A falácia das provas da existência de Deus de Santo Anselmo

Breve biografia de Santo Anselmo

Conforme Boehner e Gilson (2008, p. 255), Anselmo, ou Santo Anselmo, nasceu de família nobre, na cidade de Aosta, próximo à Suíça, no ano de 1033 d. C. Em 1060, a contragosto de seu pai, ingressou no mosteiro beneditino de Santa Maria de Bec, na Normandia.

“O próprio prior do mosteiro Lanfranco (natural de Pavia) iniciou-o na disciplina e na ciência monástica. Quando da nomeação de Lanfranco para abade do mosteiro de S. Estevão em Caen, em 1063, Anselmo sucedeu-lho como prior. Foi durante os seus dez anos de priorado que o jovem pensador [...] compôs suas obras principais. (2008, p. 255)

Em 1073, Anselmo torna-se abade no mosteiro de Bec e posteriormente, em 1093, é nomeado arcebispo da Cantuária pelo enfermo rei Guilherme II, que só o fez, no entanto, pela “ameaça de se ver privado dos últimos sacramentos” (2008, p. 256). Anselmo passou os últimos anos de sua vida, conforme Reale (2003, p. 147) em Canterbury, onde morreu em 1109. Atualmente, Anselmo da Cantuária, como também é conhecido, é venerado e celebrado pela igreja, no dia 21 de abril, como santo e doutor.

Na esteira do pensamento de Santo Agostinho, Anselmo de Aosta desenvolveu sua contribuição teológica em diversas obras. De forma não sistemática, ele elaborou uma “teologia centrada no instrumento da razão, a ponto de ter sido chamado de ‘o primeiro escolástico autêntico’” (Reale, 2003, p. 148) ou mesmo o “Pai da Escolástica” (Boehner e Gilson, 2008, p. 255). Dentre as suas obras destacam-se duas no que se refere à empresa de provar a existência de Deus: Monologium e Proslogium. A primeira trata das provas a posteriori da existência de Deus. A segunda, da prova a priori, “onde formula o argumento ontológico”. (Reale, 2003, p. 148). Dentro desse enfoque, o presente trabalho pretende escrutinar o teor dessas obras, objetivando descobrir em que consistem as provas da existência de Deus para S. Anselmo.

Os Pressupostos Anselmianos

Antes de tudo, cumpre salientar que Anselmo iniciou seu projeto demonstrativo da existência de Deus, pela via do Monologiun, em função da insistência dos monges do mosteiro de S. Maria de Bec, os quais, embora crentes dedicados e fervorosos, “não estavam inteiramente satisfeitos com as Escrituras Sagradas [...] sentiam necessidade de um alimento intelectual superior, que lhes desse as mesmas certezas da revelação bíblica, mas de um ponto de vista exclusivamente racional.” (Anselmo, 2012)

Com essa reivindicação, o projeto de Anselmo evita o recurso à autoridade da Bíblia, buscando sua fundamentação na lógica pura, e prioriza a exposição de argumentos simples visando ao mais fácil alcance da compreensão, de modo que a verdade da existência de Deus possa se tornar racionalmente evidente.

Sem prejuízo para a racionalidade, todavia, o ponto de partida de Anselmo, sendo um intransigente seguidor de S. Agostinho, é que a fé está acima da razão, de modo que “a investigação da verdade se transforma numa tarefa sagrada” (Boehner e Gilson, 2008, p. 256) e é a partir da fé que se pode chegar às verdades supremas. Ou seja, Anselmo concede precedência à fé, mas não se porta como os antidialéticos que recusam o uso da razão. Para ele, a fé é o ponto de partida, mas a razão também é uma fonte de conhecimento que pode e deve ser utilizada sem nenhum inconveniente.

Ancorado na verdade última e única que é Deus, isto é, a idéia de Deus, Anselmo descobre uma conexão necessária entre a essência e a existência, que lhe permite transitar, sem embaraços, da metafísica para a realidade.

Nesse sentido, Anselmo evidencia, posteriormente, o pensamento que já se encontra abrigado como premissa de suas teses de comprovação da existência de Deus. Trata-se do seu pequeno “Diálogus de Veritate”, escrito em 1085, no qual discorre sobre a existência das “várias espécies de verdade” (2008, p. 258): a dos juízos, a do pensamento, a da vontade e a das essências.

Particularmente, a verdade das essências está diretamente imbricada com sua proposta de comprovar a existência de Deus, em especial, com o argumento ontológico, em que Deus é a verdade suprema, invisível, mas que pode ser percebida pelo espírito. E Deus é a verdade incausada, mas a causa e o télos de todas as demais verdades, onde “todos os seres diversos de Deus [...] têm de realizar aquilo que devem ser” (2008, p. 258), e a Ele deságuam pela via da retidão ou retitude.

Sendo Deus a suma verdade, a causa, a medida e o fim de todas as verdades, não há, em última instância, senão uma única verdade.

E só atendendo a este nexo profundo entre as verdades particulares e a verdade única que se poderá compreender o argumento da existência de Deus a partir da verdade. O próprio Anselmo, aliás, não deixou de insinuá-lo. Pela mesma razão se vê que a proposição anselmiana implica a rejeição de toda e qualquer forma de nominalismo. (2008, p. 260 e 261)

Desse modo, Anselmo não nega sua herança platônico-realista ao conceder substancialidade ao mundo transcendente. Os universais, nesse sentido, são concebidos como realidades em si, objetivas e autônomas, e não como simples conceitos e sons formulados subjetivamente a partir de experiências empíricas. Nessa direção,

São quatro as linhas de pensamento que vêm confluir nesta doutrina de Anselmo: a interioridade das essências em relação aos indivíduos, a realidade dos universais, a independência da verdade em relação às coisas das quais é predicada, e a existência da verdade em Deus. (2008, p. 261)

Das Provas a Posteriori da Existência de Deus

Em 1076, Anselmo formula, no seu Monologiun – que trata, dentre outros assuntos, da Santíssima Trindade e dos atributos de Deus – as quatro provas da existência de Deus a partir mesmo da experiência sensível no mundo. Reale assim as resume:

1) a primeira parte da existência de coisas boas para remontar a Bondade absoluta;

2) a segunda parte da variedade das grandezas para chegar a uma suma grandeza, da qual as outras participam;

3) a terceira baseia-se sobre o conceito de causa: tudo o que é existe por causa de alguma coisa; é preciso, portanto, admitir um Ser supremo em virtude do qual existem todas as coisas;

4) a quarta se baseia sobre os graus de perfeição que remetem a urna perfeição suma.

Estas provas subentendem urna concepção realista dos universais, que faz aos conceitos das realidades existentes corresponder ldeias universais e arquetípicas subjacentes na mente de Deus, e usadas como modelos da criação. (2003, p. 147)

Na primeira prova, Anselmo argumenta que existe algo sumamente bom, suficiente por si mesmo, do qual todas as outras coisas julgadas boas derivam. Para refutar a aparência de que as coisas não sejam boas em função de algo em comum (superior), Anselmo apresenta o exemplo do cavalo que seria bom por ser forte e veloz; entretanto, um ladrão também poderia apresentar as mesmas qualidades e nem por isso deixaria de ser mau. Portanto, o cavalo seria bom, antes, por ser útil, e o ladrão mau por ser danoso. Mas, antes mesmo de que algo seja bom por ser útil, saudável, honesto ou justo, ele o é por que é bom.

Anselmo, assim, tenta demonstrar a existência da bondade por si mesma por intermédio de uma recondução à origem. Mais que isso, que não havendo um fundamento próprio para a valoração dos bens restantes, deduz-se que esta não procede de si mesma, senão da bondade suprema, medida de todas as outras, suficiente em si mesma. Há, portanto, uma bondade suprema, fundamental, da qual decorre mais ou menos bondade a todas as coisas boas.

Com este mesmo método demonstrativo, a segunda e a quarta provas seguem, a seu modo, o argumento da primeira, isto é, da mesma forma que Anselmo reconduz a diversidade de coisas boas para uma bondade suprema, na segunda, ele amplia sua base argumentando sobre a multiplicidade de grandezas (não espaciais) dos seres particulares, das quais se infere a necessidade de – não possuindo dignidade em si mesmas – derivação qualitativa a algo maior, soberanamente grande, isto é, que seja superior ou melhor hierarquicamente que todas as demais.

No mesmo raciocínio, a quarta prova do Monologion se assenta na questão dos graus de perfeição. Com efeito, Anselmo afirma que um cavalo é melhor que a madeira, e o homem melhor que o cavalo. Para ele não há como duvidar disso. Portanto, existem algumas naturezas que seriam melhores que outras no que se refere ao seu grau de perfeição. Ora, as coisas existentes no mundo são em quantidade finita, daí segue-se que haja uma que seja qualitativamente superior a todas as outras. Do contrário, se as coisas fossem infinitas, haveria sempre uma superior a outra, o que resulta absurdo. Dessa hierarquia, Anselmo deduz a existência de uma “perfeição primeira e absoluta” (Reale, 2003, p. 150), uma natureza superior a todas as outras.

A terceira prova orbita na idéia de causa. Anselmo baseia-se na impossibilidade de que algo provenha do nada, pois o nada não pode gerar nada. Conclui, assim, que tudo o que existe só pode ter sido gerado de algo, o que supõe a existência de um princípio autossuficiente, existente por si mesmo, que é a causa das demais.

Com efeito, é impossível que muitos tenham sua existência por mútua comunicação, sob pena de se admitir uma dependência circular. A idéia de que uma coisa possa receber o ser daquilo que dela depende para seu próprio ser é inteiramente contraditória; não vale nem sequer para as coisas mutuamente relacionadas, para a relação entre senhor e servo, por exemplo. [...] só nos resta concluir que a multiplicidade existe por uma causa única, que existe por si mesma, que deve ser maior que as coisas que dela recebem a existência. (Boehner e Gilson, 2008, p. 262)

Com esses argumentos, Anselmo constrói os atributos de Deus (Essência ou Natureza) como um ser perfeito, superior, sumamente grande, origem e unidade de tudo, dotado de autossuficiência, bondade suprema, e do qual toda a multiplicidade menor depende e participa.

Argumento Ontológico ou da Prova a Priori da Existência de Deus

O motivo pelo qual Anselmo escreve, em 1078, o Proslogio, buscando de novo uma prova da existência de Deus é revelado por ele próprio no proêmio dessa mesma obra:

Mal acabei de escrever um opúsculo, acedendo aos pedidos de alguns irmãos, o qual servisse como exemplo de meditação sobre os mistérios da fé para um homem que busca, em silêncio, descobrir, através da razão, o que ignora, e dei-me conta de que essa obra era difícil de ser entendida devido ao entrelaçamento das muitas argumentações.

Então comecei a pensar comigo mesmo se não seria possível encontrar um único argumento que, válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente e que ele é o bem supremo, não necessitando de coisa alguma, quando, ao contrário, todos os outros seres precisam dele para existirem e serem bons. Um argumento suficiente, em suma, para fornecer provas adequadas sobre aquilo que cremos acerca da substância divina. (Anselmo, 2012)

Desse modo, o que Anselmo almeja no Proslogio é a formulação de uma prova a priori, isto é, não mais um conjunto de demonstrações originário de dados sensíveis que remonte à verdade suprema pela via de intrincadas argumentações dialéticas, senão, a partir da própria idéia de Deus – sendo por isso ontológica –, uma prova única, sólida, que si imponha por si mesma, destinada “a gerar a imediata e invencível convicção da existência de Deus”. (Reale, 2003, p. 150)

Com essa empresa, Anselmo, partindo de sua concepção realista, aduz, no Capítulo II do Proslodio – Que Deus existe verdadeiramente – a sua firme crença de que Deus é “um ser do qual não é possível pensar nada maior” (Anselmo, 2012). No entanto, essa proposição, enquanto verdade de fé, não conduz diretamente a uma prova da existência de Deus. Algum insensato poderia objetar que a idéia dessa grandeza superior trata-se apenas uma abstração da inteligência. Todavia, Anselmo rebate que, se assim o fosse, seria possível encontrar algo na realidade que fosse ainda maior que essa idéia máxima do pensamento. Logo, esse algo a superaria, pois seria, a partir de então, maior tanto na realidade quanto no pensamento. Mas isso seria contraditório, pois a proposição inicial é de que “não é possível pensar nada maior”. De modo que a idéia de um ser tal que não há nada maior que possa ser pensado exige, por si mesma, a existência desse ser, que só pode ser Deus.

No Capítulo III do Proslodio – Que não é possível pensar que Deus não existe – Anselmo lança um segundo argumento a favor de sua tese. Ele diz que pensar em um ser do qual não se pode conceber nada maior implica em pensar em um ser existente, pois um pensamento diverso, de um ser qualquer inexistente, mesmo que absolutamente magnífico, ainda seria menor que o primeiro cuja existência é real. Em suas palavras:

Com efeito, pode-se pensar na existência de um ser que não admite ser pensado como não existente. Ora, aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é maior que aquilo que pode ser pensado como não existente. Por isso, "o ser do qual não é possível pensar nada maior", se se admitisse ser pensado como não existente, ele mesmo, que é "o ser do qual não se pode pensar nada maior", não seria "o ser do qual não é possível pensar nada maior", o que é ilógico.

Existe, portanto, verdadeiramente "o ser do qual não é possível pensar nada maior"; e existe de tal forma, que nem sequer é admitido pensá-lo como não existente. E esse ser, ó Senhor, nosso Deus, és tu. (Anselmo, 2012)

Com esses argumentos Anselmo salta da esfera do pensamento para a da existência. Mas não é o caso de se pensar, como Kant, que Anselmo realiza “uma transição indevida do conceito do ser para o próprio ser” (Boehner e Gilson, 2008, p. 266), mas sim que para ele, neste caso específico, o pensamento ultrapassa a âmbito meramente conceitual e “apreende as mesmas essências das coisas” (2008, p. 266). Todavia, Anselmo não desconhece que existam coisas que só se encontram no pensamento, como é o caso do pintor que ele próprio exemplifica. O pintor tem a capacidade de imaginar uma obra que ainda não executou, portanto essa obra só existe em sua inteligência.

Em todo caso, é nesse contexto que a obra anselmiana irá enfrentar as críticas que lhe sucedem. Ainda em vida, Anselmo irá debater com um forte opositor, o monge Gaunilon. Para Gaunilon, não se pode concluir da existência no pensamento a existência fora deste. Para exemplificar, Gaunilon inventa umas tais “ilhas Afortunadas, perdidas em algum ponto do oceano e cobertas de riquezas inacessíveis [...]” (Gilson, 2007, p. 298), fantasia da qual não se pode inferir sua existência objetiva. Mas Anselmo não se intimidou:

[...] respondeu que a passagem da existência no pensamento à existência na realidade só é possível e necessária quando se trata do ser maior que se possa conceber. A noção das Ilhas Afortundas não contem evidentemente nada que obrigue o pensamento a lhes atribuir existência, e é próprio apenas de Deus que não se possa pensar que ele não existe. (Gilson, 2007, p. 298)

Para Anselmo, a concepção de Deus é um caso singular porque Ele é absoluto. Não se trata de algo finito dentre as coisas finitas, que é relativo, pois a grandeza da Ilhas Afortunadas só encontra comparação em relação às outras ilhas e não a tudo que existe. Também não se trata de um ser cuja existência dependa de outro, mas de um ser infinito, eterno, perfeito, autossuficiente, existente por si mesmo. De modo que não há nada maior ou melhor que Deus. E são esses atributos absolutos que fazem dele o único cuja existência não pode ser negada.

Para além de Gaunilon, o argumento ontológico seguiu fazendo adversários e simpatizantes. São Tomás o critica rejeitando, como Gaunilon, a correspondência entre conceito e existência objetiva. Para ele a existência de Deus só pode ser devidamente demonstrada por via das evidências a posteriori.

Dentre os simpatizantes de Anselmo citam-se Boaventura, Duns Escoto, Descartes e Leibniz, os quais, cada um a sua maneira, abrigaram o argumento ontológico. Por fim, Kant também o rejeitou

[...] em nome da distinção radical que é necessário admitir entre a existência pensada e a existência real. Entretanto, nem mesmo a força critica de Kant foi suficiente para sepultar o argumento ontológico. Assim, o argumento ontológico continuou sendo continua preocupação não apenas dos filósofos e teólogos, mas, hoje, também dos lógicos e dos filósofos da linguagem. (Reale, 2003, p. 151)

Considerações Finais

O argumento Ontológico de Anselmo atravessou os séculos chegando ainda a despertar grande interesse no século XX. O mérito de Anselmo é exatamente o de não ter buscado autoridade nas escrituras, e sim a racionalidade pura. E mesmo sob o escrutínio da Epistemologia Contemporânea, há que se reconhecer que:

O que torna o argumento ontológico anselmiano tão poderoso é o fato de que contorna a acusação de petição de princípio, mediante o risco de contradição que o oponente enfrenta face ao compromisso epistêmico assumido ao admitir a existência de um objeto intencional com as características aduzidas pelo dictum. Vê-se que a argumentação de Anselmo é sutil demais para ser capturada em uma simples acusação de “contrabando” de noções existenciais dissimuladas na definição. (Ribeiro, 2006, p. 36)

O que Ribeiro afirma não é que o argumento de Anselmo seja perfeito, mas que sua anfibolia não pode ser detectada sem maior acuidade. A petição de princípio consiste na falácia do argumento circular, isto é, naquele cuja conclusão já está implícita na premissa. O argumento ontológico anselmiano, embora assim o seja, não deixa transparecer o ardil por meio de duas estratégias.

Primeiramente, embora todo o opúsculo seja inteiramente construído mediante uma disputa com um opositor, que é denominado “insipiente”, Anselmo foge do debate principal que seria o de testar a sua premissa. Sua premissa é a da existência de um ser tal que não se pode pensar nada maior. Mas será que existe um ente assim que não se possa pensar algo maior? Ou seja, esta é uma questão tão especulativa e fugidia que talvez não haja nenhum ente que assim possa ser concebido; talvez haja muitos; talvez infinitos. Enfim, não há uma solução definitiva nesse campo metafísico-conceitual.

Porém, Anselmo busca a imediata adesão de seu interlocutor insensato afirmando que “O insipiente há de convir igualmente que existe na sua inteligência ‘o ser do qual não se pode pensar nada maior’, porque ouve e compreende esta frase; e tudo aquilo que se compreende encontra-se na inteligência.” (Anselmo, 2012) O insensato, portanto, não cumpre o papel de um mero expectador, mas é parte crucial na estrutura da argumentação de Anselmo.

Importa ressaltar, en passant, que Anselmo inclui o seu interlocutor na estrutura de seu pensamento pela via de outro tipo de falácia: o Argumentum ad Hominem em que dirige uma ofensa direta ao mesmo chamando-o de “insensato”, “carente de raciocínio” e “insipiente” (Anselmo, 2012), na clara intenção de intimidá-lo e refrear suas objeções, as quais seriam, por tal desqualificação, menos inteligentes.

Bem, uma vez admitida a sua premissa, seguem-se as conclusões necessárias. A de um ser único, superior, e inequivocamente existente: Deus. Como Anselmo faz isso? Por intermédio de uma segunda estratégia, a redução ao absurdo, demonstrando que as hipóteses contrárias à sua tese são falsas, portanto, pensar de forma diferente significa cair em incoerência, em erro lógico.

Para efeito de melhor identificação dessas ditas reduções ou tentativas de reduções, vejamos as seguintes argumentações:

[1] Se, portanto, “o ser do qual não é possível pensar nada maior” existisse somente na inteligência, este mesmo ser, do qual não se pode pensar nada maior, tornar-se-ia o ser do qual é possível, ao contrário, pensar algo maior: o que, certamente, é absurdo. [...]

[2] Ora, aquilo que não pode ser pensado como não existente, sem dúvida, é maior que aquilo que pode ser pensado como não existente. Por isso, “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, se se admitisse ser pensado como não existente, ele mesmo, que é “o ser do qual não se pode pensar nada maior”, não seria “o ser do qual não é possível pensar nada maior”, o que é ilógico. (Anselmo, 2012)

Assim, Anselmo evita constituir provas diretas em favor de sua tese. Não há provas nem justificativas consistentes e independentes que possam garantir a validade do que afirma, isto é, a existência de Deus. Anselmo transita, assim, por uma via oblíqua em que estabelece uma premissa de fundo dogmático, fisgando para ela, ardilosamente, o endosso do interlocutor, e, a partir dela (no controle da situação), contorna as inferências indesejáveis e retorna finalmente para a premissa, fazendo dela a conclusão.

Como dissemos, o mérito de Anselmo é ter buscado o manejo da lógica e não a autoridade das Escrituras. Mas Anselmo não deixa de ser prejudicado pela projeção de sua crença em seus argumentos, vez que, partindo dela, da tradição monoteísta judaico-cristã, é tentado a excluir do âmbito das possibilidades da especulação metafísica qualquer pressuposto contrário à sua fé. Por tudo isso, as conclusões anselmianas não redundam, de forma alguma, em uma validade cogente e inequívoca, o que faz com que seu argumento ontológico seja objeto das mais díspares interpretações.

Referências:

ANSELMO, Santo, Arcebispo da Cantuária. Monológio; Proslógio; A Verdade; O Gramático.

ABELARDO, Pedro. Lógica para Principiantes; A História de Minhas Calamidades. Tradução: Ângelo Ricci, Ruy Afonso da Costa Nunes. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988 (Os Pensadores). Disponível em http://www.4shared.com/get/Tkyoyzgn/07_-_Santo_Anselmo_e_Abelardo_.html. Acesso em 24/01/2012.

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. 11ª Ed. Petrópolia-RJ: Vozes, 2008.

GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Tradução: Eduardo Brandão. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dário. Historia da Filosofia: patrística e escolástica, v. 2.Tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003.

RIBEIRO, Eduardo Silva (2006). O Argumento Epistemológico de Anselmo. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=22760>. Acesso em 24/01/2010.