A torre de Babel - Carta 50
A TORRE DE BABEL
Um religioso de Petrópolis (RJ) pede subsídios sobre o
tema “Torre de Babel”.
Vamos construir uma torre que chegue até o céu, para ficarmos
famosos e não nos dispersarmos pela superfície da terra (Gn 11,5).
O episódio da chamada “torre de Babel” faz parte daquele conjunto literário que encontramos na “parte mitológica” (Gn 1–11) da Bíblia. Quando éramos crianças, nos acostumamos a ver, nos livros de História Sagrada, maravilhados, as imagens dessa torre, como um grande cilindro de tijolos unidos com piche, que jogava fumaça para o alto e tocava as nuvens, com enormes escadas (uma novidade naquela época) que envolviam o prédio pelo lado de fora, dando ao edifício um aspecto majestoso e de mistério.
A torre de Babel, segundo a narrativa bíblica no livro do Gênesis (11,1-9), foi uma obra construída por um povo desconhecido, possivelmente ancestrais dos semitas, provavelmente na região de Senaar, com o objetivo que seu cume atingisse os céus para chegarem a Deus e estarem mais perto dele. Isto era uma afronta dos homens para Deus, pois eles queriam se igualar ao Criador. Não é difícil enxergar nessa atitude um gesto daquela mesma soberba do pecado de Adão. Embora o estilo da narrativa se revele uma alegoria, o ponto de interesse da história é a soberba humana, na busca de uma auto-suficiência com vistas ao poder de Deus.
O fato é que depois que terminou o dilúvio, outro evento mitológico, Deus deu ordens para que aquele resto de humanidade que fora preservado pela figura da arca de Noé, se espalhasse pelo mundo conhecido, povoando-o como em um novo processo de domínio e colonização da terra. Sem ter sido sensibilizado pela oferta de Deus, que proveu a salvação daquele grupo, as pessoas resolveram, quem sabe repetindo os erros e pecados de Sodoma e Gomorra, desobederem ao Criador, vivendo conforme sua maneira de pensar e entregues às paixões. Indignado com este fato, Deus resolve “descer” para confundir a língua deles (v. 7).
Se em Ex 3,8 ele decide descer para defender seu povo contra as injustiças do faraó, aqui ele empreende uma atitude de punição contra a pretensão do orgulho dos construtores infiéis. O Senhor revela sua justiça. Quando o povo é oprimido ele vem para lilbertar e vingar, como no caso do Egito. Pelo contrário, diante da arrogância e desobediência ele desce para punir e confundir.
A partir deste episódio, Babel passa a ser sinônimo de confusão ou desordem, embora, em seu sentido literal a palavra derive do acádico bab-ili (porta de Deus). As línguas confundidas em Babel só seriam harmonizadas em Pentecostes (cf. At 2) e na consumação da história humana (cf. Ap 21-22). O que foi confundido em Babel seria restaurado pelo Espírito Santo, no tempo do cristianismo, na instauração do mistério da Igreja. Deus não apenas parou o projeto de Babel como fez com que a ideologia perversa da torre ruisse. Depois castigou os homens de maneira que estes, mesmo falando a mesma língua até então conhecida, não se entendessem mais e não pudessem voltar a construir um agrupamento com esse propósito.
Se o Senhor não constrói a casa, em vão trabalham os
operários (cf. Sl 127).
A localização dessa hipotética construção teria sido em uma esplêndida planície entre os rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia (atual Iraque), numa região célebre por sua situação estratégica e pela fertilidade de suas terras. Há quem atribua a uma dessas construções, a torre de Migdol, alta, forte, e vistosa, semelhante à Babel bíblica.
Todos os zigurates da Mesopotâmia eram motivo de orgulho nacional, para as autoridades e para os construtores. A torre mais famosa da região era chamada de “elemenanki”, a casa de superioridade, morada do orgulho ou casa dos fundamentos do céu. Em geral, tais construções eram dedicadas ao deus Marduk. O anseio de muitos povos da Antiguidade era “tocar” as coisas do alto, subir onde moravam os deuses e, desta forma obter mais qualidade de vida, poder e sabedoria: a antiga tentaçção do paraíso. Quanto mais alta a torre, pensavam, mais fácil seria a comunicação com a divindade. Enquanto o homem quis subir, Deus resolveu descer para ver essa soberba de perto. Diz a Bíblia que...
O mundo inteiro falava a mesma língua, com as mesmas
palavras. Ao emigrar do Oriente, os homens encontraram uma
planície no país de Senaar, e aí se estabeleeram. E disseram
uns aos outros: “Vamos fazer tijolos e cozê-los, no fogo!”
Utilizaram tijolos ao invés de pedras, e piche no ligar da
argamassa. Disseram: “Vamos construir uma cidade e uma torre
que chegue até o céu, para ficarmos famosos e não nos
dispersarmos pela superfície da terra” (Gn 11,1-5).
A grande lição do mito “torre de Babel” aponta o modelo das grandes potências, símbolo de uma cidade deformada pela auto-suficiência, que produz uma estrutura injusta e afastada do projeto de Deus. Quando o egoísmo dirige a vida em um grupo social, as palavras não servem mais para a comunicação, mas para a dispersão. É quando se diz que “esse pessoal não fala a mesma língua”. Hoje, o prédio mais alto do mundo é o Burj Dubai, com 512 metros, superando os antigos recordistas Taipei (508), Kuala Lumpur Center (452), Sears Towers (442) e Jin Mao Xangai (421). Mesmo assim, nenhum deles toca o céu.
A cultura do Oriente Médio sempre teve preferência pelos “lugares altos”, como demonstração de poder e superioridade. Os locais de adoração dos deuses cananeus e fenícios ocorriam em lugares altos, onde eram erigidos altares às mais variadas divindades. Há torres de culto, não só no Oriente Médio, mas também no Extremo Oriente (China, India, Japão e Tailândia), bem como na América (do México ao sul do Yucatan).
Como a cultura israelita, durante o período do exílio (a partir do século VI a.C.), quando foi feita a redação final do Livro do Gênesis, era em sua maioria de pessoas egressas do meio rural, os zigurates babilônicos surgiam como uma ameaça urbana. Javé, na visão dos hagiógrafos hebraicos, vai intervir para botar abaixo a torre que se manifesta contrária ao seu projeto. Quando teria ocorrido o episódio de Babel? Nâo se sabe! Teria ocorrido, – se é que ocorreu da forma como é contado, pois se trata de mitologia – em um período ágrafo, sem escrita e sem uma datação definida, há alguns milhões de anos, tempo dos dilúvios (cf. Gn 7), com gigantes vivendo na terra (cf. Gn 6,4), etc.
A cronologia bíblica tem início em Abraão, mais ou menos 2000 aC (cf. Gn 12). Antes disto, qualquer tentativa de descobrir um tempo resvala no terreno da especulação. Quando eu disse “se é que ocorreu” não estou querendo afirmar que a Bíblia contém mentiras ou estabelece fantasias para confundir os leitores. Nâo! O que quero dizer é que os autores do texto, escrito alguns milhares de anos após a ocorrência do fato (séc. XIII a.C , aproximadamente), sofreram com a falta de detalhes testemunhais e tambem com a pobreza linguistica dos dialetos daqueça época. Quando se diz que na narrativa da Criação há relatos mitológicos, não se está negando sua ocorrência. Deus criou e continua criando.
O que os estudiosos discutem é o como e o quando. A Criaçâo divina, ex nihilo em si é um artigo de fé, irretorquível. Igualmente, fatos como o Dilúvio e a Torre de Babel podem não ter acontecido exatamente com estão escritos, mas evidenciam que, Deus cria o mundo, salva seus eleitos (no dilúvio) e se revolta contra os desobedientes (o povo de Babel). A maneira de contar pode ser diversa, mas a ação divina em si é inegável.
Na mitologia grega, os titãs quiseram atingir a morada dos deuses e foram punidos. Zeus confundiu suas línguas para que neles nunca mais engendrassem qualquer rebelião oriunda da soberba. A subida acaba em queda.
A deificação da hierarquia como forma de tiranizar os subordinados nos remete ao pecado dos tempos dos soberbos de Senaar. Aquela tendência é observada na humanidade, desde aquele tempo até os dias de hoje. A opressão hoje tem nome de “salário mínimo”, “turnover”, “qualidade total”, “programa de demissão voluntária”, “avaliação de desempenho”, “banco de horas”, “férias negociadas”, etc.
Como leitura histórica da narrativa não cremos que Babel tenha existido como uma torre que chegasse ao céu. Com fulcro na teologia criacional, pode-se intuir a ação de Deus contra a soberba, a exclusão e a opressão. Há tempos eu andei por Brasília. Lá, olhando aquelas suntuosas obras de arquitetura, pude contemplar a beleza do prédio do Congresso Nacional. Sem querer acabei por me lembrar da Torre de Babel. Ali também, a corrupção, o egoísmo, o orgulho, a insensibilidade com as causas do povo e o distanciamento do projeto de Deus lembram, em muito, a confusão e a imoralidade de Babel.
Com surpreendente vaidade e soberba, a humanidade quis – no caso do zigurate em Babel – subir até o céu, mostrar a Deus do que o homem seria capaz. Semelhante ao pecado de Adão, ambicionando ser igual a Deus, o homem quis subir até ele, mostrar suas capacidades de criar alguma coisa grandiosa, causando indignação no próprio Deus. A torre, relatada em Gn 11 seria um dos tantos zigurates, mais de 3000, que a ciência descobriu a partir do século XVIII a.C. nos tell (colinas de areia que cobrem antigos sítios arqueológicos) do Oriente Médio, do Iraque ao Egito.
Os antigos semitas do Oriente Médio chamavam esses zigurates de Migdol, ou migdal, uma palavra hebraica que significa torre. Fisicamente, pode significar terras fortificadas, isto é, uma cidade murada, um castelo, ou terrenos elevados, como em um canteiro, semelhante a uma plataforma, possivelmente um vigia. No sentido figurado, possui conotações de autoridade ou de orgulho. Seu uso remonta aos princípios da História.
Ao contrário da ordem de Deus, que era de se espalharem depois do dilúvio, aquele povo preferiu se aglutinar. Há aqui uma rejeição aos sistemas nômade e agropastoril tradicionais, dando lugar a um agrupamento urbano, sedentário. O ato divino de confundir a língua aponta para a dificuldade de levarem adiante o projeto de afronta à ordem do Criador. O fato é que hoje existem ruínas de diversos zigurates no Oriente Médio, sem que nenhuma autoridade arqueológica tenha conseguido identificá-los como a “torre de Babel” mencionada na Bíblia ou nas literaturas paralelas.
O desejo do homem de chegar ao céu, de construir uma torre que espantasse o próprio Deus, e ali congregasse toda a humanidade não logrou eficácia. O projeto camponês e javista que aparece em Gn 11 é nitidamente marcado pela diversidade cultural. Antes, porém, da visão teológica há que se dirigir o foco do episódio para a antropologia. O fato de Deus descer para ver o que faziam e confundir a língua do povo é outra metáfora utilizada pelo autor para explicar o que ele não sabia: a origem das línguas da humanidade.
Igualmente, nos dias de hoje, a discórdia em termos de exploração, escravidão, violência e dominação são atos contrários ao projeto de Deus, exposto em Gn 1-2. O ímpio não fala a língua de Deus (o amor), mas a linguagem do mundo (a discórdia do dinheiro e do consumo). A visão da sociedade moderna aponta para uma grosseira ruptura multidimensional (com Deus, com o próximo, com a natureza e com os cosmos). Na busca eminentemente teológica encontramos em I. Mazzarolo uma interessante e pedagógica visão mística:
Babel é uma reflexão profunda sobre a questão do pecado
individual e social. O objeto do relato bíblico é fazer uma
reflexão teológica sobre o problema humano da manipulação da
justiça, da verdade e do bem. (in: Gn 1-11. E assim tudo
começou. Rio, 2003).
Qual a pedagogia teológica que o autor sagrado quer passar aos seus futuros leitores sobre o mito da torre de Babel? O que ele quis/quer dizer é que a torre enfeixa uma idéia de reducionismo sociopolítico, deixando clara uma atitude de não-participação, aliada a uma falta de abertura ao projeto divino. O que fica, como lição, da história da grande torre?
 o pecado de Babel continua sendo cometido todos os dias;
 aquelas atitudes eram/são contrárias do plano de Deus;
 havia/há a imposição radical de uma uniformidade, sem
chances de adoção de outras alternativas;
 é pecado construir, não para o bem-comum, mas por vaidade;
 a síntese da opressão moderna está nas “grandes torres”
(bancos, empresas públicas, corporações, empreiteiras,
tribunais, ministérios, poderes da República, etc.) onde não
há justiça nem decência.
A idéia da “confusão das línguas” é outra metáfora que aponta (e diagnostica) um problema social e comportamental. Hoje em dia, em muitas famílias, escolas, comunidades religiosas, ambientes de trabalho, se observa muitos desajustes de idéias e objetivos, a ponto de se afirmar “ali, aquela pessoa não fala a mesma língua”. Os fariseus e Jesus e seus seguidores não falavam o mesmo idioma, embora a língua fosse a mesma. Às vezes, nosso coração e nossa mente também trabalham como uma torre de Babel.
Do jeito que é colocado, o episódio da grande torre de Senaar, a impiedade de Sodoma, o dilúvio, o assassinato de Abel e a desobediência de Adão e Eva, mesmo dentro de um contexto mitológico, formam as cinco colunas que sustem a organização do mal no Antigo Testamento. A rigor, o desajuste de hoje, tudo dimana desses cinco pontos primordiais vistos acima.