Os bispos do Ceará e a Seca - Carta Pastoral de 1983

Aloísio Cardeal Lorscheider*

Relembrando as palavras do Evangelho, nem sempre é possível dizer só coisas lindas. Na realidade, o Evangelho sempre é lindo. Mas os nossos pecados ficam achando que certas passagens do Evangelho são duras. Você deve lembrar que já para Jesus a turma de então dizia: “Quem pode ouvir estas palavras? Elas são duras (Jo 6,60). E o resultado: “Desde então muitos dos discípulos se retiraram e já não seguiam” (Jo. 6,66). Hoje acontece a mesma coisa. Há muita gente por aí que chama a Igreja Católica, no Brasil, de subversiva, comunista, dizendo que esta não é a Igreja deles, e procuram outra Igreja que fale menos duro. “Já muitos que antes estavam com igreja católica, agora já não estão mais; retiraram-se; já não a seguem”. Para eles, a palavra da Igreja, que é a palavra do Evangelho lida para a nossa situação, para nosso contexto, é muito dura ou muito forte.

Nesta semana, os bispos do Ceará estiveram reunidos e, entre outros trabalhos, prepararam um documento, intitulado: “Os bispos do Ceará e a seca”. É um documento muito realista. Ele procura expor a situação como os nossos agricultores e pescadores, os mais atingidos pela seca, a expuseram. Não é um trabalho científico, mas é um trabalho sério, enquanto faz ouvir a voz dos que mais sofrem, dos que estão sendo torturados pela fome e pela sede. A gente nem sabe o que é pior: fome ou sede. A maioria diz que a sede é pior. O fato é que o nosso interior e a periferia de nossas cidades é atormentada pela fome e pela sede. No meio desta emergência, o que aparece? Aparece que há muita gente sem escrúpulos aproveitando-se da situação de tragédia desses pobres. E esses aproveitadores ainda atrevem-se a chamar cristãos.

Nem que fossem só pagãos deveriam fazê-lo; muito menos se são cristãos. Se há um pouco de sensibilidade humana numa criatura, ela nunca deve se aproveitar da situação difícil onde outra se encontra para explorar e oprimir mais ainda. Deve, ao contrário, fazer tudo para avaliar o sofrimento do outro. Você pode entender muito bem que os Bispos, Pastores de seu povo, diante de uma injustiça tão clamorosa, não podiam calar-se. Seria omissão pecaminosa. Os Bispos todos do Ceará fizeram questão de falar. Será que isto já não diz muito? Será que isto não deveria fazer pensar a todos?

Além do difícil problema dos agricultores, há o problema dos operários da cidade; há o problema das professoras do interior; há o problema dos professores e professoras municipais e estaduais; há o problema de tanta gente, em Fortaleza e nas demais cidades, que estão sem emprego, que não têm o que comer decentemente. Do outro lado, porém, há um grupo de gente que não está passando este sofrimento. Estão até muito bem. Fazem festa. Fazem o seu fim de semana, realizam os seus jantares ou banquetes. Enchem as suas piscinas. Têm água à sua disposição. E pouco se lembram dos outros. Ganham ótimos salários, salários altos, e que nunca sofrem atraso.

Você entende que não é por inveja ou para despertar a raiva de vocês contra essas pessoas: seria anti-evangélico; seria pecaminoso. Se o digo, é apenas para fazer pensar, para fazer refletir. Numa emergência como a nossa, mais do que nunca, é preciso despertar a própria responsabilidade. E não se trata, por parte da Igreja, de reclamar para o povo a esmola das sobras que caem da mesa dos ricos, mas a repartição mais justa e equitativa dos bens. A pergunta que eu faço é esta: por que só alguns podem comer do bom e do melhor, e a maioria tem que dormir e viver com fome? Por que alguns, até estrangeiros, podem adquirir, por dinheiro, milhares de hectares de terra para criar gado e exportar carne, e nossa pobre gente não pode continuar cultivando o pedaço de terra onde nasceu e se criou ou já vive e trabalha há dezenas de anos.

E ainda, por que só alguns têm o poder de decisão? Por que alguns ganham milhões de cruzeiros por mês, e sempre em dia, e tantos não fazem nem sequer o salário-mínimo? Há países onde a diferença entre o salário mínimo e máximo não excede a 12 vezes, enquanto aqui, no Brasil, entre nós, passa de 200 vezes. Será que aí também não existe uma injustiça? Esta diferença de nível salarial será que é justa? E será que é fraterna? E o que menos se entende, é que estes salários altos sempre são pagos em dia, ao passo que os salários baixos oneram muito a nação e atrasam.

É assim que se ouve dizer; é assim que se escreve. Será que os salários baixos oneram a nação ou são os salários altos que a oneram? Você sabia o que significa “onerar”? “Onerar” significa o mesmo do que “pensar”. Pesam sobre a Nação. Nunca ouvi dizer que pessoas de salários muito altos tenham feito greve por causa do atraso; agora, de gente ganhando salário baixo atrasado, já ouvi muito que se vêem obrigados a fazer greve para receber o que é deles. Fazer greve para o que é da gente, é, pelo menos, muito estranho. E quanto isto acontece, ainda chamam isto de baderna. Será que acusar pessoas como baderneiras ou baderneiros, quando exigem o que lhes compete por direito, está certo? É justo? É fraterno?

Peço que ninguém fique com raiva, mas pense.

*Arcebispo Metropolitano de Fortaleza (1973-1995)

ENCONTRO COM O PASTOR, aos 19/6/83.

Matéria no livro: “A Ternura de um Pastor” – Pe. Geovane Saraiva

Geovane Saraiva
Enviado por Geovane Saraiva em 15/04/2013
Reeditado em 15/04/2013
Código do texto: T4241786
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.