O LENDÁRIO PE. ANCHIETA
Desde o dia 03 deste mês de abril, José de Anchieta é mais um dos declarados “santos” do cristianismo. Já o Apóstolo Paulo, quando escrevia às suas comunidades, saudava os fiéis denominando-os como os “santos” de Corinto, da Galácia, de Filipos, etc... Para Paulo, “santo” era a pessoa que vivia sua vida com sentido e de forma exemplar. Por isto, nada mais justo do que destacar alguns cristãos como exemplos para a vida de fé dos outros. Neste sentido, o Pe. Anchieta levou uma vida exemplar. Não que ele não tivesse falhas ou pecados, mas porque ele foi coerente com sua vocação. Praticou as virtudes evangélicas, com amor a Deus e caridade para com o próximo, com humildade e desgastante esforço. E isto é maravilhoso!
Mas, quem foi José de Anchieta?
Nasceu em 1533/34 na ilha de Tenerife, uma das ilhas do arquipélago das Canárias, de domínio espanhol. Aos 14 anos se transferiu para estudar em Coimbra. Preferiu estudar em Portugal, por que, na época, a inquisição estava solta na Espanha, e ele além dos seus ascendentes bascos também tinha sangue de cristãos novos (judeus convertidos ao cristianismo). E isto, facilmente, poderia se tornar motivo de investigações inquisitoriais. Em Coimbra teve contato com membros da recentemente fundada Ordem da Companhia de Jesus, os jesuítas. Ordem fundada por seu primo bascaíno Inácio de Loyola, que começara a enviar missionários para o Brasil.
Aos 17 anos entrou no noviciado dos jesuítas. Neste período contraiu grave doença. Curado, seus superiores consideraram que o clima do Brasil seria mais adequado para a saúde do Irmão José.
Chegou ao Brasil 1553, com 20 anos incompletos. Com pouco tempo no Brasil, foi enviado para a comunidade dos jesuítas em São Vicente. De lá, com outros companheiros da Ordem, subiu para o planalto de Piratininga, onde abriram um colégio para os poucos moradores da localidade, e como ponto de apoio para as missões entre os índios da região. E este colégio deu origem à Cidade de São Paulo. Graças às cartas de Anchieta, sabe-se hoje que São Paulo foi fundada em 25 de janeiro de 1554, em homenagem ao Apóstolo Paulo, pois em 25 de janeiro a Igreja celebra a Conversão de S. Paulo.
Em pouco meses Anchieta aprendeu a língua Tupi, codificando-a em gramática. Além de professor neste Colégio em Piratininga, Anchieta também desenvolveu fecundo trabalho missionário no planalto paulista, catequizando os índios e defendendo-os das mãos dos escravagistas.
Quando os índios Tamoios se revoltaram contra os portugueses, em 1563, permaneceu, durante cinco meses, entre estes índios, até que se firmasse o primeiro tratado de paz entre índios e portugueses.
Segundo referências, um tanto lendárias, Anchieta, neste cativeiro, teria escrito o seu célebre poema “De Beata Virgine Dei Mater Maria”. Como, na ocasião, não possuísse papel nem caneta, teria escrito o texto na areia da praia, decorando-o, e, quando liberto, o teria transposto para o papel. A verdade é que Anchieta, já antes de Camões, poetava pelo Brasil.
Com 32 anos de idade, apresentou-se ao Bispo da Bahia para ser ordenado presbítero (padre!). Uma vez ordenado, intensificou seu apostolado. Caminhava de aldeia em aldeia a pé, descalço, usando uma batina rota. Não andava a cavalo por causa de sua doença, que afetava seu costado e o impedia de cavalgar.
Por rios e pelo mar, navegava, muitas vezes, nas frágeis canoas dos índios. Em terra atravessava matas e despenhadeiros, sujeito às intempéries e aos perigos de animais selvagens e peçonhentos, bem como às emboscadas de índios hostis; no mar estava sujeito às tempestades e ao agito das ondas. São abundantes os fatos lendários e maravilhosos que teriam ocorrido nestas viagens.
Por 44 anos Anchieta atuou no Brasil, tendo sido professor, escritor, missionário, Diretor de Colégio e superior de todos os jesuítas desta província. Como superior visitou as casas dos jesuítas em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco. Faleceu aos 64 anos de idade, em 1597, no aldeamento indígena de Iritiba, no Espírito Santo. Iritiba, hoje, é o município de Anchieta.
Anchieta, mesmo gravemente doente, quis permanecer em Iritiba, entre os índios, vivendo e morrendo na pobreza, com o atendimento precário à sua saúde, assim como era praticado entre os pobres. Quando faleceu, foi carregado por 14 léguas, até o Espírito Santo, para ser sepultado.
Anchieta não é “santo” porque profetizava, ou porque fazia, e faz, milagres. O Papa Francisco até dispensou a necessidade de milagre para declará-lo “santo”! O que historicamente impressionava nele eram os resultados maravilhosos de sua caridade e de sua vida exemplar.
Com certeza, Anchieta não foi um homem medíocre. A prova disto são as lendas que o rodeavam ainda vivo. Em relação a homens medíocres não surgem lendas!
Vejamos alguns dos fatos lendários que se contam de Anchieta. Estes fatos nos foram narrados pelo primeiro biógrafo de Anchieta em 1607, apenas 10 anos depois de sua morte. O Pe. Pedro Rodrigues, que havia convivido com Anchieta, relatou, na biografia que escreveu, a impressão maravilhosa que o povo tinha deste missionário e homem de ação. Pe. Rodrigues denomina Anchieta de “Apóstolo do Brasil”. Pelo que, até hoje se preserva da memória sobre José de Anchieta, poderíamos também denominá-lo de “O São Francisco do Brasil”.
Anchieta era um homem extraordinariamente prendado: ativo, inteligente, escritor, poeta, linguista, caridoso, e dedicado, tudo fruto de sua profunda espiritualidade. A sua ação missionária não se restringia a uma pregação oca de citações bíblicas e afirmações dogmáticas. Fundamentou a sua missão num processo civilizatório. Criou aldeias, fundou colégios, foi o primeiro professor de latim no Brasil, se preocupava com os doentes e os famintos; trabalhou intensamente para defender os índios da escravidão. Pacificou índios e portugueses.
Os jesuítas já haviam solicitado a beatificação de Anchieta em 1617. O processo, no entanto, permaneceu no Vaticano por 363 anos até que, finalmente, em 1980 o Papa João Paulo II o beatificasse oficialmente. A canonização ocorreu neste 03 de abril de 2014 com o Papa Francisco.
Embora Anchieta tenha nascido espanhol, ele deve ser considerado um Santo Brasileiro, pois em toda a sua vida atuou no Brasil, tornando-se o grande “Apóstolo do Brasil”. Apóstolo não somente no sentido religioso, mas também no sentido civilizatório deste país por seu respeito aos valores culturais e de proteção aos mais fracos, evitando sua exploração e escravização.
Com sua facilidade em aprender línguas, Anchieta aprendeu, rapidamente, a língua tupi, e a codificou em uma gramática, utilizada até hoje para aprender a “língua geral”, que ele considerava a língua brasílica. Falava e escrevia em espanhol, português, latim e tupi.
Quanto ao “Anchieta Lendário”, conta o Pe. Pedro Rodrigues, em sua biografia (1607), que Anchieta, em diversas ocasiões, foi visto levitando. Teria sido visto levitando, quando refém entre os Tamoios, o que apavorou aos índios, considerando-o um feiticeiro.
Conta também o Pe. Rodrigues que Anchieta tinha a fama de se bilocar, pois teria sido visto, ao mesmo tempo, em diversos lugares.
Outra referência lendária narra que Anchieta, e seus companheiros, sofreram um naufrágio. Todos saíram nadando e se salvaram, menos Anchieta. Um índio da comitiva se jogou na água, para salvar o padre. Mergulhou e procurou Anchieta, até que, após cerca de meia hora, encontrou-o sentado no fundo do rio. Trouxe-o para fora, e, maravilhosamente, o padre não tinha tomado água, nem perdido a consciência.
Numa ocasião em que Anchieta navegava pelas águas do Rio de Janeiro, os remadores se queixaram do calor do sol. Anchieta, preocupado, reparou de longe em um pássaro, o chamou e lhe pediu que trouxesse seu bando para fazer sombra ao barco. De fato, dali a pouco, veio um bando de pássaros que ficou sobrevoando o barco, e como em uma nuvem acompanhou o barco impedindo o calor do sol fazendo sombra.
O Pe. Rodrigues relata a grande intimidade que Anchieta tinha com os animais. Falava com pássaros e mamíferos. Tinha onças ferozes amigas, que lhe obedeciam. Por isto, em muitas representações de Anchieta, ele está acompanhado de onças.
Em certa ocasião, na floresta, acompanhado de índios, os indígenas mataram diversos macacos para comê-los. O bando que sobreviveu começou a lamentar os seus mortos, acompanhando os índios com lamentos e uivos. Anchieta pediu aos índios que não matassem mais macacos, e permitiu aos macacos que acompanhassem os índios e chorassem os seus mortos. Mas, quando os índios se aproximaram da aldeia, Anchieta pediu aos macacos que voltassem para a floresta, pois os índios da aldeia os poderiam matar. Os macacos obedeceram e retornaram para as matas.
Em outras ocasiões, na floresta, Anchieta chamava passarinhos para que viessem pousar em suas mãos e cantar em louvor ao Criador. Depois os despedia para que voltassem para a natureza. Aos pescadores famintos indicava o lugar no mar e nos rios onde tivessem pesca abundante.
Doentes, com a aproximação de Anchieta, começavam a se recuperar. Famintos, encontravam comida. Ventos se acalmavam. Em uma demora de navios, que deveriam trazer azeite de Portugal, Anchieta evitou que as reservas de Azeite se esgotassem, através de uma espécie de multiplicação do azeite.
Anchieta, nesta memória lendária, também predizia acontecimentos futuros. Era capaz de entrar na consciência das pessoas. Quando alguém esquecia, ou omitia, algum pecado na confissão, ele lembrava a este pecador seu pecado. Na comunidade em que vivia, alguns de seus companheiros ficavam temerosos, pois nada lhe ficava oculto .
Assim, a memória popular falava da vida maravilhosa de Anchieta. Propriamente não o interpretavam como milagreiro, mas como agraciado por Deus para fazer o bem entre os homens.
Apesar de muitos se admirarem com a vida especial de Anchieta, que deu origem a tantas lendas, historicamente ele apenas foi um homem que cumpriu uma missão e seguiu uma vocação: a de um homem que buscava a saúde espiritual e corporal de seus semelhantes. Para a saúde espiritual (a salvação !) oferecia o caminho das virtudes do Evangelho de Jesus Cristo; para a saúde corporal, praticava a caridade, a solidariedade e o respeito, especialmente para com os menos protegidos, e mostrava um grande cuidado para com a natureza e suas leis. Assim se tornou modelo para uma vida digna até os nossos dias. É este o motivo porque se tornou digno de ser declarado “santo”.
Inácio Strieder é professor de filosofia em Recife-PE.