REFLEXOS HISTÓRICOS DE ONTEM, NA LITURGIA DE HOJE
Quando estudo a história ou até mesmo quando me deparo com ela no meu cotidiano, percebo que ela pode ser comparada com uma onda do mar. Essa imagem vem em mente porque ao contemplar uma onda que se quebra na praia, ela não esbarra em um determinado limite de maneira fixa e rígida, mas desliza-se como que lambendo a areia até perder suas forças.
Na história também é assim. Os decretos podem orientar uma nova fase ou um novo ciclo, mas eles não podem mudar de repente aquilo que já estava assimilado no imaginário simbólico de um povo. A história se desliza como uma onda, não há cortes históricos assim tão imediatos.
O que acabo de afirmar vale também para as reformas do Concílio Vaticano II, mais precisamente da Constituição “Sacrosanctum Concilium” sobre a Sagrada Liturgia - que não é somente um resultado da inspiração dos Padres Conciliares, mas também do trabalho do “movimento litúrgico clássico do século XX”, que dispunha de um amplo fundamento histórico, teológico, pastoral e pessoal que serviu de base para orientar a reforma litúrgica.
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II vai trazer à tona o essencial da liturgia que é o Mistério Pascal de Cristo celebrado em comunidade. Mas para que isso pudesse aparecer na sua pureza absoluta era preciso limpar toda “poeira” medieval e pós-tridentina que se foi acumulando ao longo da história sobre as expressões celebrativas próprias do rito romano e que se transformaram num complicadíssimo “ninho” de individualismo religioso egocêntrico e de horizontes limitados.
Três anos após o Concílio a II Conferência do Episcopado Latino-Americano, reunida em Medellín (na Colômbia) em 1968 faz uma releitura da Sacrosanctum Concilium no concreto contexto social e eclesial do Continente e constata em linhas gerais que houve mudanças nos ritos, mas não na mentalidade, com o perigo de cair no neo-ritualismo.
Já a III Conferência do Celam realizada em Puebla (México) em 1979 reconhece que a renovação litúrgica na América Latina está dando passos positivos pelo fato de se estar novamente encontrando a posição real da liturgia na missão da Igreja, mas também reconhece que não se tem atribuído à pastoral litúrgica a prioridade que lhe cabe. Falta formação litúrgica para o clero e para os leigos e leigas.
É notório que à luz da Sacrosanctum Concilium, muito se tem avançado em matéria de liturgia na América Latina em especial aqui no Brasil como podemos constatar nos documentos de Medellín e de Puebla. Mas, de lá para cá percebemos que o visual e o conteúdo de nossas ações litúrgicas no momento atual estão “empoeiradas” de saudades medievais e pós-trindentinas, com raras exceções.
Visivelmente temos aqui no Brasil dois modelos de celebrações litúrgicas as quais se distanciam em muito das orientações da Sacrosanctum Concilium.
Primeiro as celebrações ritualistas: são ações litúrgicas presididas por bispos, presbíteros ou ministros da Palavra que cumprem a risca o rito, mas dissociadas do contexto da tradição, da teologia, da espiritualidade e da vida. O que vale é cumprir o ritual quase sem criatividade, espontaneidade e necessidade de inculturação. A assembleia assiste passivamente, desconsiderando assim, o Concílio que enfatiza a participação ativa na liturgia como um direito e um dever do povo.
Certa vez, numa paróquia, na qual estava sendo presidida uma missa nesse estilo, me dizia uma paroquiana: “Nesse tipo de missa a gente entra seco e sai batendo, isto é: entramos e saímos vazios”.
Aí, pouco importa a assembleia litúrgica. Ela não é corpo, não é contada e muito menos reconhecida como sinal da presença do Senhor. São celebrações centralizadas nas mãos de poucos e de cunho clerical.
Essas celebrações nos remetem à era das rubricas que tem seu inicio em 1588 em que o papa Sisto V cria a Sagrada Congregação dos Ritos com a finalidade de fazer valer o cumprimento de todas as normas litúrgicas a ponto de esquecer o essencial, o mistério pascal.
O segundo modelo são a celebrações intimistas, egocêntricas e devocionistas. Elas estão presentes em toda parte e ganham espaço nos meios de comunicação sociais, em especial na televisão.
Acredito que existe algum valor nessas celebrações, mas considerando as sólidas orientações conciliares, percebo que elas se distanciaram e muito de ser um espaço, onde o mistério de Cristo é celebrado.
Essas liturgias são carregadas de pompas, a começar pelas vestes litúrgicas. Os paramentos medievais barrocos entram em cena, destoando do contexto, cultural, social e artístico de um mundo secularizado. Os ministros que se prestam a esse serviço, certamente tem saudade daquilo que nunca tiveram.
A assembleia e aquele que preside em vez de fazer uma memória da vida, morte e ressurreição do Senhor, prestam um culto, onde a relação com o mistério é meramente individual e totalmente desvinculado do comunitário. Cada um se salva sozinho. Um exemplo são os hinos que acompanham essas liturgias. Os verbos estão todos conjugados na primeira pessoa do singular. Eu amo Jesus e Jesus me ama! Todos buscam um milagre, e a Palavra aí proclamada, é para reforçar essa certeza. Deus agiu no passado e vai agir na sua vida.
O importante não é a Ceia do Senhor, mas adorar a hóstia consagrada exposta em suntuoso ostensório que passeia no meio da assembleia. Daí emana uma força que cura e soluciona todos os problemas. Um exemplo disso: quase em toda parte está se tornando uma prática comum as benções do Santíssimo logo após a comunhão.
A sensação é que estamos voltando ao “outono da Idade Média” (séculos XIV e XV), onde o individualismo religioso atingiu o seu auge, fazendo assim, decair a vida e a espiritualidade litúrgicas de forma acentuada. A religião vira um grande jogo de negociata com Deus. Diríamos hoje, um sacro negócio.
Comecei comparando a história como uma onda do mar, mas esqueci de dizer que a onda vai e volta, por isso ao fazer essa simplificada análise da realidade litúrgica mais diretamente aqui no Brasil após 50 anos da Sacrosanctum Concilium percebo que a onda histórica está voltando. “A saudade do que nunca tive” está em alta e nossas ações litúrgicas estão fugindo do essencial que é a celebração litúrgica do Memorial da Páscoa de Cristo, sim, mas do Cristo Cabeça e Membros, do Cristo Total, do Cristo que continua morrendo e ressuscitando no povo oprimido hoje.
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CONSTITUIÇÃO Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia. In: Compêndio do Concílio Ecumênico Vaticano II. Petrópolis: Vozes, 1979.
CONFERÊNCIA Geral do Episcopado latino-Americano, MEDELLIN. São Paulo: Paulinas, 1977.
CONFERÊNCIA Geral do Episcopado Latino-Americano, PUEBLA. São Paulo: Paulinas, 1984.
SILVA, A. J. da. O Mistério Celebrado: Memória e compromisso I. São Paulo: Paulinas, 2003.