Vendo “os invisíveis”
Jesus nasceu no cenário singular de uma obscura cidade no interior da Palestina. Seus primeiros visitantes foram uns pastores que trabalhavam na periferia, gente do povo. O local, uma estrebaria escura e abandonada. E o berço um “cocho”, um recipiente onde se colocava comida para os animais. Esse foi o arranjo inusitado no qual nasceu o Salvador do mundo. Nada de luzes, nem presentes caros, nem banquetes, nem gente arrumadinha e cheirosa.
Meditando sobre o nascimento de Jesus, e levando em conta os episódios históricos que envolveram o evento, creio que Deus estava oferecendo ao mundo um Salvador e uma nova agenda pela qual orientarmos a existência. Ele parece querer sensibilizar as pessoas e fazê-las olhar para aquelas realidades que o mundo considera irrelevante e que não faz sucesso na mídia. O nascimento de Jesus é um chamado à conversão. A considerarmos a vida sob a dinâmica de outro eixo que não seja o mercado, nem a luta individualista pelo sucesso pessoal e, muito menos o consumismo.
Através da forma como Jesus nasceu neste mundo Deus nos convida a abrirmos mão de posições e status que têm sido os elementos reguladores da vida contemporânea. Nestes tempos em que o valor das pessoas está atrelado ao lugar na escala social e às suas possibilidades de consumo, Jesus nos chama a percebermos as pessoas pelo que são e não pelo que têm.
Na criança da manjedoura que nos é apresentada como o sinal da redenção, somos chamados a reconhecer que viver o Reino de Deus é ser capaz de se encantar com pequenas coisas e com gestos simples. Significa entender que somos mais felizes quando buscamos a felicidade e o bem do outro, mesmo quando os gestos são singelos e não aparecem nas manchetes. Nisto me parece consistir o “buscar o Reino de Deus em primeiro lugar” registrado nos evangelhos.
Além disso, a criança da manjedoura traz ao mundo outras inspirações que são renovadas ao nascimento de cada criança hoje. A criança é um ser curioso, está sempre fazendo novas experiências, novas tentativas de fazer as coisas. As crianças geralmente não têm medo de errar. Nessa sua inquietação muitas vezes são vistas como seres incômodos, pois são uma constante ameaça ao mundo organizado dos adultos.
Outro fato significativo é a enorme capacidade de superação que têm as crianças. Sua alma não é capaz de guardar mágoas ou ressentimentos. São abertas à reconciliação. Se há uma briga, instantes depois estão novamente brincando juntas. Não foi sem razão que Jesus afirmou que para entrarmos no seu Reino precisamos nos tornar como crianças.
Um fato notório nesses pequenos seres é que eles não têm preocupações. Nem com o amanhã, nem com a própria segurança. Por isso são tão vulneráveis à insânia dos perversos. Vivem o momento presente e absorvem dele o máximo sem ansiedades porque estão totalmente entregues aos cuidados dos pais.
As crianças caminham com autêntica naturalidade do choro ao riso. A autenticidade é um outro elemento a ser inserido em nossas agendas. A vivência adulta nos ensina o uso de tantas máscaras que poderemos despertar num certo dia e termos dúvidas sobre quem somos de fato. Além disso, nossos escrúpulos de adultos, muitas vezes, fazem-nos assumir mais coisas, responsabilidades e compromissos do que realmente podemos dar conta porque não somos autênticos o suficiente para simplesmente dizermos “não”.
Finalmente, a criança da manjedoura nos convida a sonhar. As crianças são craques em sonhar de olhos abertos e a imaginar as coisas mais fantásticas. Sonhar implica em ter esperanças para redesenhar a vida. Somos chamados a renovar nossa capacidade de sonhar. Diante da dureza da vida muitas vezes paramos de sonhar até com medo de sermos frustrados.
À luz dessas coisas é muito interessante pensarmos em nossas agendas. Quais são os princípios que tem regido nossa existência? Que critérios têm orientado nossos planos? É possível avaliarmos os nossos projetos pessoais considerando aquelas coisas que ficam de fora.
Olhemos uma vez mais para o menino em sua manjedoura. Certamente dali fluirá um novo sopro de vigor espiritual para a existência e uma nova esperança para a eternidade que nos dará um outro jeito de vermos as pessoas, marcado pela solidariedade sobretudo com aqueles seres humanos e cenários que a maioria de nós simplesmente não quer ver.