POR QUE OS JUDEUS NÃO CREEM EM JESUS? (PARTE I)

Por que os judeus não creem em Jesus. Sob esse título o publicista judeu rabino Shraga Simmons, editor da Aish.com em Jerusalém, redigiu uma lista com alguns argumentos na tentativa de demonstrar que Jesus Cristo não é o Messias prometido de Deus e anunciado pelos profetas. Para ele:

1) Jesus não cumpriu as principais tarefas do Messias;

2) Ele não possuía as qualidades requeridas para aspirar ao título de Messias;

3) As profecias que os cristãos lhe aplicam são mal traduzidas.

Eis os três argumentos que mormente queremos examinar aqui. Eles vão servir para pôr em evidência a solidez da santa religião católica.

I – As principais tarefas do Messias, segundo o rabino Simmons

O rabino Simmons reduz a quatro proposições o ensinamento das dezesseis profecias do Antigo Testamento acerca do papel do Messias.

Segundo ele o Messias:

1. Erigirá o terceiro templo (Ezequiel 37, 26-28);

2. Congregará todos os judeus na terra de Israel (Isaias 43, 5-6);

3. Fará o mundo entrar numa era de paz universal, e dará fim ao ódio, à opressão e às doenças, tal como está escrito: “Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se arrastarão mais para a guerra” (Isaias 2, 4);

4. Propagará o conhecimento universal do Deus de Israel, que reunirá a humanidade em um só povo, como está escrito: “O Senhor reinará sobre toda a terra. Naquele dia o Senhor será o único Deus e só o seu nome será invocado” (Zacarias 14, 9).

Segue o rabino: É fato histórico que Jesus não cumpriu nenhuma dessas profecias messiânicas.

De fato o rabino leu todas as profecias citadas com um preconceito subjacente: a concepção temporal do messianismo (o papel do Messias diz respeito sobretudo à sociedade terrestre, à felicidade neste baixo mundo). E só por tê-las lido nessa perspectiva terrestre (carnal) é que o rabino Simmons pôde acusar o Cristo de as não ter cumprido. Há-de se examinar antes de tudo esse pressuposto.

O REINO MESSIÂNICO

O anúncio do Messias perpassa e se reforça ao longo do Antigo Testamento, desde o primeiro livro (Gn 3, 15; 22, 18; e 49, 8-10) até Malaquias (Ml 3, 1), desdobrando-se em imagens particularmente impressionantes em Isaias e Daniel. O Messias será um rei judeu (descendente de Davi), cujo esplendor embaciará o dos demais reis; seu reino reunirá os povos em torno do culto do Deus verdadeiro. Todos estão de acordo com isso. Ora foi justamente desse reino messiânico que Jesus veio falar por meio de parábolas (uma dúzia delas se apresentam desde o começo como a descrição do reino tão esperado, semelhante a um grão de mostarda, a um tesouro escondido etc.).

Dominados pelos romanos os judeus da época sofriam havia séculos a influência de uma literatura apócrifa que apresentava o futuro Messias como o herói da guerra de libertação e conquista do mundo. Inflingiram-se grande mal ao se instruírem da noção temporal do reino de Deus. Contrapõe-se Jesus a tal juízo. Anunciam as parábolas que o Reino será belo e se estabelecerá sobre a terra, mas somente como antecipação provisória da realidade celeste (Nosso Senhor designa-o como O Reino dos Céus: Mt 13); ele se constituirá na dimensão política e social, mas é antes de tudo interior, havendo mister de buscá-lo para descobri-lo verdadeiramente (parábolas do tesouro escondido e da pérola preciosa); não virá com a pompa esperada pelos fariseus (Lc 17, 20), mas crescerá com lentidão (parábola do semeador), transformando a pouco e pouco o mundo (parábola do fermento), no qual não obstante haverá sempre maus (parábolas do joio, da rede, do homem em núpcias sem a roupa nupcial, das virgens imprudentes etc.); sobretudo, o reino não se estabelecerá no brandir do aço (Mt 26, 52), mas ao contrário sofrendo perseguições (Mt 5, 10-12; Jo 12, 24-25); as riquezas não serão mais de ouro ou prata, mas interiores (Mt 5, 3); os chefes não terão por fim dominar outrem, mas servi-los (Lc 22, 24-27; Jo 13, 15); enfim, ainda que surgindo entre os judeus (Mt 15, 24) e impondo-se ao mundo inteiro (Mt 28, 18), o reino não constituirá domínio mundial e temporal do povo eleito, mas ao contrário será lugar de eleição dos pagãos convertidos, figurados nas ovelhas reencontradas (Jo 10, 16), no filho pródigo que retorna ao lar (Lc 15), no publicano arrependido (Mt 9, 9-13; Lc 18, 14 e 19, 2) e na conversão dos pecadores públicos (Lc 7, 39 e 23, 43); por sua vez os judeus – os primeiros a serem chamados – excluir-se-ão a si, como indicam as parábolas dos vinhateiros homicidas (Mt 21, 33-46), das núpcias reais (Mt 22, 1-14) e do grande festim (Lc 14, 15-24).

Confrontam-se duas concepções opostas do reino messiânico durante a vida pública do Cristo. Quando vem o demônio tentar o provável Messias, fala-lhe apenas de satisfações do corpo, glória humana e domínio mundial (Mt 4, 1-11), em conformidade ao comportamento que a maioria espera do Messias. Mais tarde após a multiplicação dos pães, quando proclamaram-no rei, evade-se Jesus para evitar que os judeus se revoltem contra os romanos. (Jo 6, 15). Interrogado por Pilatos reconhece-se todavia como rei (Jo 18, 37), mas precisa que seu reino não é deste mundo (Jo 18, 36).

Pouco antes da Ascenção os próprios apóstolos manifestaram uma como ignorância acerca da natureza do reino messiânico: “Senhor, é porventura agora que ides instaurar o reino de Israel?” (At 1, 6). Somente a vinda do Espírito Santo em Pentecostes pôde esclarecê-los.

Dois mil anos mais tarde ainda é a mesma a pedra de tropeço: Nosso Senhor Jesus Cristo viera pregar um reino sobrenatural, salvando as almas das garras do demônio, distribuindo as riquezas da graça e caridade divinas, e preparando coroas de glória eterna no outro mundo. Persistem os judeus ao contrário na expectativa de reino, riquezas, coroas, vitórias e glórias terrestres, interpretando nessa perspectiva as profecias do Antigo Testamento. A oposição é insolúvel.

A QUESTÃO PRIMORDIAL

O debate honesto entre judeus e cristãos não deveria remeter-se a tal ou qual profecia em particular, mas à visão de conjunto em que as profecias se cumprem. O judeu que realmente aceitasse pôr em questão – um instante que fosse – os preconceitos que lhe inclinam à interpretação das profecias de modo sobretudo temporal e terrestre estaria, com a graça de Deus, mui próximo da conversão. Como não notaram logo que Jesus de Nazaré cumpriu, mas num plano superior, tudo quanto se prometera?

O rabino sabe que a promessa messiânica primordial é a do rei, descendente de Davi, que deve impor sua autoridade à terra inteira, reunindo os povos sob o culto do Deus único. Caso libertassem a inteligência dos preconceitos nacionais, como não enxergar que Jesus de Nazaré estendera tal autoridade por sobre a terra e espalhara por todo lado o culto do Deus único?

Antes do nascimento do Cristo o povo judeu mal e mal perseverara no culto do Deus único. Como fosse constante a tentação de fundir para si o bezerro de ouro ou prostrar-se de joelhos diante de Baal, uma série de profetas tivera de reconduzi-los ao reto caminho, vaticinando-lhes sempre que um dia todos os povos adorariam Javé. Mas os judeus mal podiam acreditar nisso, antes preferiram adotar os deuses das nações. Sucederam-se exortações, ameaças, maldições ao longo do Antigo Testamento com o fito de conservar o povo eleito na fidelidade da aliança com o Deus único. – E eis que são os povos pagãos, prestos, um após o outro, que se convertem ao Deus único. Receberam e abraçaram a revelação feita a Abraão, Isaac e Jacó. Esse inaudito retorno tem nome – cristianismo.

Ponderasse com seriedade nosso judeu certamente ficaria perturbado com esse fato histórico tão incontestável quanto inesperado: em três séculos os discípulos de Cristo acabam com a idolatria; mergulham os gregos – orgulhosos de sua filosofia – na leitura meditada dos livros santos do judaísmo; prosternam os imperadores romanos – conquistadores do universo – diante do Filho de Deus, Jesus de Nazaré. Não é evidente o cumprimento da promessa divina feita a Abraão (Gn 22, 18)?

Descomponha-se talvez nosso judeu: como dar o título de rei a um crucificado? Entretanto, se quiser ser honesto, ele deve admitir que centenas de milhões de seres humanos aclamaram realmente Jesus de Nazaré rei. Tão desconcertante, agastante – irritante até – quanto lhe pareça essa realeza de cariz religioso, não se pode considerá-la como inexistente. Durante séculos os reis e os imperadores – mesmo Napoleão, após a sagração – reconheceram em público Jesus de Nazaré mestre soberano.

O reinado do Cristo – essencialmente celeste e suprapolítico – de fato difere de tudo quanto esperam os judeu. Ainda que recusem a acreditar no seu caráter messiânico, não podem negar-lhe a existência, já que possui uma dimensão terrestre.

Argüirá nosso judeu que a Bíblia promete o triunfo temporal, que os profetas não mencionam reinado suprapolítico, riquezas espirituais, destino sobrenatural – mas a felicidade terrestre. Ora promessa é promessa. O Messias deve dar a felicidade terrestre.

Não é Deus infinitamente superior ao homem? Quem tem o direito de restringir a priori sua munificiência, encerrando-a nos estreitos limites terrestres? Por outro lado é faltar à promessa cumpri-la com superabundância, num nível superior? Caso Deus queira dar mais que prometera, como isso nos lesa?

Os oráculos dos profetas deixam entrever nas mais belas passagens a realização que ultrapassa a ordem material. Aquilo de Isaías, por exemplo:

Senhor virá estabelecer-se sobre todo o monte Siãoe em suas assembleias:

de dia como uma nuvem de fumaça,

e de noite como um fogo flamejante.

Porque sobre todos se estenderá a glória do Senhor,

como a cobertura de uma tenda,

à guisa de sombra contra o calor do dia,

e de refúgio e abrigo contra a procela e a chuva. (Is 4, 5-6)

Ou de Ezequiel:

Derramarei sobre vós águas puras,

que vos purificarão de todas as vossas imundícies

e de todas as vossas abominações.

Dar-vos-ei um coração novo

e em vós porei um espírito novo;

tirar-vos-ei do peito o coração de pedra

e dar-vos-ei um coração de carne.

Dentro de vós meterei meu espírito,

fazendo com que obedeçais às minhas leis

e sigais e observeis os meus preceitos. (Ez 36, 25-27)

Os textos se completam, sucedem e repetem, não há como lhes escapar. Por menos que nosso judeu consinta com a graça que se lhe oferece, a evidência está aí, ao alcance das mãos: todas as passagens vazadas em descrições de prosperidade terrestre (terra prometida, vinhas, frumento, alimária...), dão a estas sentido superior, sentido espiritual. Valem as promessas terrestres apenas para o tempo do Antigo Testamento. Deviam elas ceder espaço à Nova Aliança, de que eram preparação e figura. Não há se espantar de que realidades espirituais se anunciassem por imagens materiais, pois, sejamos francos, poderia ser de outro modo? Como anunciar o desconhecido, o sobre-humano, o celeste, senão se amparando de termos conhecidos, remetendo-se antes de tudo a realidades humanas e terrestres?

Caso abandonasse os preconceitos, poderia o próprio rabino Shraga Simmons chegar a tal conclusão. Basta-lhe orar com humildade e sinceridade, como fizera-o num dia de 1826 um certo Jacob Libermann, filho do rabino de Saverne:

Lembrado do Deus soberano das minhas preces, lancei-me de joelhos e conjurei-o a esclarecer-me acerca da verdadeira religião. Implorei a Ele dar me conhecimento da crença cristã, caso verdadeira; se não, afastar-me dela o quanto antes. O Senhor, sempre junto aos que o invocam de toda a alma, acolheu minha prece. De imediato fui esclarecido, vi a verdade: a fé penetrara em minha alma e inteligência1

Antes de orar assim, há mister de renunciar certos preconceitos, dos quais não é fácil se desembaraçar, uma vez que são absorvidos juntos com o leite materno. Como dissera outro convertido célebre, calejado por tais combates:

Não se deve combater objeções racionais, antes há de se apazigüar as angústias da consciência judaica. Não era eu assaz instruído para compreender a identidade entre judaísmo e cristianismo. Acreditava que eram duas religiões diferentes, o Deus de Abraão não era o Deus dos cristãos. Tinha medo de aprofundar a questão 2

Como muitos judeus, o rabino Simmons apega-se com desespero à concepção do “caderno de tarefas” do Messias. Ele deve construir o terceiro templo, congregar todos os judeus na terra de Israel, decretar a paz universal e finalmente propagar “o conhecimento universal do Deus de Israel, que reunirá a humanidade em um só povo”.

Vejamos isso de mais perto.

1. Primeira tarefa: o terceiro templo?

Reconstruir o templo não faria sentido no tempo de Jesus Cristo, porque o segundo templo de Jerusalém ainda estava de pé3. Entretanto o mesmo Jesus Cristo aludira à construção. “Destrui o templo, disse ele aos judeus, e eu o reedificarei em três dias”. Não está errado o rabino Simmons, apesar das aparências, em exigir do Cristo a construção do terceiro templo. Mas aqui como sempre a realidade supera e como eclipsa a expectativa dos judeus, por demais materialista: Jesus “falava do templo do seu corpo” (Jo 2, 21).

Anuncia Jesus, pouco depois, à samaritana:

Mulher, acredita-me, vem a hora em que não adorareis o Pai, nem neste monte nem em Jerusalém. [...] Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja.[...] [Jo 4, 21,23]

Apegados ao templo nacional os judeus ainda deploram-no 2000 anos após sua destruição. Mas o Messias – que anunciara a destruição (“Não restará pedra sobre pedra” Mc 13, 2) – inaugurou um culto espiritual. Chamou todos os homens a se tornarem “pedras vivas” (I Pd 2, 4-5) do templo onde ele mesmo é a pedra angular (I Pd 2, 6-8), e também a cabeça, porque o templo é seu corpo (Jo 2, 21; 1 Cor 12).

Enquanto os judeus se aferram à idéia do templo material, composto de pedras mortas e erigido em um lugar específico do planeta, o Cristo propõe o templo verdadeiramente definitivo, apto a durar pela eternidade, logo despegado da matéria; um templo universal, onde todos os homens poderão entrar, templo ao qual se integrarão até, por meio do batismo.

- O templo cristão é concreto e real

Um judeu poderia considerar essa explicação uma batata quente intelectual, destinada à ocultação de uma dificuldade incômoda. Parecer-lhe-ia arbitrária a aplicação do nome “templo” ao corpo de Jesus Cristo, sendo tentado a afastar o argumento com desdém. Contudo:

1. As noções de templo-corpo (Jo 2, 21) e de pedras vivas (I Pd 2, 4-5) não se forjaram de forma alguma segundo as necessidades da causa, com o fim de responder ao rabino. São elas princípios fundamentais da revelação cristã:

a) Não se pode crer em Jesus Cristo sem admitir que seu corpo humano – dentro do qual sua alma humana presta ao Pai incessantemente o mais perfeito culto que possa haver – é por natureza um templo (segundo a definição corrente da palavra, templo é o edifício dedicado ao culto de Deus), superior a todos aqueles que os homens possam construir;

b) Não se pode aderir ao ensinamento cristão sobre o batismo (que incorpora-nos o Cristo) sem reconhecer que os batizados se integram a esse templo como pedras vivas.

Eis aí o cristianismo. Ainda que se recusem a crê-lo, os judeus não podem negar que ele é assim, e que existe de fato. Podem a rigor censurar ao Cristo de não haver construído o templo material que eles esperavam, mas não de não haver construído o templo. E isso basta para destruir a objeção.

2. Até os profetas, malgrado a importância que conferiam ao templo (capítulos 30-34 de Jeremias, 40-48 de Ezequiel), dedicavam-se à promoção do culto espiritual e na relativização do templo material. Busque-se nas admoestações de Jeremias:

Não vos fieis em palavras enganadoras, semelhantes a estas: Templo do Senhor, templo do Senhor, aqui está o templo do Senhor. (Jr 7, 4)

O último profeta, Malaquias, anuncia o sacrifício universal, oferecido em toda parte, do qual participam as nações (i. é, os não-judeus):

Porque, do nascente ao poente, meu nome é grande entre as nações e em todo lugar se oferecem ao meu nome o incenso, sacrifícios e oblações puras. Sim, grande é o meu nome entre as nações - diz o Senhor dos exércitos. (Ml 1, 11)

3. Finalmente o judaísmo não poderia em consciência apontar a ausência de templo no cristianismo, visto que ele mesmo está privado de templo há quase vinte séculos! No momento em que Jesus oferecia o sacrifício na cruz (sacrifício do qual é ao mesmo tempo sacerdote, vítima e templo), o véu do templo de Jerusalém rasgou-se todo de alto a baixo (Mt 27, 51). Menos de quarenta anos depois estava totalmente destruído o templo judeu. Ora a ausência de templo material implica ao judaísmo a ausência do culto obrigatório prescrito por Deus no Antigo Testamento. Desde o ano 70 estava abolido o culto que Moisés estabeleceu. Não existe mais o sacerdócio de Aarão. Não há mais sacrifícios públicos. O livro do Levítico caducou, o judaísmo deveu restabelecer-se sobre outros fundamentos (as preces na sinagoga tomaram o lugar dos sacrifícios do templo, e aos sacerdotes se substituíram os rabinos). Compele-se, pois, a devolver ao rabino Simmons sua própria objeção: se o templo material é tão importante, por que permite Deus tamanho eclipse já há quase 2000 anos? Por que o eclipse – anunciado pelo Cristo (“Não restará pedra sobre pedra”) – deu-se justo após a morte deste, no instante mesmo em que vinha de anunciar a criação do novo templo universal e espiritual?

Há nisso sinais que deveriam confranger até aos cegos.

2. A congregação de todos os judeus na terra de Israel.

A segunda grande missão do Messias: congregar todos os judeus na terra de Israel. Ora deu-se justamente o contrário. Portanto não é Jesus o Messias prometido.

O raciocínio do rabino seria impecável caso Deus prometesse de modo absoluto que o Messias congregaria todos os judeus na terra material de Israel. Mas indica a Santa Escritura o contrário. As promessas de Deus de prosperidade temporal a seu povo são condicionais: Se fordes fiéis, proteger-vos-ei e abençoar-vos-ei; mas se infiéis, entregar-vos-ei nas mãos dos inimigos e dispersar-vos-ei. É praticamente o resumo de todo o Antigo Testamento:

É a constante sob os juízes, desde Josué até Samuel; também sob os reis, desde Saul até Sedecias; e finalmente sob os Macabeus, desde Matatias até Hircam. Enquanto se mantivessem fiéis, Deus os protegia de modo miraculoso; logo saíssem da fé, eram punidos na proporção da grandeza de sua revolta: por vezes durava sete anos, outras de dez a vinte anos conforme a gravidade dos crimes. As penas nunca iam além disso, até ao tempo do ímpio Manassés, quando Deus por meio do cativeiro aplicou-a mais longa – durou ela setenta anos 4

As promessas temporais estão sempre sob condição. Quando a condição não é explícita, subentende-se, como o indicara o próprio Deus, alertando contra a interpretação gramatical das promessas:

Ora anuncio a uma nação ou a um reino

que vou arrancá-lo e destruí-lo.

Mas se essa nação, contra a qual me pronunciei,

se afastar do mal que cometeu,

arrependo-me da punição com que resolvera castigá-la.

Outras vezes, em relação a um povo ou reino,

resolvo edificá-lo e plantá-lo.

Se, porém, tal nação proceder mal diante de meus olhos

e não escutar minha palavra,

recuarei do bem que lhe decidira fazer. (Jr 18, 7-10)

Em relação ao povo da aliança nenhuma das promessas do Antigo Testamento é absoluta, mas sim o liame entre fidelidade e recompensa, infidelidade e maldição. Enumera o capítulo 23 do Levítico toda a série de flagelos com que Deus punirá a infidelidade, culminando com a pior dentre todas, a dispersão:

Se, apesar disso, não me ouvirdes, e me resistirdes ainda, marcharei contra vós em meu furor e vos castigarei sete vezes mais, por causa dos vossos pecados. Comereis a carne de vossos filhos e de vossas filhas. Destruirei vossos lugares altos e quebrarei vossas estelas solares; amontoarei vossos cadáveres sobre os de vossos ídolos, e minha alma vos abominará. Reduzirei a deserto as vossas cidades, devastarei vossos santuários e não aspirarei mais o suave odor de vossos perfumes. Desolarei vossa terra e vossos inimigos ficarão estupefatos com ela quando a habitarem.

Eu vos dispersarei entre as nações, e desembainharei a espada atrás de vós; vossa terra será devastada e vossas cidades se tornarão desertas. Então gozará a terra os seus sábados enquanto durar a sua solidão, quando estiverdes na terra de vossos inimigos; então a terra gozará os seus sábados e repousará. Nos dias em que for devastada, ela terá o repouso que não gozou nos sábados do tempo em que a habitáveis.

Naqueles dentre vós que sobreviverem, porei tal espanto em seus corações na terra de seus inimigos, que o ruído de uma folha agitada pelo vento os porá em fuga: fugirão como se foge diante da espada e cairão sem que ninguém os persiga. Sem que ninguém os persiga, tropeçarão uns sobre os outros, como diante da espada. Não podereis resistir aos vossos inimigos. Perecereis entre as nações e a terra inimiga vos consumirá. Os que sobreviverem consumir-se-ão por causa de suas iniquidades na terra de seus inimigos, e serão também consumidos por causa das iniquidades de seus pais, que levarão sobre si. (Lv 26, 17-39)

Ora como nota Blaise Pascal não há relação entre o cativeiro de Babilônia e a narração da terrível dispersão que se abateu sobre o povo judeu a partir do ano 705. Como a diáspora do ano 70 fosse a pior maldição que desceu sobre o povo eleito, ela é por força conseqüência de seu maior crime. As profecias divinas não permitem ir ao contrário disso.

Segundo Maimônides (e a maioria dos judeus hoje em dia) o exílio não passaria de um meio para espalhar a mensagem judaica no mundo inteiro, como o levedo na massa – uma misteriosa e derradeira purificação (mas interminável!) antes do advento do Messias. Levando em conta tal hipótese, ainda assim o exílio não se torna menos uma maldição – o que necessariamente é, antes de tudo – já que as promessas formais de Deus vinculam de forma inarredável dispersão e punição. (O fato de o cativeiro preparar a vinda do Messias, difundindo as profecias, não impede que ele seja por natureza maldição sobre o povo eleito). Qual seja o modo de contornar o problema, a indagação permanece: que crime se cometeu para atrair tamanho opróbrio?

Em 1778 o padre Beurier – célebre predicador – interpelava desta feita os judeus seus contemporâneos:

Há mais de mil e setecentos anos que Deus os pune com severíssimo rigor; há mister pois de que tenhais culpa sobeja aos vossos pais, mesmo àqueles viventes à época de Manassés. Ora qual poderia ser vosso crime? Não é a idolatria, que Deus aborrece amiúde em vossos ancestrais; tendes louvável horror ao culto dos ídolos. Não é também a desobediência à lei de Deus imposta, de vos não mesclar com povos estrangeiros; vós a cumpris com tal justeza que não é possível ir mais além. Qual crime seria maior que a idolatria e as abominações todas que se cometiam ao tempo de Manassés, senão a morte que infligistes ao Messias?

E eis vós dispersos por todo o mundo há mais de mil e setecentos anos, e não obstante resistis sempre. Não é isto o cumprimento literal da profecia de Davi, que diz ao salmo 58: “Não os destruís, ó meu Deus, mais dispersai-os por uma virtude de vossa onipotência” (Sl 58, 12) 6?

Um mancebo judeu do séc. XIX, Simon Théodore Ratisbonne (citado mais acima), perguntou-se a si as mesmas questões, e elas levaram-no ao catolicismo. Em 1824 ainda hesitante escrevia a um amigo:

Li com atenção nossa história, e concluí que a cessação do culto e a ruína do templo, a destruição da Cidade Santa, a confusão entre as tribos e diáspora da nação judia – que todos os fatos coincidem com o estabelecimento do cristianismo no mundo. [...] Vislumbro a situação, e isso me dói: eu daria a vida para tirar meus irmãos dessa situação... mas não posso mais viver entre eles, nem invocar o Deus de meus pais na mesma casa de oração [...]7

Responsável pelas escolas israelitas da Alsácia (seu pai era presidente do Consistório) Théodore teve três anos depois a oportunidade de citar, diante dos pais dos alunos, o capítulo 28 do Deuteronômio, em que se enumeram as bençãos e maldições anunciadas ao povo de Israel. O texto causou espécie:

Se não quiseres escutar a voz do Senhor teu Deus, a maldição se abaterá sobre ti e te destruirá. [...] Tu serás varrido para todos os cantos da terra. [...] O Senhor te ferirá de cegueira e de embotamento, de modo que andes às apalpadelas em pleno meio-dia. [...] Tu serás em todo tempo denegrido por calúnias e oprimido por violências, sem que ninguém te defenda. [...] Essas maldições cairão sobre ti e tua descendência como sinal e prodígio [...].

Foi interrompida a leitura sob os protestos furibundos de um dos ouvintes que, intimando aos berros o público a se retirar, entendera ali um ataque contra as tradições judaicas. Respondeu Théodore calmamente que limitava-se a ler as palavras de Moisés, retomando a leitura. Compreendeu que não poderia adiar ao infinito sua profissão pública da fé cristã. Alguns meses depois declarou ao pai:

Sou cristão. [...] Sou cristão, mas adoro ao mesmo Deus que meus pais, o Deus três vezes santo, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, e reconheço Jesus Cristo como o Messias, o Redentor de Israel.

Le Sel de la Terre
Enviado por Joanne em 17/01/2013
Reeditado em 17/01/2013
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