OS DOIS MONTES
Lc 9,28-36; 22,39-46
Dos vários montes que são merecedores de destaque na geografia bíblica e revestem de uma beleza suntuosa a paisagem da terra de Canaã, dois deles me chamam a atenção de uma maneira particularmente reveladora. Não pela beleza geofísica, nem pelo porte; mas por evocarem as duas situações mais antagônicas de toda a vida pública de Jesus.
O evangelista Marcos, no capítulo nove do Evangelho, narra com linguagem simples e direta o que aconteceu naquele dia. Jesus tomou três dos seus apóstolos – Pedro, Tiago e João - e os conduziu ao cimo do monte Tabor. Ali se transfigurou diante deles.
Jesus sabia o que se passava em seus corações. Eram os mais próximos, os mais íntimos do Senhor, mas talvez os mais vacilantes, ou com toda a certeza, os mais incoerentes. Algumas passagens bíblicas confirmam esta assertiva. Na sua viagem sem retorno a Jerusalém, fez-se necessário que Jesus repreendesse os filhos de Zebedeu, que discutiam acirradamente qual dos dois ocuparia a direita de Jesus quando Ele estivesse no seu reino. O que demonstra a ambição e o egocentrismo dos dois em detrimento da fé e do amor. De outra feita, Pedro que proclamara pelo Espírito Santo, “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo”, é atingido por Jesus com as palavras mais duras que o Evangelho registrou: “Afasta-te de mim, satanás”. Aqueles que tinham maior intimidade, ainda não haviam entendido nada. Parece não haver bastado os milagres, os prodígios e os sinais. E Jesus, na sua paciência sem limites, e extremada misericórdia, se compadece deles, de suas limitações e fraquezas, e lhes dá em vida a prova mais inconteste da sua divindade: a Transfiguração. Era a maneira de dizer sem palavras: “Creiam, não claudiquem mais: “Eu e o Pai somos um.” Suas vestes resplandeciam. Sua face brilhava como o sol. Jesus revela-lhes a sua divindade. Era Deus e Homem. É Deus e Homem. Ele humanizou-se para que a nossa humanidade fosse divinizada. E como autenticação desta divindade, sendo portanto o Senhor dos vivos e dos mortos, Jesus permite que subam do Hades, da mansão dos mortos, Moisés e Elias, que conversam com Ele. E eles vêem também a glória de Deus! Vêem e se extasiam diante de indescritível e inefável beleza. Então formou-se uma nuvem sobre eles, e da nuvem ouve-se uma voz: “Este é o meu Filho muito amado, ouvi-o!” E quando retornam como precursores, anunciam e proclamam aos que jazem na região da morte “que Jesus é verdadeiramente Aquele que há de vir.” Pedro, Tiago e João, diante deste momento em que foram visitados pelo céu, só conseguem exclamar: “Mestre, é bom estarmos aqui!” Ao descerem. carregam no coração uma certeza e um sentimento: Jesus é o Cristo; e o monte Tabor é aquele sobre o qual o céu tocou a terra.
O outro monte ainda traz arraigadas no seu solo, testemunhas vivas dos momentos mais dolorosos pelos quais Jesus passou. O Monte das Oliveiras situa-se na região oriental de Jerusalém. Contém no seu setor ocidental o Jardim do Getsêmani, onde olivais, vinhedos e figueiras, além de muitas outras árvores frutíferas e ornamentais, compõem um cenário que enche os olhos e pacifica o coração. Era ali que Jesus costumava freqüentar com os seus discípulos nos momentos de oração. Aquela noite de quinta-feira, no entanto, prenunciava dor, abandono e solidão.
Após “comer ardentemente esta Páscoa” e instituir o Memorial de sua paixão, morte e ressurreição, Jesus põe-se de pé, desce as escadas do Cenáculo, caminha resolutamente pelas ruas estreitas de Jerusalém e atravessa o Vale do Cedron. Os discípulos o seguem. O clarão da lua cheia ilumina o caminho. A noite se reveste de silêncio. É possível ouvir o ruído de passos apressados pisando nas pedras nuas. Respirações ofegantes, mais pela ansiedade do que pela distância percorrida, são perceptíveis de longe. Os corações denunciam a inquietude, através de batimentos acelerados. A natureza dorme. A sombra de uma nuvem projeta-se sobre o monte. E nas sombras da noite, Pedro, Tiago e João, juntamente com Jesus. adentram ao Jardim.
“Jesus começou a entristecer-se e a angustiar-se.” Os discípulos percebem. Seu olhar revela o que se passa em sua alma. Seu rosto torna-se sombrio. Seus gestos, tensos. E em meio à tormenta, o silêncio é rompido: “Minha alma está triste até a morte. Ficai aqui e vigiai comigo.” A tristeza da alma é intraduzível. O Criador pede ajuda à criatura. A Divindade que revestiu-se de nossa carne, assumiu as nossas limitações, tomou sobre si as nossas iniqüidades “fazendo-se homem igual a mós, com exceção do pecado”, clama por ajuda. O medo da dor, o medo do abandono, o medo da solidão, o medo da morte... O medo, o medo, o medo... Nada faz Jesus tão humano! É na fraqueza que Ele nos manifesta a sua humanidade. “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice!” O cálice das dores do mundo, das angústias do mundo, dos amargores do mundo, das desesperanças do mundo, das infidelidades do mundo, do desamor do mundo. Era este o cálice que Jesus haveria de beber. Tão cruento e tão cruel que os capilares não suportando a pressão sangüínea, rompiam-se, fazendo jorrar dos seus poros suor em forma de sangue. Em frações de segundo que duraram uma eternidade, Ele cai em si e acolhe o que o Pai escolheu: “ Porém, não se faça a minha vontade e sim, a tua.”
Dois Montes. Duas Realidades. Um Jardim. Três testemunhas. Você. Jesus. Um questionamento: “Quem dizem os homens que eu sou?” Há dois mil anos atrás o primeiro Papa respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo.” Há pouco tempo, também um Papa cheio do Espírito Santo, João Paulo II, talvez refletindo sobre o Monte Tabor e o Jardim do Getsêmani, respondeu à pergunta de Jesus, dizendo: “Jesus, rosto divino do Homem; Jesus, rosto Humano de Deus.”
ALMacêdo
23.07.2006