AS COSMOVISÕES DA HUMANIDADE

Os progressos científicos, nos últimos séculos, alteraram profundamente nossa visão do mundo. Cientificamente, já não tem sentido falar em subir para o céu, ou descer para a terra. O “subir” e o “descer” são relativos ao lugar em que estamos. Subir e descer para os japoneses, por exemplo, indicam direções diferentes do que indicam para nós no Brasil.

As categorias de tempo e de espaço, igualmente, são relativas para quem as observa. Uma tal alteração da compreensão do mundo não ocorreu, porém, apenas em nossa época. Desde a Antiguidade os homens se interrogaram sobre o cosmos. Muitas vezes tiveram que alterar sua compreensão do Universo, e a compreensão do lugar do homem neste mundo. Já encontramos representações do mundo entre os povos mesopotâmicos e entre os antigos egípcios. Muitos dos elementos das cosmovisões desses povos chegaram até nós através dos textos bíblicos.

Os autores bíblicos falam na linguagem de sua época, retratando, assim, as cosmovisões dos povos antigos. Devido a isto, não causa mais estranheza que as pesquisas científicas de nossa época demonstrem que as descrições bíblicas sobre a origem e a constituição do mundo, sob certos aspectos, não estão de acordo com os resultados científicos atuais. Hoje sabemos, por exemplo, que as estrelas não se formaram depois da terra, e que não foram firmadas num firmamento anteriormente existente, como se fala no livro bíblico da Gênese. Sabemos também que a chuva não tem sua origem num oceano celeste. A terra não nada sobre as águas do mar, nem é sustentada por colunas. A cosmovisão antiga já não é a nossa.

O mundo antigo e medieval

A visão do mundo da Antiguidade e da Idade Média era, de certa forma, infantil. Partia das observações diárias. A abóbada celeste e o horizonte circular motivaram a representação do firmamento como o telhado da terra. Este era representado como um imenso sino de vidro. A constatação de que o oceano cercava a terra firme por todos os lados, e que do subsolo brotavam fontes de água, deu origem à ideia dum mar imenso sobre o qual a terra, em forma de disco, estaria nadando. Por causa das elevações montanhosas no horizonte, outros pensavam que o disco da terra descansava sobre imensas colunas. A partir das chuvas concluiu-se que, por cima do firmamento, existiam reservatórios de água, formando o oceano celeste. Quando Deus abria estes reservatórios, as águas celestes se derramavam sobre a terra.

Segundo a cosmovisão antiga, o sol e a lua, os grandes luzeiros, eram conduzidos por trilhos seguros pelo firmamento. A luz, contudo, era tida como uma grandeza independente, pois também sem a visibilidade do sol e da lua existia a claridade. Os astros, muitas vezes, eram vistos como seres vivos. Dali a astrologia, com estrelas fastas e nefastas.

Debaixo da terra e do grande mar os antigos imaginavam o “reino dos mortos”. Era a habitação de todos os falecidos. O centro da cosmovisão antiga era o homem. O céu divino localizava-se para além do firmamento, e distendia-se para as alturas infinitas. De lá Deus contemplava a sua criação.

Mitos da criação

A epopeia babilônica de Enuma Elish narra que o deus Marduk criou o mundo, após uma luta acirrada com o monstro marinho Tiamat. Vencendo o monstro, Marduk arranca o cosmos do caos.

Mais antigo do que esta epopeia é um texto sumérico (ca. 2.000 a.C.), no qual se narra como Enki, o deus da sabedoria e das artes, cumpre ordens do deus criador Enlil. Este deus dos ares separou primeiramente a terra do céu, que no início estavam unidos. Planejou, depois, a organização do cosmos: sol, lua, planetas, vento, tempestades, rios, montanhas e planícies. Planejou também a realidade humana: cidades, governos, canais de irrigação, campo e agricultura, juntamente com os instrumentos necessários ao homem para subsistir. Por fim, estabeleceu ordens rígidas para o governo do cosmos.

Das margens do Rio Nilo chegaram até nós várias cosmogonias, que, de forma mitológica, narram a criação do mundo. Segundo a cosmogonia da cidade egípcia de “On” (Heliópolis) surgiu de “Nun” o mar primitivo; o deus “Atun”, por força própria, produziu o vento e a umidade. Esta dupla divina, por sua vez, gerou o céu e a terra. Segundo a teologia de Mênfis, muitos deuses, e as forças da vida, brotaram do coração e da língua do deus “Ptah”. O homem teria sido forjado sobre a prancheta de oleiro do deus “Chnun”.

Interessante é observar que os diversos mitos egípcios, sobre a criação, falam da origem do mundo por vias práticas. Entre os babilônios, esta origem se processa através das lutas acirradas entre os deuses e as forças do caos.

Quem comparar as cosmogonias dos antigos povos com as narrações bíblicas, sobre a criação do mundo, verá que tais relatos possuem muitos elementos semelhantes. Esta constatação nos revela que os escritores sacros se utilizaram de tradições já existentes, antes deles, para elaborarem as suas narrações da criação. Mas, a fé no Deus Javé enriqueceu as antigas mitologias com novos elementos, desmitologizando-as, e colocando todos os seres existentes sob as ordens dum Deus único.

Cosmovisão bíblica

A Bíblia narra a criação do mundo como obra divina de seis dias. Sábios sacerdotes do antigo Templo de Jerusalém elaboraram esta descrição. Os autores da narração dividiram sua obra literária em seis estrofes, transformando-a numa espécie de poesia. Para entender o “hino da criação” bíblico, é necessário tomar em consideração que este texto, embora esteja no início da Bíblia, contudo não é a parte mais antiga dos escritos sagrados. Surgiu porque os israelitas sentiram a necessidade de esclarecer que o seu Deus Javé, que os havia salvo da escravidão do Egito, e os conduzira para a Terra Prometida, era o único Deus, Senhor do céu e da terra. Ele criara todos os seres, e tudo lhe estava submisso.

Já na Idade Média procurou-se especificar mais esta visão do mundo. Basicamente conservou-se, até a Renascença, a imagem do mundo antigo, emendada por Ptolomeu. Posteriormente, esta representação foi substituída pela “visão copernicana”, permanecendo esta até meados do século XX.

Cosmovisão ptolomaica

Ptolomeu (70-147 d.C.), o mais célebre astrônomo da Antiguidade, colocou a terra no centro do universo. Neste sistema, o sol, a lua e os planetas giravam ao redor da terra. Esta visão geocêntrica do mundo foi assumida pela Idade Média, e associada à filosofia aristotélica. A fé do homem medieval considerava o homem, e a terra por ele habitada, como o centro da criação.

Cosmovisão copernicana

Em 1513 o cônego Nicolau Copérnico chegou à conclusão de que o sol, e não a terra, era o centro do universo. Esta compreensão foi confirmada, posteriormente, por João Kepler (1571-1630), através de sua pesquisa sobre o movimento dos planetas. Também as pesquisas de Galileu Galilei (1564-1642), e as de Isaac Newton (1643-1727) confirmavam a visão heliocêntrica do mundo. Inicialmente esta nova cosmovisão foi violentamente combatida, pois não parecia concordar com a visão bíblica, nem com a imagem que o homem medieval fazia de si e da terra.

Cosmovisão contemporânea

Segundo a cosmovisão atual, a terra nada mais é do que um dos planetas que giram ao redor do sol. O sol, por sua vez, forma, juntamente com cerca de 100 milhões de outros sóis, a Via Láctea. A Via Láctea é apenas uma das milhões de galáxias do universo. Galáxias que, por sua vez, se compõem de outros milhões de sóis. Cada um dos quais, possivelmente, possui planetas, inclusive, semelhantes ao planeta terra, com probabilidade de seres vivos. A extensão do universo galáctico é difícil de imaginar, pois somente a Via Láctea possui um diâmetro de aproximadamente cem mil anos-luz.

O admirável em tudo isto é que, mesmo frente a uma cosmovisão muito diversa da visão de mundo do homem bíblico, isto não exige que abandonemos a cosmovisão bíblica. Mas, para isto, é necessário estar consciente de que os autores bíblicos não têm a intenção de descrever a origem do mundo em linguajar científico. A sua linguagem é a linguagem de seu tempo. O que querem relatar, e isto permanece válido, é a intervenção divina na origem do cosmos e dos seres vivos nele existentes. Por isto, mesmo que a ciência comprove que existam cem bilhões de estrelas no Universo, muitas com planetas habitados por seres vivos, todo este universo tem a sua origem pela ação do Deus único, o Deus da fé cristã.

Cosmovisões antropológicas

Cada um de nós possui a sua cosmovisão, a sua compreensão do mundo e do homem. De acordo com esta compreensão interpretamos a realidade, e organizamos a nossa vida prática.

Quanto ao homem, a cosmovisão bíblica diz que Deus criou o ser humano, e criou-o homem e mulher. Por isto, o homem não é um ser que surgiu por acaso, um cigano perdido no universo; nem um desastre da natureza, como afirma Jacques Monod, em seu livro “O acaso e a necessidade”. A humanidade apareceu porque alguém a planejou, a quis, a amou. O ser humano sai bom das mãos de Deus, mas o homem usa mal sua liberdade e se perverte. Desta perversão nascem os crimes, as injustiças, e os aspectos morais penosos da vida.

Nos textos cristãos do Novo Testamento se fala em uma nova criação do mundo através de Cristo. Os poderes do mal, que se interpunham entre o homem e Deus, foram quebrados. Agora o homem, novamente, através de sua liberdade redimida, tem a possibilidade de acesso direto a Deus.

Esta compreensão teológica do homem é patrimônio da cosmovisão antropológica (antropovisão) dos textos bíblicos. Se, por exemplo, compararmos a cosmovisão bíblica com a cosmovisão dos filósofos da Antiga Grécia, encontraremos diferenças essenciais. Na visão bíblica, o mundo é o meio ambiente do homem. Deus encarregou o homem de tornar a terra favorável a ele e habitá-la. O próprio homem é responsável por organizar favoravelmente o pedaço de mundo que habita. Embora em dimensões espirituais e materiais, é característica do ser humano agir como unidade nestas duas dimensões.

De acordo com a visão grega, o homem é parte deste mundo. Está de tal forma inserido na natureza que as leis inexoráveis do mundo material, que o cercam, se abatem deterministicamente sobre ele. Por isto, o seu espírito deve fugir dos determinismos da matéria, e, já agora, viver de acordo com as leis de um mundo ideal. O corpo não passa de uma casca que envolve o espírito. A verdadeira vida humana apenas começará quando o homem conseguir se livrar desse caixão (o corpo), que o espírito, por castigo, carrega por este mundo de misérias materiais. Corpo e alma pertencem a mundos distintos: o mundo material e o mundo espiritual. Estes mundos são hostis entre si. Dali o dualismo da antropovisão grega.

A exemplo das diferenças entre as antropovisões bíblica e grega, poderíamos pesquisar as cosmovisões antropológicas de outras culturas e de outras épocas, inclusive a nossa, e explicitar as diversas compreensões do homem. Destas antropovisões se derivam as atitudes práticas do relacionamento dos homens entre si. Racismos, intolerâncias, e também as solidariedades... provêm das cosmovisões antropológicas que assumimos.

Inácio Strieder é professor de filosofia e teologia – Recife/PE