Sobre Adão e Eva
Ele foi o primeiro à vida, o primeiro à dor e o primeiro à morte, o primeiro a sentir solidão e o primeiro a amar. Pó de terra, este é o significado de seu nome. Segundo as escrituras judaico-cristã foi gerado por Deus que não encontrando outra forma lhe deu sua própria imagem e esse nome: Adão.
Criatura de Deus, tirado da terra, filho de luz e trevas Adão recebeu uma missão: cuidar de um jardim. Recém saído das mãos de Deus ele foi logo dando nome às coisas e aos animais e reinou sobre toda a criação, mas, como Deus antes de criá-lo, sentiu-se só. E de suas costelas veio a mulher, sua semelhante de curvas e inteligência. Por Adão que só sabia dar nomes, veio o nome da mulher, e chamou-lhe Eva, que quer dizer vida: e dado a razão do nome, acrescentou Adão um erro sobre o outro, obedecendo aquela que era a razão de sua vida, mesmo sabendo que ela estava errada. Mas a “Vida” de Adão tirou-lhe o jardim, a amizade com seu pai-criador, o conforto, a fartura, a paz, a preguiça. E Adão, que resistiu tão bravamente àquela cirurgia das costelas a que tão prematuramente se submeteu, não resistiu aos encantos do que veio depois. Mas Adão, que administrava um jardim com criatividade, não se sentia bem dentro dele, e, sem Vida, desejou-a como um poeta apaixonado.
Um padre disse-me certa vez que Adão era hermafrodita e fora Deus quem lhe revelara esse terrível segredo; eu, menos feliz em matéria de revelação calei-me. Os rabinos judeus dizem ter lido os livros de Adão; como nunca os li, nem falo o idioma de nosso primeiro pai, abstenho-me de comentários; mas, certamente, dizem ser coisa bem difícil que Adão, ruivo e com uma bela cabeleira, seja o pai dos negros. Dizem também ser coisa bem difícil que Adão tenha de fato existido. O teólogo Carlos Mesters diz que Adão representa na narrativa bíblica todos os homens. O filósofo Leibniz diz que a ligação desse personagem com os eventos humanos é intrínseca. De certo, para todos que querem raciocinar sem preconceitos, é evidente que Adão não é um homem singular de carne e osso, nem o pai primogênito de toda humanidade, mas uma simples metáfora que marca nossa essência.
Entre as mais importantes contribuições oferecidas pela Idade Média para a história da teologia, recomenda-se “O livro das Sentenças” de Pedro Lombardo, filósofo e teólogo do século XII. Nesta obra o seu tratamento em relação à Eva, sobre a qual deu, diríamos, uma definitiva significação do seu valor como símbolo de todas as mulheres e do interesse que a elas se deve suscitar. Inspirado pelo comentário de Santo Agostinho ao livro do Gênesis, Pedro Lombardo se perguntou por que a criação da mulher veio da costela de Adão e não de sua cabeça ou de seus pés. Pedro explica: “Não foi formada como uma dominadora (da cabeça) ou uma escrava do homem (dos pés), mas (do lado, das costelas), para ser do homem sua companheira” (Sentenças 3, 18, 3). Então, sempre com base no ensinamento bíblico, acrescenta Lombardo que nesta ação está representada a igualdade que deve haver, em todas as coisas, entre o homem e a mulher, pois do mesmo modo que a mulher foi formada da costela de Adão enquanto ele dormia, também os dons de Deus começaram a fluir a partir do lado de Cristo, aberto pela lança de um soldado romano. Das costelas de Cristo adormecido, derramou sangue e água, respectivamente símbolos de vida e remissão. Com efeito, para Lombardo, outro significado não pode ter a mulher para o homem, senão ser para ele, sangue e água, ou seja, vida e remissão.
No paraíso Adão tinha segurança e conforto, mas não estava feliz. Por causa de Eva recebeu a seguinte condenação: “Visto que atendeste à voz da sua mulher, em fadigas obterá teu sustento. A terra produzirá abrolhos e tu os comerás. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque tu és pó e ao pó tornarás” (Gn. 3: 17-19). E ele aceitou sua sentença, mas levou Eva consigo. Tomou sua companheira e saiu do jardim sem mais reclamações... Viveu miseravelmente e teve que trabalhar, se humilhar e envergonhar-se de sua nudez, mas venceu a inocência fabricando roupas para cobrir-se do frio, do sol e da excitação alheia. Os filhos também lhe deram trabalho: Caim matou Abel. Mas nas Escrituras não se encontram nem uma palavra ou sinal do arrependimento de Adão. Ao lado de sua Vida, a mulher, ele criou seu próprio paraíso, que não estava num lugar físico, mas dentro do seu coração.
Ademais, com base em nem um fundamento tentaram incriminar Eva das desgraças do tolo Adão, mas o homem só pode ser o que é, e só será o que é de acordo com sua media. A medida de Adão não estava completa sem Eva. E a antiguidade, creio eu, deixou para nossos dias uma religiosidade burra, pois julgou estar fazendo algo pela divindade igualando-a com o homem, revestindo-a com suas faculdades e presenteando-a com seus humores e suas mais vergonhosas necessidades, oferecendo-lhe dos nossos alimentos para comer, nossas danças, macaquices e farsas para alegrá-la, nossas roupas para cobrir-se e casas para alojar-se, afagando-a com odor de incenso, sons de música, guirlandas e ramalhetes, e, para adaptá-la a nossas paixões viciosas, adulou sua justiça com uma vingança desumana contra Adão e Eva: Dessa vingança a igreja católica criou o celibato dos padres.
A essa conclusão tão religiosa, quero acrescentar apenas estas palavras de uma testemunha na mesma condição que Adão, para o final desta longa e tediosa reflexão, que me forneceria matéria sem fim: “Não há nada mais importante que a mulher, o resto é bobagem” – Oscar Niemayer. Eis aí belas palavras e um desejo útil, mas igualmente absurdo. Contrariamente, certa vez, disse-me um bispo: “Cabe à nossa fé cristã guardar o celibato e não seguir os passos de Adão”. E depois nós tolamente tememos uma certa espécie de morte, sendo que já passamos e estamos passando por tantas outras por causa da mulher que é nossa Vida, sem a qual não somos homens. Mas o bispo insiste: “vivam castos e sereis felizes”. – Mas será isso mesmo?