A MUSICA LITURGICA

A MÚSICA LITÚRGICA

Antes de entrar no assunto propriamente dito desta reflexão, é salutar que se deixe clara a diferença entre música litúrgica e música sacra, pois estes segmentos costumam confundir as pessoas e causar algumas controvérsias no terreno conceitual.

A música sacra é clássica, a exemplo das composições dos grandes mestres, e serve para emoldurar os atos mais importantes e as celebrações das basílicas, em geral levadas a efeito por grandes orquestras, corais de muitas vozes e arranjos de órgãos de tubos, que dão à execução um ar célico e inebriante, capaz de elevar o espírito dos fiéis que acorriam às celebrações das igrejas. Quem não recorda um “Aleluia” de Händel, um “De profundis”, “Tantum Ergo” (composto por Santo Tomás de Aquino, para a festa de “Corpus Christi” de 1264), ou um “Adoro te devote latens Deitas”? Nisto também se poderia incluir as Tocatas de Bach e sua obra prima “Jesus alegria dos homens”. Estes são alguns exemplos da música sacra clássica egressa dos templos.

Já a música litúrgica é mais popular, e é construída para animar as liturgias, especialmente as missas e as procissões. Até a reforma da liturgia, antes do Concílio Vaticano II, a música litúrgica era acompanhada por órgão e entoada por um coro que animava a assembléia, de acordo com o momento e a ocasião. O povo, nessa época, apenas escutava as melodias, mas delas não participava.

Depois do Concílio (1962-1965) as coisas tomaram ares mais liberais. Por conta da questão econômica, as paróquias que não tinham condições de adquirir um órgão e passaram à utilização do violão e das guitarras, bem como dos instrumentos de percussão (baterias, chocalhos, pandeiros, etc.). A isto se somaram os teclados, baixos e sintetizadores. Com essa onda de modernidade que aflorou nos templos, as liturgias se tornaram mais populares, algumas delas tendentes ao rock, pop, sertanejo ou até o “pancadão”, atraindo os jovens, mas, de certa forma fazendo recuar a contrição e o clima de espiritualidade do povo.

Num dia desses, eu cantarolava uma música bem antiga, “Coração santo, tu reinarás, tu nosso encanto sempre serás...” que me transportou à década de 50, quando cantávamos esta e outras melodias nos atos religiosos do Colégio Anchieta (jesuítas) em Porto Alegre. Naquele tempo as músicas não eram muitas, mas a gente conhecia e cantava todas, como “Queremos Deus, homens ingratos, ao Pai-Supremo, o Redentor...” ou “Sacrossanto Maná dos Altares corpo e sangue do meu Redentor...”, Quem não cantou a plenos pulmões na procissão de Corpus Christi o “Levantai-vos soldados de Cristo, para frente marchai à vitória...”, das triunfalistas “cruzadas eucarísticas?” Os cantos litúrgicos do passado não eram muitos, cabiam em um folheto, mas o povo conhecia todos e cantava-os com entusiasmo. Antes, à música litúrgica chamavam-se hinos, e hoje recebem o nome de canções.

Hoje com o advento dos padres-cantores, as coisas mudaram, e eu ousaria dizer que mudaram para pior. Com o surgimento de novos “artistas”, padre Luizinho, Zezinho, Huguinho, Joãozinho e outros menos votados, a comercialização maciça da música litúrgica, fez aparecerem os discos, as fitas-cassete e mais modernamente os CDs. O comércio da música religiosa possibilitou um crescimento – exagerado, eu diria – a editoras, gravadoras, autores e cantores da chamada música gospel. Nesse clima de exacerbada competição, surgem miríades de músicas, autores e intérpretes, com o objetivo mais de conquistar mercado e faturar, do que criar um clima de enlevo e espiritualidade.

Com essa enxurrada de milhares de músicas por ano, ainda se somam as canções das “campanhas da fraternidade” que são veiculadas a cada ano, durante poucos dias (da quarta-feira de cinzas ao “domingo de ramos”) e quando o povo começa a aprender as letras, elas são deixadas de lado. Como os autores são muitos, a cada tempo litúrgico surgem novas e inusitadas músicas.

Ao invés dos sucintos e objetivos folhetos do passado, hoje as comunidades, paróquias, escolas e conferências episcopais, fiéis às campanhas mercantilistas da indústria da música, produzem volumosos “livros de cantos”, dos quais o povo desconhece mais da metade.

Com isto, no desejo de ensinar o povo a cantar, nesse emaranhado de músicas, os “grupos de canto” procuram promover músicas novas, que a maioria do povo desconhece. Com isso se ressalta mais o desejo de aparecer de alguns músicos, solistas, salmistas. cantores e cantoras, ávidos de exibir seu “talento”, fugindo do espírito real da matéria.

Galvão é Doutor em Teologia Moral e especialista em Liturgia, autor do mais de cem livros, entre eles “Liturgia: História, Prática e Espiritualidade”, Ed. Pallotti, 2007.