A unção dos enfermos - Carta 044
Carta 044
Tema: A unção dos enfermos
Uma pessoa de São Leopoldo (RS) diz que “fui surpreendida com
a visita de um padre, chamado pelo hospital para ministrar o
sacramento da “unção dos enfermos” a meu pai. Confesso que
imaginava que a visita do prelado poderia “assustá-lo”. Ao
contrário do que eu temia, ele recebeu muito bem a visita e por
incrível que pareça até melhorou e já voltou para casa. Seria um
milagre? Disseram-me que você é um especialista no assunto.
Gostaria de saber mais a respeito sobre esse assunto”.
Prezada leitora,
Sacramento, por definição é o canal por onde flui (a nosso favor) a graça de Deus. Ora, milagres estão sempre implícitos no derramamento da graça. Onde há graça há milagre. Sabemos que os sacramentos da Igreja acompanham a vida humana e consagram as situações mais importantes dessa vida, desde o berço até o túmulo. Uma situação que todos nós, mais cedo ou mais tarde, com maior ou menor intensidade, experimentaremos é a dor, o sofrimento, a morte. E justamente nestas circunstâncias dramáticas, Jesus Cristo está conosco, através de um sinal de seu amor: o sacramento da Unção dos Enfermos.
Se recorrermos às páginas do Evangelho e lembrarmos a solicitude de Cristo com os doentes, e o sofrimento que enfrentou, vamos entender bem quanto ele quer estar presente e confortar os doentes. Dizemos que a unção dos enfermos é um socorro de Deus, pois tanto conforta e cura o doente, quanto o prepara, de acordo com as circunstâncias para uma morte santa e reconciliada. Este sacramento é a presença de Cristo, através da Igreja, junto ao doente e sua família, num memorial do amor que o Mestre tinha pelos doentes. É o sacramento que consagra, assume e valoriza a doença, instituído para a cura dos corpos, alívio espiritual, perdão dos pecados e, se for do desejo de Deus, consagrar a pessoa para eternidade.
Por isto, a Igreja toda entrega os doentes aos cuidados do
Senhor sofredor e glorificado, para que os alivie e os salve (LG
11).
Jesus, quando viveu na terra, além de pregar o Evangelho, mostrando as exigências do Reino, e assim preparar a salvação projetada pelo Pai, ele teve pena dos excluídos, dos pecadores e dos doentes. Tanto assim, que a expressão movido de compaixão aparece muitas vezes no Novo Testamento (Mt 15, 32; 20,34; Mc 8, 2; Lc 7,13; 15,20; Hb 2,18). Por esta razão, a Igreja do primeiro século afirmava que “... ele passou fazendo o bem” (cf. At 10,38).
A Unção dos Enfermos é o sacramento instituído por Cristo para dar força e coragem ao doente, aliviando suas dores, alimentando sua esperança e perdoando seus pecados. Nesse contexto sacramental, esta unção santifica o sofrimento, purifica a alma e reconforta o corpo. O sofrimento humano, segundo São Paulo, completa o sofrimento de Cristo na cruz, no mistério de sua missão redentora (cf. Cl 1,24).
Este sacramento dos enfermos, como os demais, não apareceu assim de repente. Por trás dele há toda uma história, com origem na Bíblia, onde se ressalta o amor e o poder de Deus, a fraqueza e a esperança do homem. Movido de com-paixão Jesus curou muitos doentes. Essas curas foram (são) sinais para os que creem. Fora do cristianismo já se fazia unções dos doentes, para restabelecimento da saúde. Esses cultos eram mais na linha dos exorcismos, pois os povos das antigas civilizações acreditavam que a doença era influência dos espíritos maus. O Papa Inocêncio I († 417) criou em 416 a consagração episcopal do óleo, para administração exclusiva aos doentes, como continuação do gesto regenerador de Cristo. É a Igreja se preocupando com a dor e o sofrimento dos enfermos e moribundos.
No começo da Idade Média surgiu a extrema unctio, como sacramento próprio dos moribundos, permanecendo assim até a segunda metade do século XX, quando passou a chamar-se “Unção dos Enfermos” e é administrado, não só aos moribundos, mas também aos enfermos, como sacramento da cura do corpo e da alma.
O homem que sofre e morre sozinho está exposto à grave tentação de se fechar, de se revoltar e, pelo desânimo e desespero da solidão, blasfemar contra Deus. Na Unção dos Enfermos o Ressuscitado se aproxima da pessoa, trazendo-lhe todo o conforto, derramando, como o bom samaritano (cf. Lc 10, 33ss) óleo e vinho sobre suas feridas, garantindo-lhe saúde e vida. Por isto se afirma que, a Unção dos Enfermos é como o Cristo sentado ao lado do doente, animando-o, encorajando-o e dando-lhe meios de salvar sua alma. É por esta razão que a Igreja afirma que o sacramento da unção dos enfermos é o socorro que vem de Deus.
Amiúde Jesus pede aos enfermos que creiam (cf. Mc 5, 34.36;
9, 23). Serve-se de sinais para curar: saliva e imposição de
mãos (cf. Mc 7, 32-36; 8, 22-25); barro e ablução (cf. Jo 9,
6S). Os enfermos buscam tocá-lo (cf. Mc 1, 41; 3, 10; 6,
56), ‘pois saía dele uma força que os curava a todos’(Lc 6, 19).
Assim, nos sacramentos, Cristo continua tocando-nos para
curar-nos (Catecismo 1504).
É interessante observar que a Unção dos Enfermos não é um sacramento só para aqueles que estão para morrer. Pode e deve ser ministrado às pessoas enfermas. Se a pessoa recupera a saúde pode, em caso nova enfermidade grave, receber de novo o sacramento. No curso da mesma enfermidade, em caso de doença muito longa, ou agravamento do estado, o sacramento pode ser repetido. É apropriado, também, ministrá-lo a pessoas que vão submeter-se a uma cirurgia importante. O mesmo se aplica a pessoas idosas e com saúde debilitada. Esta unção é sinal do consolo de Deus. São Tiago, em uma das epístolas universais recomenda:
Há alguém enfermo entre vocês? Mande chamar os
presbíteros da Igreja para que rezem por ele, ungindo-o com
óleo, em nome do Senhor: A oração feita com fé salvará o
doente; o Senhor o levantará e, se ele tiver pecados, será
perdoado (Tg 5, 14s).
Nesse aspecto, o Concílio de Trento (cf. DS 1695) assim se refere ao sacramento da “unção dos enfermos”:
A Igreja crê e confessa que, entre os sete sacramento existe um
especialmente destinado a reconfortar aos atribulados pela
enfermidade: a Santa Unção dos Enfermos. Esta unção foi
instituída por Cristo Nosso Senhor, como um sacramento do
Novo Testamento, verdadeiro e propriamente dito, referido por
São Marcos (cf. 6, 13) recomendado aos fiéis e promulgado por
São Tiago (cf. Tg 5,14s).
A doença (e a proximidade da morte) limita a pessoa, reduz sua autoestima, diminui sua resistência psicossomática, leva-a a muitos questionamentos e, não raro, à revolta, à duvida e à blasfêmia contra aquele estado, em que ela julga-se injustiçada.
Por disposição da Divina Providência, o homem deve lutar ardentemente contra toda a doença e procurar com empenho o tesouro da saúde, para que possa desempenhar o seu papel na sociedade e na Igreja (Ritual da Unção dos Enfermos).
As enfermidades no mundo são fruto do pecado dos primeiros homens, que, rompendo com Deus, pela soberba, perderam o Paraíso e se sujeitaram à finitude da matéria. A dor, entretanto, em seu mistério, tem um valor salvífico. Leva o ser humano, pela reflexão, a um reescalonamento de valores. Pela busca dos valores superiores, aquele que sofre chega a descobrir a Deus, como consolo. E, liberto da relação de pecado, chega à conversão. A doença e o sofrimento, como tais, não têm valor em si, por isso são abolidos da vida definitiva (cf. Ap 21, 4). A doença, embora contrária à natureza e aos anseios humanos, pode ser transformada em valor, desde que acolhida em união com Cristo.
Para maior eficácia da “unção dos enfermos”, a Igreja recomenda que seja ministrado, conjuntamente o viático, a doentes terminais ou em grave perigo de vida. Viático é a Eucaristia dada ao doente, que nas perspectivas de “sacramento final” funciona eficazmente como uma “provisão para o caminho”, quando o doente deixa este mundo em comunhão com o Ressuscitado. Por isso, não se deve esperar demais para chamar o padre. O viático não pode ser ministrado a pessoas inconscientes. Modernamente, as comunidades têm seus “Ministros Extraordinários da Santa Comunhão Eucarística” que, diária ou semanalmente, visitam doentes, levando-lhes a eucaristia. Neste caso, a eucaristia pode funcionar, em caso de morte iminente, como um viático.
A ordem é “curem os enfermos!” (Mt 10, 8). A Igreja recebeu esta tarefa do Senhor e busca realizá-la tanto mediante os cuidados que dispensa aos doentes, como pela oração de intercessão com que a acompanha. Crê na presença vivificante de Cristo, médico das almas e dos corpos. Esta presença atua particularmente através dos sacramentos e de maneira especial pela “unção dos enfermos”.
Embora afirmado pelas tradições populares, ritos fúnebres como exéquias, encomendações, sepultamentos e missas celebradas em sufrágio por pessoas falecidas, não têm caráter e eficácia do sacramento da “unção dos enfermos” que, por ser sacramento dos vivos só tem eficácia enquanto ministrado a uma pessoa viva. O sacramento visa curar os enfermos e preparar os moribundos para o encontro final.
A eficácia do sacramento se manifesta ex opere operato (em virtude do trabalho realizado), ou seja, uma vez realizado pelo rito adequado ele realiza aquilo que preconiza (a graça de Deus). Isto foi afirmado pelo Concílio de Trento (1545-1563). A “unção dos enfermos” pode ser conferida a pessoas em estado de inconsciência, sob condição, uma vez que a medicina hoje afirma que há possibilidade de, mesmo inconsciente, o enfermo esteja apto a compreender o que está ocorrendo.
Como testemunho pessoal, ressalto a importância que costumo dar à “unção dos enfermos”. Quando visito uma pessoa enferma, junto com a indagação de seu estado de saúde, pergunto se ela recebeu o sacramento. Caso contrário, saio em busca de um padre para aquele fim. O doente, em perigo de vida, tem o direito de receber a unção, e a Igreja tem o dever de ministrá-lo. Igualmente, mesmo se tratando de uma pessoa sã, no caso de uma cirurgia, capaz de implicar em um risco de vida, é prudente procurar a “unção dos enfermos”. Nessas condições, em duas oportunidades, procurei o pároco da minha paróquia para a recepção do sacramento em questão.
Sinais da Unção dos Enfermos
Matéria
óleo
forma
“Por esta santa unção e por sua piíssima misericórdia, o Senhor
venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo, para que,
liberto dos teus pecados, ele te salve e, na sua bondade, alivie
teus sofrimentos”
ministro
o padre
efeitos
Consolo, paz e ânimo (dons do Espírito Santo); união à paixão de
Cristo; união à Igreja e ‘contribuição para o bem do povo de Deus’
(LG 11) e, preparação para o “último trânsito” (CIC 1520-1523).
gesto
Imposição das mãos.
coisas práticas
A quem dar o sacramento? Considerando, como vimos, que se
trata de um sacramento dos vivos, não se deve esperar só quando
o doente está numa situação delicada, ou em coma, para fazer a
unção. “Mas o doente vai se assustar!” disse alguém. O filho
respondeu: “Prefiro ver meu pai assustado indo para o céu, do que
tranquilo sei lá onde...”. A família deve participar da celebração.
Não deixar o padre sozinho com o doente (exceto se houver
confissão, ou se o doente pedir).
Quando ministrar o sacramento? Em caso de doença grave, suspeita de risco, acidente ou também para pessoas de idade avançada. Algumas paróquias e comunidades costumam realizar periodicamente celebrações quando é ministrada a unção a pessoas doentes e idosas. Não há problema que, no decorrer de sua vida, a pessoa receba o sacramento mais de uma vez. Pessoas da minha família receberam-nos mais de uma vez. Nesse caso, a repetição denota o interesse do doente (ou idoso) com as coisas de Deus e a preocupação dos familiares e amigos.
É importante que se use o nome certo: “unção dos enfermos” e não “extrema unção” ou “últimos sacramentos”. Igualmente é salutar que a comunidade e família sintam a presença de Cristo junto ao doente e transmitam isto a ele. Por isso, é prudente não agitá-lo, não perder o controle, não ficar dominado pela angústia, para que ele, submetido à prova, não enfraqueça sua fé e suporte a dor com fortaleza.
Reportando-se ao sacramento dos enfermos a fé cristã ensina que “a Igreja toda entrega os doentes aos cuidados do Senhor sofredor e glorificado, para que os alivie e os salve” (LG 11).
Um abraço para você!
subsídios bíblicos sobre o sacramento da Unção dos Enfermos
Mc 1,40ss; 6,13.35-42; Lc 4,38s; At 3, 1-8.16; 10, 38; Tg 5, 13ss; Cl 1, 24.
O autor é escritor, filósofo e Doutor em Teologia Moral. Autor de mais de 110 livros, entre eles “Sacramentos: sinais do amor de Deus”. Ed. Vozes, 2ª edição, 1997.