POR QUE DEUS NÃO EXISTE?

Por que deus não existe? Será que existe uma resposta satisfatória? Dentre as várias possibilidades, vamos tentar uma linha de resposta mais sucinta. Bem, deus é considerado, sobretudo, o criador de tudo. Além disso, Deus (com “D” maiúsculo) como Grande Pai, já teria consciência de tudo, ou seja, trata-se de um Ser onisciente, que tudo sabe, que tudo vê, desde sempre. E é com base nessa onisciência que Ele teria um “Plano” para cada um de nós. Ok. Então, temos algo que poderia ser o nosso “incontestável” e “infalível” ponto de partida: a consciência. Por quê? Porque sem ela não há que se falar de deus. Imagine, um deus que não sabe de nada! Como poderia ter criado TUDO etc, etc, etc?

Certo. Então, se o que fundamentalmente caracteriza deus é a “consciência”, temos que nos perguntar, mas, afinal, o que é a consciência? Muito bem, entramos numa armadilha, definir o que é a consciência. Na verdade, temos uma multiplicidade de definições e sabemos das dificuldades referentes a uma “definição” pronta e acabada. Mas o que podemos começar a dizer é que a consciência se trata de uma faculdade eminentemente humana, proveniente de um longo processo histórico e plural.

Plural? Por que plural? Aí é que está... Se a consciência se trata, num sentido mais básico, da capacidade de representação, ou seja, se ter consciência significa “conhecer”, logo só existe consciência DE alguma coisa, como já dizia o fenomenólogo Edmund Husserl. Falando claramente: não existe consciência de nada, ou uma pura consciência em-si como um HD vazio. Não existe consciência isolada, pois consciência pressupõe e só pode ser uma representação da pluralidade. Assim, não há como se conceber uma consciência pura, fora do mundo, ou, pior, anterior a tudo, sobrepairando acima do nada.

Portanto, o fenômeno da consciência depende, antes, da existência da pluralidade de objetos do mundo. Entrando no campo da epistemologia, depende ainda da interação plurissubjetiva, ou seja, da construção social de uma linguagem representativa desses objetos. Linguagem!? Sim, porque pode-se dizer que a “substância” da consciência é a linguagem.

Para descobrir isso basta fazer uma pergunta: quando é que tomamos consciência de nós mesmos? Ora, quando começamos a pensar. A consciência é o pensamento que fala dentro de nós. E o que fala é a linguagem. Não há pensamento sem linguagem, sem significado, sem signos. A consciência é a reflexão do mundo, como um espelho que reflete os espectros de luz. A consciência é uma estrutura subjetiva que acolhe e mobiliza as imagens, as sensações, os signos e os transforma em discursos ou pensamentos.

Consciência, portanto, é absolutamente humana (ou também de alguns animais), própria de seres finitos, entes imersos na vastidão da vida. O fato é que consciência não é “algo” que si possa isolar, não é uma “essência” que está lá pronta desde que nascemos, não é um “eu purificado” que se conserve além do corpo e do tempo. Ninguém nasce com consciência, adquire-a. Claro que para isso é preciso existir um “aparelho” mental apropriado para o desenvolvimento da mesma, mas esse aparelho não vai a lugar nenhum sozinho. A consciência só se constitui a partir do contato com a cultura, isto é, com o processo de aprendizagem que é transmitido pela via da linguagem.

Muitas vezes pensamos na consciência como uma espécie de "espírito", uma quintessência gnosiológica do ser, que cartesianamente comanda o ser por sobre o mecanismo corporal. Mas, ora, a individualidade consciente não seria nada sem o corpo, sem a mente, sem o ambiente, sem a cultura... A consciência só se constitui dentro de um ambiente físico e cultural. Ela se desenvolve e se desenvolveu historicamente a partir de todo o conjunto de condições que nos cercam, físicas, sociais, psicológicas (as pulsões orgânicas, os instintos, a libido, as emoções, as inquietações...). O que dizer de uma consciência “fria” sem corpo, sem libido, sem emoção, sem fome, sem sede, sem sentimento, sem as pressões ambientais, sem o calor das relações, sem cérebro, sem sangue circulando?

A consciência é social e mundana. É social porque aquilo que o indivíduo pensa é, no geral, uma mera reprodução da sua cultura. De modo que quem nasce num país liberal acaba se tornando, via de regra, cristão, capitalista e individualista, mas quem nasce num país árabe, provavelmente será muçulmano.

A consciência é mundana porque cada coisa que conhecemos só possui uma identidade em função do seu contraste com as outras coisas. Esse é outro ensinamento de Heráclito, a razão pela qual conhecemos algo como “temperatura” é porque sentimos as diversas variações da mesma. Num momento sentimos frio, em outro, calor. Se não existisse esse contraste, nada saberíamos sobre temperatura. E assim são todas as coisas, conhecemos o dia porque existe a noite. Conhecemos o doce em oposição ao salgado. Os conceitos, portanto, que constituem a linguagem, só subsistem diante da pluralidade.

A unidade não produz conceito algum. Se tudo tivesse uma mesma natureza, uma mesma substância ou essência, como um infinito deserto de areia, então tudo seria absolutamente indefinível. O processo de definição é realizado pela via da diferenciação entre objetos, logo a unidade não tem nenhuma definição. Aliás, uma definição, um conceito, uma percepção, só pode ser PARA um SUJEITO que vivencia algo. Portanto, só por isso já deveríamos ter, no mínimo, uma duplicidade e não uma unidade. Mas mesmo essa duplicidade seria extremamente pobre para constituir qualquer esboço de consciência.

Outra coisa que deriva do ensinamento de Heráclito é que não há consciência de tudo, pelo simples fato de que tudo está em permanente movimento. O que era há um segundo atrás, agora já deixou de ser. E o que é agora, daqui a pouco já não será. Como o processo de representação linguística da consciência poderia acompanhar todo esse movimento?

É certo que existem "coisas" que estão além do nosso "mundinho" perceptivo. Um cachorro, por exemplo, possui um olfato muito superior ao nosso. Uma águia, a visão.... E assim por diante. O espectro da luz é imenso, e nós só captamos entre o infravermelho e o ultravioleta. Além do mais existe a vastidão do inconsciente freudiano. A razão é como que uma pequena nau navegando num gigantesco oceano do inconsciente... Então, a vida não pode ser completamente explicada pelo racional e científico. A vida também é pulsão, inconsciente e muitas vezes irracional. Com tudo isso, inventamos, cada um, os próprios fantasmas, os espectros, como diria Lacan, que se instalam entre o universo representacional e o mundo real.

Desse modo, deus nada mais é que uma projeção de nossa consciência. Não foi deus quem criou os homens. Foram os homens que criaram deus, aliás, os deuses. A projeção da consciência significa, desde o paleolítico, em imaginar que fenômenos naturais ou mesmo animais, plantas ou objetos tenham também alguma racionalidade. Daí chegamos a imaginar que até todo o universo teria uma racionalidade, por isso o universo seria o “cosmos”, isto é uma “ordem”, algo devidamente organizado, bem desenhado, com estrelas redondinhas e órbitas perfeitas. Mas nada disso é verdade, hoje sabemos muito bem que vivemos num universo gigantesco, misterioso e caótico.

A raiz da religião é a consciência da morte. Mais precisamente o medo da morte que nos faz projetar fantasias ou mitologias de que existe algo além dessa vida. Tomada pelo desespero do fim iminente e inevitável, a poderosíssima mente nos faz criar espectros, espíritos, fantasmas, teorias, doutrinas e teologias. Forjamos sensações, incorporamos o espírito santo, falamos em línguas santas, profetizamos, tudo, tudo fruto da mente. É um mundo de delírios. Infelizmente. Deus não existe.

Assim sendo - permitam-me estender o assunto para além do mito de deus - as religião não tem nada a ver com a vida real, trata-se de um mundo de alucinação. Entretanto, lamentavelmente, parece que a maioria ainda precisa desse delírio para se sentir segura, confortada diante da realidade inexorável da morte. Tudo isso é extremamente lamentável, pois deixamos de viver intensamente essa vida concreta (a única que existe) em função de uma outra, totalmente fugidia.

A história é uma prova grandiloquente do que estou falando, de que a religião nos rouba a vida real e de que ela (a religião) é social, isto é, ela se manifesta conforme a ordem social vigente. Na idade média os milhões de camponeses escravizados nos feudos eram dominados pelo poder da ideologia cristã. O clero pregava humildade e respeito às autoridades. E os cordeirinhos obedeciam e padeciam em profunda exploração para alcançarem a igualdade e a dignidade devida no outro mundo, depois da morte. Aliás, essas características cristãs foram muito bem vistas pelo Imperador Constantino, que vendo as facilidades de se dominar o povo cristão, tratou de oficializar essa religião no Império Romano.

Mas, agora, em nosso tempo, façamos as devidas comparações, a virtude já não é mais a humildade, a virtude é o dinheiro. Claro, agora vivemos em um mundo capitalista. Então a espiritualidade não é mais medida em função da humildade, mas das bênçãos materiais que você tem (e doa). O pobre, coitado, além de suas privações materiais, agora já é também um fracassado espiritual. Pois pra você mostrar que está de bem com deus você tem que ser rico. Religião é isso, não trata de uma doutrina pura e imutável, mas de uma expressão da cultura dominante de cada época... O nosso cristianismo atual (adepto à teologia da prosperidade) não possui escrúpulo nenhum, ele se comporta, deploravelmente, sem nenhuma criticidade, a serviço do capitalismo selvagem. E só.

Além de tudo, há outro problema sério relacionado às religiões. É que, se formos pesquisar, constataremos que historicamente o maior motivo para as guerras são as religiões e seus "deuses" mirabolantes. Mas por quê? Porque as religiões são etnocêntricas, ou seja, cada qual é a única portadora da verdade e da salvação. Elas são alienantes e xenófobas, pois não aceitam e não se abrem para outras "verdades" e culturas. E é por isso que as religiões não são belas. Se fossem, pregariam e praticariam apenas o amor e não cederiam à violência. Na verdade são hipócritas. Existe um trocadilho que explica bem o que estou dizendo. Elas pregam a "doutrina do amor", mas praticam o "amor à doutrina". Então não podia dar em outra coisa.

Pois é, deus não existe, mas causa muitos problemas!