O LEGADO DE CONSTANTINO

Alderi Souza de Matos

Há exatos 1.700 anos ocorreu um evento marcante na história do cristianismo -- a conversão do imperador Constantino. No outono de 312, junto à ponte Mílvia, nas proximidades de Roma, o jovem general derrotou o exército mais numeroso de seu rival Maxêncio e se tornou o líder inconteste da parte ocidental do Império Romano. Segundo consta, na véspera do confronto ele teve um sonho no qual viu o lábaro (as duas primeiras letras sobrepostas do nome de Cristo em grego) e foi instruído a usá-lo como proteção em suas batalhas.

A autenticidade da conversão de Constantino é uma questão debatida. Ele manteve o título de “Pontifex Maximus”, que era usado pelo sumo sacerdote pagão, e durante uma década suas moedas tiveram a efígie de deuses romanos, em especial do Sol invencível (“Sol invictus”), do qual tinha sido devoto. Além disso, só recebeu o batismo no final da vida, ainda que essa prática não fosse incomum. Todavia, ele se identificou claramente com a fé cristã e suas atitudes em relação à igreja causaram um impacto profundo na trajetória posterior do cristianismo.

Pouco antes de Constantino, os cristãos vinham sendo cruelmente perseguidos por outros imperadores. O novo governante mudou radicalmente essa situação ao proclamar um decreto (Edito de Milão), no ano 313, concedendo ampla liberdade de consciência, dando à fé cristã igualdade com outros cultos e ordenando a devolução de todas as propriedades eclesiásticas que haviam sido confiscadas. Além disso, ele concedeu imunidades ao clero, fez muitas doações à igreja, decretou o domingo como um dia de repouso e atribuiu aos bispos certas funções judiciais. Especialmente significativa foi a interferência do imperador em uma questão teológica -- a “controvérsia ariana”.

Ário, um presbítero de Alexandria, no Egito, estava ensinando que o Verbo pré-existente, o Filho de Deus, não tinha igualdade com o Pai, tendo sido criado antes da existência do mundo. O Filho teria sido a primeira criatura de Deus, não sendo, portanto, eterno e divino como o Pai. Esse ensino causou um grande conflito que ameaçou a unidade da igreja e, por extensão, do próprio império. Constantino convocou um sínodo de bispos para resolver a disputa, o que veio a ser o primeiro concílio geral da igreja, reunido na cidade de Niceia em 325. O credo aprovado por esse conclave declarou que Cristo era “consubstancial” com o Pai, ou seja, tinha a mesma essência e eternidade que o Pai.

Foi algo absolutamente inédito o fato de um imperador, ou seja, um líder secular, ter convocado e presidido um concílio eclesiástico, tendo inclusive dado alguns palpites quanto ao vocabulário do Credo de Niceia. No princípio, os bispos festejaram as ações desse novo governante cristão em benefício da fé. Com o passar do tempo, verificou-se que se tratava de uma espada de dois gumes: da mesma maneira que concedeu benesses à igreja o imperador se sentiu no direito de interferir na vida da instituição, adotando políticas que podiam ir contra os interesses da mesma. No final da sua vida, Constantino vacilou em suas convicções e acabou apoiando o partido herético, tendo sido batizado em seu leito de morte pelo bispo ariano Eusébio de Nicomédia (337). Só mais tarde a causa trinitária iria triunfar de modo definitivo.

As iniciativas de Constantino tiveram fortes repercussões para a igreja durante mais de 1.500 anos. Com ele, surgiu uma estreita aliança entre a igreja e o estado que se aprofundou nos séculos seguintes e deu origem ao fenômeno da “cristandade”, a sociedade homogênea e coesa nos âmbitos político e religioso que caracterizou a Idade Média e perdurou em alguns países até o século 19. O estado geralmente se beneficiou dessa associação, não se podendo dizer o mesmo da igreja, que muitas vezes sofreu com as intromissões do poder estatal. Porém, o legado de Constantino foi ainda mais profundo, por causa das transformações que produziu na própria identidade da igreja.

O historiador Mark Noll observa que, nos três primeiros séculos, a igreja havia existido como uma comunidade peregrina, “que não estava em casa em parte alguma do mundo”, que não tinha nenhuma segurança permanente nesta vida. Com a conversão do imperador, isso gradualmente se desfez. Em troca de alguns ganhos positivos, como o apoio que a igreja recebeu dos governantes em sua missão evangelizadora e civilizadora junto aos povos bárbaros, foi necessário pagar um alto preço. Noll lembra que a partir do quarto século os anseios de poder mundano e as preocupações temporais assumiram uma importância cada vez maior na vida da igreja. As igrejas “oficiais” com frequência usaram o poder estatal para reprimir os dissidentes religiosos.

Os cristãos de hoje têm muito a aprender com o legado de Constantino. Primeiro, as igrejas nunca devem fazer alianças com o estado, ou com quaisquer grupos políticos e ideológicos, porque isso irá corrompê-las e desviá-las de sua missão. É importante preservar a valiosa conquista moderna da separação entre a igreja e o estado. Segundo, isso não significa que as comunidades de fé devem se isolar da esfera pública e das questões sociais, retraindo-se em guetos eclesiásticos. Terceiro, as igrejas devem preservar sua liberdade para aplaudir ou censurar as ações do poder público, conforme a necessidade. Quarto, elas devem lembrar-se continuamente de que seus valores, instrumentos e fins são acima de tudo espirituais -- o reino de Deus.

Alderi Souza de Matos • é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e historiador oficial da Igreja Presbiteriana do Brasil. É autor de A Caminhada Cristã na História e “Os Pioneiros Presbiterianos do Brasil”. asdm@mackenzie.com.br