interior, uma autêntica transformação no seu modo de ser e de agir.
O Concílio de Trento reagindo contra os reformadores diz que o homem não só se chama, mas é verdadeiramente justo; e isto “não com a justiça com que Deus é justo, mas com a que nos torna justo” (DS 1529 = 799).
Na linguagem do Concílio Vaticano II – o justo se chama justo assim porque o é; tem justiça e atos próprios. Nele emerge a nova vida que a iniciativa salvífica divina lhe conferiu.
A existência das graças atuais
Segundo a Escritura é preciso manter a prioridade absoluta de Deus para a salvação do homem e por outro lado, ela reconhece a real liberdade humana diante da iniciativa de Deus, capaz de frustrar a salvífica oferta divina. Sendo assim a teologia se vê confrontada de imediato com duas questões graves: a) Como explicar que a graça suficiente dê uma capacidade para operar o bem? (DS 2001 = D 1092). b) Como dar a razão da liberdade humana sob a graça eficaz, com a qual “o livre-arbítrio não desaparece, mas se liberta”? (DS 248 = D 141; cf. DS 1525 = D 797: o pecador “coopera e consente livremente” nessa graça eficaz.
Graça e liberdade
Existem dois posicionamentos clássicos que tratam da questão: a) Predeterminação física: o concurso divino a todo ato humano é anterior a tal ato. b) Concurso simultâneo: a causalidade divina não age sobre a casualidade criada. Mas, A.D Sertillanges nos apontou uma terceira via. A graça (a ação de Deus) não anula a liberdade (ação do homem).
Graça e realização pessoal
A presença interpelante de Deus (a graça) nos fascina e nos atrai. Vou para Deus não arrastado, mas atraído (Jo 6,44) por seu amor.
A realização do ser humano como pessoa consiste na autodoação de Deus como graça.
Doutrina da graça e diálogo ecumênico
A justificação é uma renovação interior do ser humano, ao qual se infunde uma nova vida, que o habilita a ser e agir de modo qualitativamente distinto de como era e agia na precedente situação de pecado.
Os anglicanos e católicos estão de acordo nos aspectos essenciais da doutrina da salvação e isso nos aponta para uma reconciliação entre nós.