Como é o céu?

COMO É O CÉU?

Para muitos de nós, desde a infância, o céu é azul e lá, atrás das nuvens, vive um velho barbudo, anotando tudo em um caderninho, e que de vez em quando fica zangado, fazendo ribombar trovões e estalar relâmpagos. No céu, também nos ensinaram, vivem os santos, os anjinhos e a Virgem Maria. Talvez por causa desse tipo de informação, é que um astronauta soviético subiu ao espaço e voltou informando que não viu a Deus. Quem sabe, ainda, se por conta dessas representações, presas à limitação da descrição humana, existam pessoas que duvidem da existência do céu, como morada de Deus ou como destino último do ser humano.

A grande verdade é que, séculos afora, os teólogos têm tentado desenhar como é o céu, sem consegui-lo satisfatoriamente. E na maioria das obras teológicas, há descrições mais detalhadas, por incrível que possa parecer, do inferno que do céu. Eu não poderia definir o céu aqui, pois nunca estive lá.

O céu é o destino final e eterno do ser humano. Se o ser humano não for para o céu, por um motivo ou outro, Deus ficará como que “frustrado”. O céu está nos planos de Deus, no que se refere ao homem. É nossa predestinação. Tudo que ocorrer diversamente a isto, revela um desvio ou uma ruptura. Na palavra sempre atual e inspirada do apóstolo Paulo encontramos:

Deus quer que todos os homens sejam salvos (1Tm 2, 4).

O céu é criação, promessa e convite de Deus. Por isso se diz que o cristão é peregrino - paroquiano - nesta terra. Sua verdadeira nacionalidade é o céu. Céu não é apatia nem aquele descanso tendente ao ócio ou à monotonia, mas calma dinâmica; é ação tranquila; é paz que leva a crescer sempre.

A teologia cristã tradicional sempre tentou imperfeitamente definir o céu utilizando-se de argumentos humanos e figuras literárias como, visão beatífica, que é simplesmente - se esta prática pudesse ser tão simples - ver a Deus, sem véus nem espelhos, mas um ver-de-fato. Esta visão é reservada àqueles eleitos desde o princípio do mundo. Lá – como disse Santo Agostinho – descansaremos e veremos. Veremos e amaremos. Amaremos e louvaremos. Eis a essência do fim sem fim. Pois que fim mais nosso que chegar ao Reino que não terá fim?. Ali com o rosto descoberto, veremos a Deus (cf. 1Cor 13, 12; 2Cor 3, 18). A vida eterna é o velho sonho do ser humano.

Viver eternamente, feliz e isento de preocupações é o desejo da humanidade de todos os tempos. Talvez por desconhecer a riqueza da vida depois da morte, e revestidos de certo materialismo existencialista, é que tantos têm medo de morrer. Na trajetória humana, se veem muitas pessoas tentando programar suas vidas: “Quero viver enquanto puder me dirigir...”, “eu pretendo morrer depois dos setenta, pois gente velha só dá trabalho...”, “... não adianta tentar querer viver se o corpo não acompanha mais nossa ânsia de viver”.

O sonho do homem é a imortalidade, a vida para sempre, e com Deus ele torna esse sonho uma realidade iminente. É preciso que o que é mortal seja absorvido pela Vida (cf. 2Cor 5, 4), para depois da morte física entrarmos no gozo do amor de Deus e vê-lo tal qual ele é (cf. 1Jo 3, 2). Essa é a essência do céu; da vida eterna (cf. Mt 19, 16; Gl 6, 8; 1Jo 2, 25). Os escritos da Igreja têm se referido ao céu como a festa da vitória. Para a nossa edificação o apóstolo João nos diz:

Nutridos da Palavra de Deus, eles venceram o Maligno(1Jo 2, 13s);

Nascidos de Deus eles venceram o mundo (5, 4);

a sua vitória é a fé no Filho de Deus (5, 5);

graças à qual eles venceram também os anticristos (4, 4).

O povo cristão aprendeu que pela força do Espírito Santo pode vencer o pecado, perseverando até o fim de seus dias. A festa da vitória, como àqueles que correm nos estádios e nas olimpíadas, está reservada aos que vencem os obstáculos e são capazes de se decidir em favor de Cristo. A ida para o céu será sempre fruto de uma decisão de vida. E os que assim decidirem, está destinada a coroa da vida que o Senhor prometeu aos que o amam (cf. 1Cor 9, 25; Tg 1, 12).

O céu, na comparação com os eventos humanos, é uma festa-ágape, que reúne “aqueles que na vida souberam amar a Cristo e seus irmãos”. A essa festa, nos céus, estarão presentes os que buscaram amar mais, perdoar mais, servir mais. Ali, então, Deus será tudo em todos (cf. 1Cor 15, 28). A magnitude do céu, que Deus preparou para o homem, é tão grande e incomparável, que a mente humana, com suas mais rebuscadas e expressivas figuras literárias, jamais será capaz de definir ou explicar adequadamente. São Paulo, mesmo inspirado, apenas imagina sua grandiosidade, sem defini-la:

Aquilo que o olho jamais viu, o ouvido jamais ouviu, nem

penetrou jamais no coração do homem: isso Deus preparou

para aqueles que o amam (1Cor 2, 9).

O céu é o oposto do inferno. Suas grandezas revelam, desde a criação, a tensão latente de teses contrárias. Céu é luz, bondade e participação; inferno é trevas, egoísmo e perdição. O céu não é o oposto da terra, nem mantém com ela uma tensão, mas é sua meta, seu destino final. Quando se fala em mundo, coisas do mundo, valores do mundo, está se falando naquele mundo sem Deus, ao mundo deixado ao arbítrio das paixões e da vontade própria. O céu não é o oposto da terra. De fato, ele começa na terra. “Na verdade, o que aqui na terra construímos será guardado para o futuro” (GS 39).

No céu se plenifica nossa idéia de páscoa. Nossa ressurreição, como páscoa, adquirida pelo generoso sangue de Jesus vertido na cruz, nos habilita a passar da morte para a vida, libertos de toda a maldade decorrente dos nossos pecados. Na noite venturosa, como cantamos no Exultet, Jesus vencendo a morte ressuscitou, para assim proporcionar nossa ressurreição e consequente passagem aos céus. Qual um grão de trigo que cai na terra, que aparentemente morre, haveremos de ressuscitar com força, na direção do céu. Só no céu teremos a noção exata do verdadeiro sentido da páscoa. Como diz o teólogo checo L. Boroš,

O falar deve emudecer, para deixar o coração, cheio de

unção, sozinho com suas intuições. Não devemos ter medo

de pintar o céu com nossas próprias representações. As

representações humanas são também santas. Temos o

direito de humanizar o divino e o celestial, porque não

podemos eternamente equiparar-nos com a irreversível

humanização de Deus que ocorreu com a encarnação de

Cristo.

O Pai planejou este céu, desde sempre, para nós. Não podemos decepcioná-lo. Os justos vão imediatamente após sua morte para o céu, para estar com Cristo, vendo sua face sem qualquer mediação. (cf. Bento XII, Benedictus Deus, DS 1000, 1336). Cf. Bula Apostolici Regiminis, V Conc. de Latrão (1513).

Há uma visão egoísta do céu, característica dos abastados. Trata-se de uma forma que privilegia o individualismo, onde, com os amigos e os familiares, formam “grupinhos”. Seria um lugar estático, elitista, de contemplações, como o ócio do nirvana budista, ou do paraíso islâmico, sem a mínima alteridade. E, convenhamos, chato! O céu não é um lugar, mas uma realidade, a qual os transformados serão transportados. Trata-se da realização de todos os mais caros desejos do ser humano. É algo que o olho humano jamais viu: “Quando lá chegar é que serei realmente homem”, disse Santo Inácio de Antioquia. Como um mistério, o céu traz em si a essência da reconciliação, consigo, com Deus, com o próximo e com a natureza (cf. Is 11, 6-9; Ap 21, 4). Biblicamente, vamos encontrar outras ideias na descrição do céu:

• Vida eterna (Mt 19, 16.29; Jo 3, 16; 1Jo 2, 25);

• Banquete nupcial (Mt 22, 1-14; 25, 1-13; Ap 3, 20);

• Jerusalém Celeste - idéia de reconstrução (Ap 21);

• Vida abundante (Jo 3, 16; 10, 10.28; 1Jo 2, 25);

• Vitória (1Cor 9, 25; Tg 1, 12; Ap 2, 11. 26);

• Visão de Deus (1Cor 13, 12; 2Cor 3, 18; 1Jo 3, 2; Ap 5, 6-12;

14, 1-3.21).

É difícil falar sobre o céu, tamanha sua grandeza, em contraponto com nossa limitação. É a grande obra de Deus. Para referir-se a ele, só usando a imaginação e a fé, repetindo São Paulo:

Aquilo que o olho jamais viu, o ouvido jamais ouviu, nem

penetrou jamais no coração do homem: isso Deus preparou

para aqueles que o amam (1Cor 2, 9).

O fato é que saber que o céu é para sempre nos introduz no mistério da comunhão definitiva. Aquela maravilha que Deus criou para o homem, seu eterno sonho de felicidade e de vida plena, algo que os olhos jamais viram nem ou ouvidos escutaram, chamada céu, é para sempre. Lá, no dizer do Livro do Apocalipse,

Ele enxugará toda a lágrima dos olhos deles, pois nunca mais

haverá morte, nem luto, nem grito nem dor. Sim! As coisas

antigas desapareceram (Ap 21, 4).

Embora todos os postulados e credos de nossa fé cristã não cansem de afirmar que a morte, embora definitiva, é um encontro com Deus, muitas pessoas, por razões de fragilidade de crença, temores psicológicos, traumas de infância, carências ou alguns complexos de culpa, têm medo de morrer, rejeitando, no subconsciente a idéia da morte como uma comunhão definitiva.

Vista como uma ameaça e como um enigma, a morte é como que exorcizada do pensamento ocidental. Na esperança de fugir, o homem decide ignorá-la. É aquela história: Quem quer ir para o céu? Muitos levantam a mão e bradam: “Eu, eu!” Quem quer ir para o céu hoje? Poucos, ou ninguém, levantam a mão. É comum, quando dou palestras, coordeno círculos ou trabalhos sobre Bíblia ou teologia, escutar das pessoas perguntas do tipo “Como é o céu?”. É curioso que muitas pessoas se mostrem interessadas em “conhecer” como é o céu, mas nem todas buscam conhecer as condições de como fazer jus a ele. Parece que em alguns casos a procura é mais na linha da curiosidade, do aprender pelo conhecimento, do que vivenciar o mistério pelos caminhos da fé.

Por incrível que pareça, muita gente ainda imagina o céu como um lugar cheio de nuvens e fantasia, tão ao gosto das representações artísticas. Em geral, quando me perguntam pelo céu, dado minhas limitações, além do texto paulino mencionado: “Aquilo que o olho jamais viu, o ouvido jamais ouviu, nem penetrou jamais no coração do homem: isso Deus preparou para aqueles que o amam (1Cor 2, 9)”, conto uma historinha bem simples, que aprendi com os filhos de Francisco, como que uma parábola, singela porém reveladora:

Havia um convento com muitos monges. Cada um deles se dedicava a uma atividade, e todas as ações se destinavam ao bem-estar das pessoas, de dentro ou de fora do claustro. Entre tantos havia um homem singular. Ele não era ordenado, não sabia nada de teologia, não fazia discursos nem dava sermões. Ele mal sabia ler; apenas trabalhava. Tinha um invulgar senso de serviço e de participação. Por ser inculto, a ele eram cometidas as tarefas mais simples da casa. Assim, ele ajudava na limpeza, na cozinha, cortava lenha, buscava mantimentos no povoado, dava banho nos doentes e idosos, cuidava do jardim, fazia pequenos consertos e, por ainda possuir certa vitalidade, apesar da idade avançada, tocava o sino, três vezes por dia. Numa noite o anjo da morte o procurou. Ele estava na cozinha, enxugando os talheres do jantar. Ao ver o visitante, ele pediu: “eu vou com você, mas deixa-me primeiro terminar de enxugar estes talheres...”. O anjo deu meia volta e desapareceu. Meses depois voltou. O frade colhia flores no jardim. E disse: “vou contigo, sim, depois de colocar estas flores nos vasos do altar...”. De novo o anjo sumiu. Na terceira vez, o monge estava no quarto de um enfermo, dando-lhe sopa, às colheradas, na boca. De novo o adiamento: “logo em seguida, mas deixa-me alimentar esse coitado...”. O anjo foi embora e não apareceu mais. Julgando-se maduro para a colheita, e cansado para a vida terrena, o velho monge, mesmo assoberbado pelo trabalho, orou a Deus, pedindo a presença do anjo da morte. O diálogo entre eles é interessante: “Que queres, amigo?”, pergunta o anjo. O homem responde: “Tantas vezes te fiz esperar, pois estava ocupado, mas agora eu quero ir para o céu, quero ver a Deus, tenho muita fé e amor pelo Senhor e desejos de conhecer o céu. Ah, como eu quero ver o céu e viver seu clima de paz!”. O anjo sorriu e lhe respondeu: “Que aconteça como desejas, mas não verás muita coisa nova por lá, pois quem, como tu, se dispôs a servir os outros, secando os talheres, colhendo flores ou cuidando de doentes, com o amor com que fizeste, já conheceu o céu e já o viveu aqui na terra”. E o levou.

Nesse particular, a morte deixa de ter aquela visão tétrica para adquirir a perspectiva do Reino. Por isso ela deve ser uma entrega confiante. O serviço, em vida, antecipa suas alegrias. O homem, no dizer de São Francisco torna-se livre da vida terrena para viver, na morte, o céu para sempre. Recordo que minha filha Ana Maria, quando tinha uns treze anos, por ocasião da morte do avô (meu pai) disse que “...no dia em que tivermos fé, de verdade, faremos da morte uma celebração”. Essa locução, por certo inspirada, tem me ajudado, em escritos, em pregações e em eventuais trabalhos de “ministro da esperança”.

Quando nascemos, começamos a morrer. Esta é uma verdade insofismável. A cada dia nos aproximamos mais da nossa morte. Alguém tem dúvida disto? Igualmente, quando morremos, começamos a ressuscitar... A morte, na verdade, não é um mal, mas uma passagem (uma páscoa) de uma vida incerta e sujeita a fraquezas, para uma realidade nova, o céu, a vida plena. Quando oramos “... venha a nós o vosso Reino” além de pedir a graça e a presença de Deus em nossos projetos, também pedimos que os dias que nos separam do convívio direto com Deus, sejam abreviados. Sobre essa espera, há um interessante texto de São Pedro:

O que nós esperamos, de acordo com a promessa, são novos

céus e nova terra, onde habitará a justiça (2Pd 3, 13).

Em suas palavras objetivas, o apóstolo reafirma sua fé na parusia, na vinda de Jesus e no estabelecimento definitivo do Reino, do céu, no fim da história de nossas vidas. A expressão novos céus e nova terra, que aparece em outras passagens da Escritura (cf. Is 65, 17; Ap 21, 1), significa um mundo totalmente diferente do atual, com a criação renovada, isenta dos efeitos do pecado. Esse é o fim do mundo: o fim de um mundo de pecado, onde reine a paz e a glória de Deus. O “mundo novo”, ao qual chamamos de céu, após sofrer a transformação radical, totalmente amorizado e cristificado, tornar-se-á a morada eterna da justiça, da santidade e do amor. O ponto fundamental dessa transformação é a entronização de Cristo como cabeça de tudo (cf. Ef 1, 10).

Instaura-se o céu quando Deus decide armar sua tenda no

meio dos homens e permanecer com eles numa comunhão eterna, onde não há mais desgraças nem contrariedades, tudo coisas do velho éon (cf. Ap 21, 4. 27). Aqueles que conseguem viver o amor já nesta vida, trazem em si, marcas de eternidade. Foi o caso de muitos santos. Os eleitos vivem com Cristo; têm nele o melhor; encontram ali sua verdadeira identidade; seu próprio nome. “Viver no céu é estar com Cristo (Jo 14, 3; Fl 1, 23; 1Ts 4, 17)” (Catecismo 102).

Em um passado mais ou menos recente, alguns segmentos da teologia, iluminados pelas ciências sociais, afirmavam com muita ênfase que o Reino tinha início aqui na terra. O Reino, de fato, começa a ser construído aqui, mas é eminentemente escatológico. Paz, amor, comunhão, Deus-tudo-em-todos (cf. 1Cor 15, 28), como concreção final, são situações que se manifestam além das formulações irenistas de algumas correntes. O Amor está acima do romantismo; a Comunhão, aprofundada no compromisso, modelada na pericórese da Trindade, bem além da simples solidariedade e, por fim, o Chalom suplantando a vulnerável pax humana. Na morte, Cristo vem nos buscar para o céu. O Pai planejou esse céu para nós, desde todo o sempre; não podemos decepcioná-lo.