O encontro de Jesus com Lúcifer

O ENCONTRO DE JESUS COM LÚCIFER

Miguel Carqueija


O capítulo 4 do Evangelho de São Mateus conta um episódio deveras impressionante (também narrado por Lucas e Marcos), qual seja o encontro no deserto entre o Cristo e o Príncipe das Trevas, as três tentações. Passemos a palavra ao evangelista:

“Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio.
Jejuou quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome. O tentador aproximou-se dele e lhe disse: “Se és o Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães.” Jesus respondeu: “Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus” (Deut 8,3).
O demônio transportou-o à cidade santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: “Se és o Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito: proteger-te-ão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé nalguma pedra (Salmo 90,115)”. E disse-lhe Jesus: “Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus (Deut 6,16)”.
O demônio transportou-o, uma vez mais, a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: “Dar-te-ei tudo isto, se prostrando-te diante de mim, me adorares.” Respondeu-lhe Jesus: “Afasta-te, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás” (Deut 6,13).
Em seguida o demônio o deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo.”

Há, nesta narração, detalhes impressionantes. Um questionamento possível — e que até já me fizeram — é como iria o demônio se atrever a tentar o próprio Cristo. Ora, o Bispo Fulton Scheen explicou certa vez que Satanás não sabia ao certo quem era Jesus, apenas suspeitando tratar-se do aguardado Messias. Assim, quando surgiu oportunidade, o Adversário procurou por Jesus, para tratar com Ele a sós.
A primeira das tentações é a da fome, e não só do pão, mas, por extensão, dos bens materiais em geral. Satanás, ou Lúcifer, como também é conhecido, desafiou Jesus a transformar pedras em pães, pois sabia que o Mestre tinha fome. E embora Jesus pudesse efetuar a transformação, recusou-se a fazê-lo, pois Deus não opera milagres por vanglória e, muito menos, por encomenda do diabo. Ao responder “Nem só de pão vive o homem” Jesus de antemão desautoriza a chamada “teologia da libertação”, que substitui a transcendência pela imanência, reduzindo a religião à busca de um paraíso terrestre inverossímil e inatingível.
Na segunda tentação, o Inimigo apela para a vaidade e o exibicionismo. Jesus, sendo Deus, poderia é claro voar como o Super-Homem e nem precisaria que os anjos o amparassem. Mas os milagres nunca são operados por razões frívolas. Detalhe extraordinário é que Satã se atreve a citar a Escritura, declarando: “Está escrito”. Jesus replica na ponta da língua.
É, porém, na terceira tentação que se revela a situação em todo o seu maquiavelismo. Na insânia de sua perversão, o demônio ao que parece imagina o quanto lucraria, se pudesse manipular a Jesus, e o tenta através da ambição, da sede pelo poder. Mostra-lhe — sem duvida, por uma visão sobrenatural — “todos os reinos do mundo”. E descaradamente oferece a posse de todos eles, do mundo inteiro, a Jesus — se Jesus, ajoelhando-se, adorasse a ele, o capeta.
Se nas duas primeiras propostas ainda foi possível a Nosso Senhor dialogar com o Adversário, esta terceira, por horrivelmente blasfema e insultuosa, entornou o caldo. Jesus manda o tentador embora, de forma taxativa: “Afasta-te, Satanás!”
Esta é, afinal, a grande tentação a que o Mal tenta submeter a humanidade: querem adorar alguém? Que seja, mas não a Deus. Por isso, exemplar a resposta do Logos Divino à impertinência do diabo.
Todavia, surge uma questão muito importante que fica implícita do texto aqui transcrito. Lembro-me de ter visto esta questão levantada num prospecto das Testemunhas de Jeová, e que outros cristãos, com certeza (obs. eu sou católico), também enxergaram: afinal, por que o demônio ofereceu a Cristo o poder sobre os reinos da Terra — todos eles? Teria podido ofertar uma tal enormidade se ele, Satanás, não fosse efetivamente o dono desses reinos? É significativo que Jesus não contestou essa pretensão, limitando-se a recusar a oferta e expulsar o tentador da Sua presença.
Por certo, é possível fazer o bem na Política — daí ser importante que os cristãos também a exerçam, como recomenda o grande Papa Bento XVI. Mas também é verdade que, ao longo dos milênios da História, o Mal metafísico está profundamente infiltrado nos poderes políticos.


Rio de Janeiro, 14 a 16 de junho de 2011.


comentários: Vanusa Paixão, Felipe Romualdo, Richard Foxe

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