O FIM DO CONSENSO EVANGÉLICO
O protestantismo brasileiro de missão (1855-1909) foi estabelecido com um alto grau de consenso, mantido por mais de um século. As igrejas congregacionais, presbiterianas, metodistas, batistas, episcopais e cristãs evangélicas partilhavam de uma herança e de uma teologia em comum; um legado que, vindo da Reforma Protestante do Século 16, incluía traços de puritanismo, pietismo, avivalismo e movimento missionário. Foi o médico escocês Robert R. Kalley quem fundou a Igreja Evangélica Fluminense, dando início a um protestantismo que era sinônimo de evangelicalismo, originado na Grã-Bretanha da primeira metade do século 19, e diferente do fenômeno localizado pós-fundamentalista dos Estados Unidos, que surgiu um século depois. Tratava-se de um evangelicalismo que tinha suas raízes em Wycliffe, na Reforma e nos seus desdobramentos -- com uma ênfase na autoridade das Sagradas Escrituras, nas doutrinas credais e confessionais partilhadas pelo cristianismo reformado (nascimento virginal, milagres, morte expiatória, ressurreição, segunda vinda) --, na necessidade de conversão -- seguida de um processo de santificação -- e no mandato missionário da Igreja. A despeito das diferenças de governo eclesiástico, batismo, ceia do Senhor ou liturgia, as igrejas protestantes (evangélicas) brasileiras foram edificadas sobre esse sólido fundamento partilhado. Em quase toda a América Latina fomos um país de protestantes evangélicos (“evangelicais”), algo evidente, comprovável.
A chegada do movimento pentecostal (1909) introduziu elementos de dissenso no campo da pneumatologia (“dons espirituais”), da eclesiologia (isolacionismo), da liturgia (expressão de sons) e da moral (moralismo/legalismo); uma tendência mais fundamentalista do que evangélica, mas que não rompeu com o núcleo comum que unia ambas as correntes. O mesmo pode-se dizer das “ondas” pentecostais posteriores, como a dos “sinais e prodígios” e a do “movimento de renovação espiritual”. Mantivemo-nos ao largo das propostas das instituições internacionais ecumênicas -- Conselho Mundial de Igrejas (liberal), Conselho Internacional de Igrejas Cristãs (fundamentalista) e Fraternidade Mundial Evangélica (evangelical) -- nos anos 1940 a 1970. Vivemos trinta anos (1934-1964) de fomento da unidade, com a Confederação Evangélica; atravessamos os conflitos entre “direita” e “esquerda” durante a Guerra Fria (1945-1989); mas, no fundo, éramos todos “crentes”. Apesar das diferenças secundárias e de nossas “cordiais” rivalidades, nos considerávamos parte de um mesmo povo: os evangélicos. Essa era a nossa identidade e sentido de pertencimento. Programas de rádio e televisão tinham um cunho evangelístico; e, se íamos a um culto de qualquer denominação, a pregação era marcada pelas semelhanças e não pelas diferenças. Algumas “missões de fé” enfatizaram o fundamentalismo e a escatologia dispensacionalista; e reduzidos núcleos de intelectuais de tendência teológica liberal se estabeleceram em seminários (mais de igrejas de imigração do que de missão) e faculdades em algumas denominações e regiões, sem maior repercussão na massa dos fiéis. A teologia da libertação foi mais influente em sua ética social do que em suas premissas teológicas liberais.
O dissenso protestante se agravou com a chegada da teologia da prosperidade e a teologia da batalha espiritual, e com o vertiginoso crescimento das igrejas ditas neo (isso/pseudo/pós) pentecostais, carentes de vínculos históricos, doutrinários e teológicos com a herança reformada e evangélica; sociologicamente percebidas como seitas para-protestantes, cuja mensagem nada tem a ver com o que se pregou desde Kalley e o protestantismo (evangelicalismo brasileiro). O culto-aula deu lugar ao culto-show. Debilitou-se a escola bíblica dominical e deixou-se de cantar hinos com conteúdo teológico -- os quais foram substituídos por vagas odes à divindade, que podem ser entoadas por qualquer monoteísta não-cristão. Com o crescimento numérico da segunda e da terceira gerações, fomos além da velha dicotomia “membro comungante” “versus” “membro desviado” e passamos a ter os nominais, os ocasionais, os bissextos, os migrantes e os “crentes de IBGE”, que confessam a fé a cada década do Censo, pois não se garante a conversão ou a ortodoxia de descendentes biológicos ou adotivos.
Enquanto as elites seculares foram atingidas pela pós-modernidade e por seus filhotes ideológicos (secularismo, politicamente correto, multiculturalismo, agenda GLSBT), parcelas de nossas elites eclesiásticas foram atingidas pela teologia liberal revisionista. Nossa base social continua majoritariamente evangélica. Porém, o mesmo não se pode dizer, lamentavelmente, de alguns dos nossos líderes. Alguns, por razões intelectuais, emocionais ou morais renegaram até agressivamente o seu passado, abençoado e abençoador; mudaram de lado, deixando o povo órfão ou confuso, pois, quando trocaram de conteúdo não substituíram a etiqueta. Nem todo protestante é mais evangélico, mas nós somos crentes!