Andar na presença de Deus

ANDAR NA PRESENÇA DE DEUS

Anda na minha presença e sê perfeito (Gn 17,2).

As Sagradas Escrituras nos revelam, em muitos de seus textos, a vontade de Deus com relação à humanidade, na conformidade do plano divino de salvação. Há duas chaves para se conhecer a vontade de Deus para uma dada situação:

1. Certifique-se de que o que você está pedindo ou pensando em fazer não é algo que desagrade ao Senhor, ou que a Bíblia proíbe;

2. Adquira a certeza de que o que você está pedindo ou pensando em fazer irá glorificar a Deus e ajudar no seu crescimento espiritual. Se estas duas coisas forem verdade e Deus, ainda assim, não está dando o que você está pedindo – então provavelmente não é da vontade dele que você tenha o que está pedindo. Ou, talvez, você somente precise esperar um pouco mais por isso. Conhecer a vontade de Deus é, às vezes, difícil.

As pessoas querem que Deus, basicamente, diga a elas o que fazer – onde trabalhar, onde morar, com quem se casar, etc. Muitos querem que Deus funcione como um mero oráculo, dando orientações para questões humanas de pouca importância. A esse respeito São Paulo nos diz: Não se amoldem às estruturas deste mundo, mas transformem-se pela renovação da mente, a fim de distinguir qual é a vontade de Deus: o que é bom, o que é agradável a ele, o que é perfeito (Rm 12,2). Se andarmos na luz do Espírito Santo, não será incomum que a vontade de Deus corresponda aos nossos justos desejos.

Coloque em Javé o seu prazer, e ele dará o que seu coração deseja. Entregue seu caminho a Javé, nele confie, e ele agirá (Sl 37,4s; cf. Fl 2,1ss).

O fato é que Deus deseja revelar sua vontade mais intensamente do que nós ansiamos por conhecê-la (cf. Sl 32,8s). Se desejamos, sinceramente cumprir a vontade de Deus, podemos ter certeza de que o Senhor sempre nos guiará de acordo com seu plano perfeito. Os que esperam no Senhor renovam suas forças, criam asas, como águias, correm e não se afadigam, podem andar que não se cansam (Is 40,31). Javé sempre confronta a atitude humana com o seu projeto:

Javé disse a Moisés: “Farei chover pão do céu para vocês: o

povo sairá para recolher a porção de cada dia, para que eu o

experimente e veja se ele observa a minha lei, ou não” (Ex

16,4).

Existe uma expressão veterotestamentária que se refere de forma eloquente àqueles que conhecem a vontade de Deus e a colocam em prática: andar na presença do Senhor. No Paraíso, enquanto desfrutava da amizade do Criador, Adão caminhava com ele pelas alamedas do Edem. Quando caiu no pecado, teve medo, ficou envergonhado e deixou de andar na presença de Deus. Só anda nesse presença quem é iluminado pela graça e trilha os caminhos de santidade que levam à perfeição. É o exemplo do patriarca Abraão:

Quando atingiu Abraão a idade de noventa e nove anos,

apareceu-lhe o Senhor e lhe disse: “Eu sou o Deus Todo-

poderoso; anda na minha presença e sê perfeito” (Gn 17,1s).

Para ser como Deus quer, é preciso ser homem “conforme o coração de Deus”, que faz o que o Senhor quer, que anda na presença dele. Só Davi é chamado de “um homem segundo o coração de Deus”, ou seja, quem faz a vontade divina e se perfila ao seu projeto. A esse respeito vamos estudar o que disse Samuel ao perverso rei Saul:

Agora, porém, o seu reinado não se firmará. Javé encontrou um

homem conforme o coração dele e o nomeou chefe do seu povo,

porque você não obedeceu ao que Javé lhe tinha ordenado (1Sm

13,14).

Este homem era o rei Davi, um homem controvertido, cheio de conflitos, pecador, mas que reconhecendo suas limitações procurou sempre viver na presença de Javé, cumprindo sua vontade, tanto que é conhecido como aquele que viveu conforme os desejos do coração de Deus. Foi ele quem disse:

Então eu digo: “Aqui estou” - como está escrito no livro – “para

fazer a tua vontade”. Meu Deus, eu quero ter a tua lei dentro de

minhas entranhas (Sl 40,8s).

A partir de agora vamos buscar na vida e história do rei Davi o mote para a nossa reflexão de hoje. Para tanto, vamos às Escrituras para descobrir algumas características de Davi. Pode haver mais; encontramos cinco:

1. Obediência

Davi, como rei de Israel, foi obediente ao que Deus lhe prescreveu. Enquanto Saul, seu antecessor desobedeceu a Javé, Davi obedeceu aos princípios de Deus; ele poupou a vida de Saul por conta disto. Davi, ainda jovem, foi escudeiro de Saul e teve oportunidade de matá-la, mas respeitando a qualidade de ungido do rei, não o fez.

Davi fugiu para Masfa de Moab. Ele disse ao rei de

Moab: “Permita que meu pai e minha mãe fiquem aqui com

vocês até que eu saiba o que Deus quer de mim” (1Sm 22,3).

Em outro momento crucial de batalha Davi obedeceu ao Senhor:

Avisaram a Davi que os filisteus estavam atacando Ceila e

saqueando as eiras. Davi consultou a Javé: “Posso ir atacar os

filisteus?” Javé respondeu: “Pode ir. Você os derrotará e

libertará Ceila”. Os homens de Davi, porém, lhe

disseram: “Estamos em Judá, e já estamos com medo. Quanto

mais se formos a Ceila para lutar contra as tropas dos filisteus!”

Davi consultou outra vez a Javé. E Javé respondeu: “Pode

descer até Ceila: eu vou entregar os filisteus em seu poder”.

(1Sm 23,1-4).

Quem não obedece à autoridade legalmente constituída não é capaz de obedecer a Deus.

2. Amor

O amor é a marca de Deus (cf. 1Jo 4,8.16). Sem amor nada tem sentido (cf. Cl 3,14). Sem amor a atividade se torna um simples ativismo religioso, que massageia o ego de alguns, excita sua vaidade, reforça a ambição e dá a sensação de uma obra inacabada. O amor não é um ato involuntário, mas um ato de decisão (cf. Mt 5,44); é um mandamento (cf. Jo 13,34). Nesse aspecto o amor é soberano (acima de qualquer outro sentimento), supremo (vem de Deus) e independente (não funciona como moeda de troca). O amor de Saul por Davi era movido por interesse; transformou-se em inveja e acabou em ódio. Ele perdeu o amor por uma decisão da sua própria vontade. O amor de Davi por Saul era diferente. Vemo-lo obsequiando o rei com expressões sinceras e respeitosas, como “meu rei”, “meu senhor” e “sou teu servo” (cf. 1Sm 24). Davi amou Saul não como valor de troca, mas por decisão. No cristianismo Jesus ensina que seus seguidores não serão reconhecidos por atos externos, mas pelo amor, que se resume em perdão, bondade, misericórdia e partilha (cf. Jo 13,35). Por conta disto, o apóstolo-evangelista sinaliza:

O mundo passa com seus desejos insaciáveis. Mas quem faz a

vontade de Deus permanece para sempre (1Jo 2,17).

3. Fé

Uma das coisas que mais agrada o coração de Deus – por certo a maior – é a nossa fé. Nada é impossível aquele que crê. O que vence o mundo é a nossa fé (cf. 1Jo 5,4). Sobre a fé o autor da carta aos hebreus traz uma importante contribuição à nossa reflexão:

Eu não teria tempo, se quisesse falar de Gedeão, de Barac, de

Sansão, de Jefté, de Davi, de Samuel e dos profetas. Graças à

fé, eles conquistaram reinos, implantaram a justiça,

alcançaram as promessas, taparam a goela dos leões (Hb

11,32s).

O menino Davi venceu o gigante Golias porque teve fé. Contra toda a lógica humana ele enfrentou e derrotou o inimigo, armado apenas com sua fé em Javé, o Deus dos exércitos:

Davi disse a Golias: “Você vem contra mim armado de espada,

lança e escudo. E eu vou contra você em nome de Javé dos

exércitos, o Deus de Israel, que você desafiou. Hoje mesmo Javé

entregará você em minhas mãos: vou ferir você e arrancarei a

sua cabeça; hoje mesmo vou entregar seu cadáver e os

cadáveres do exército dos filisteus para as aves do céu e os

animais do campo. Desse modo, toda a terra saberá que existe

um Deus em Israel (1Sm 17, 45s).

O adágio popular diz que “a fé remove montanhas”. Acho melhor dizer “a fé move o coração de Deus”, isto é, chama sua atenção para os nossos problemas, nossas dores e angústias. O homem que tem fé anda na presença de Javé e vive segundo o coração de Deus.

4. Liberalidade

É sabido que Deus ama a quem reparte com alegria (cf. 2Cor 9,7). O rei Davi usou de liberalidade, não foi mesquinho com a partilha dos seus bens. Ele nos ensinou que é preciso oferecer algo que tenha valor, diferente da “caridade” de tantos por aí, que oferecem só coisas sem valor, que não prestam. Ser liberal, nesse aspecto, é doar com abundância, até com sacrifício sem se apegar ao valor das coisas.

Areúna perguntou: “Por que o senhor meu rei veio até aqui?” Davi respondeu: “Para comprar a sua eira, a fim de construir um altar para Javé. Desse modo, o povo ficará livre da peste!”. Então Areúna disse ao rei: “Que o senhor meu rei fique com a eira e ofereça em sacrifício o que achar melhor. Aqui estão os bois para o holocausto, a grade e a canga dos bois para servir de lenha”. E acrescentou: “Que Javé seu Deus aceite o sacrifício que o senhor vai oferecer”. O rei respondeu a Areúna: “De jeito nenhum! Quero comprar a eira a troco de dinheiro. Não vou oferecer a Javé meu Deus holocaustos que não me custem nada”. Então Davi comprou a eira e os bois por meio quilo de prata. Construiu aí um altar para Javé e ofereceu holocaustos e sacrifícios de comunhão. Então Javé se compadeceu do país. E a peste deixou Israel (2Sm 24, 21-25)

Na iminência da construção do templo de Jerusalém, Davi revela todo seu desapego e sua liberalidade:

Por isso, fui fazendo os preparativos, conforme pude: ouro, para os objetos de ouro; prata, para os objetos de prata; bronze, para os objetos de bronze; ferro, para os objetos de ferro; madeira para toda a mobília, pedras de ônix e de engastar, pedras ornamentais e coloridas, todo tipo de pedra preciosa e muito alabastro. Por amor ao Templo do meu Deus, além de tudo o que preparei para o Santuário, entreguei também os meus tesouros de ouro e prata: cem toneladas de ouro, ouro de Ofir, e duzentas e quarenta toneladas de prata refinada para revestir as paredes das salas, para os objetos de ouro e prata e para o trabalho dos ourives. E pergunto: Quem está disposto a fazer hoje um donativo a Javé? (1Cr 29,2-5).

O valor doado pelo rei, em moeda atual ultrapassaria a casa dos oito bilhões de dólares. Isto é uma doação com o coração perfeito! O homem que tem o coração como Deus quer, sabe que não é possível servir a Deus e ao dinheiro. Em muitos casos, o oposto de Deus não é o diabo, mas o dinheiro.

5. Capacidade de adoração

Davi sempre tinha o louvor a Deus em seus lábios. Adorar é um ato de vontade e de fé. Mesmo sob a dor e a perda ele nunca renunciou ao espírito de adoração que move o homem justo. As atitudes do rei – o maior rei de Israel – ensinam que todos, ricos, pobres, homens, mulheres e crianças, fortes, doentes, sábios e ignorantes devem procurar a Deus. Mesmo assim é salutar que se saiba que só há um tipo de pessoas que Deus procura: os verdadeiros adoradores. Não há resultado sem atitude. Se você viver assim como Deus quer, você se tornará alguém segundo o coração de Deus. Quem são os verdadeiros adoradores?

Os verdadeiros adoradores são os fiéis de todos os tempos, conscientes, que amam a Deus e seguem o seu Cordeiro, adorando em espírito e verdade. São aqueles que crêem e são batizados (cf. Mc 16, 16), e por essas duas atitudes obtêm a salvação. Adorar em espírito e verdade é ir além daquelas práticas dos antigos judeus, que professavam uma fé superficial, dentro de uma religião alegórica, tradicional.

Adorar em espírito é relacionar-se com Deus sob o eficaz influxo de Espírito Santo. Só o Espírito possibilita essa adoração. Nas Escrituras, vemos que o Espírito de Deus move as pessoas no sentido de adorar filialmente ao Pai. Os verdadeiros adoradores, os que se deixam conduzir pelo Espírito Santo, são os renascidos da água e do espírito (cf. Jo 3, 5).

Os verdadeiros adoradores são aqueles que são capazes de apoderar da unção que o Espírito de Deus disponibiliza aos que crêem e procuram viver na sua presença e sob sua vontade. A vontade de Deus – ensina Santo Ireneu († 200) é o homem salvo. Curiosamente, a gente se acostumou a ver Davi – aquele foi segundo o coração de Deus – como um rei de Israel. As Escrituras, entretanto, apontam-no com outras credenciais: a) Profeta; b) Patriarca (cf. At 2,29s); c) Ungido (rei, servidor e herói da fé).

Por fim, Davi morreu numa velhice feliz, tendo vivido muitos

anos, tendo ficado rico e famoso (1Cr 29,28).

Você quer ser uma pessoa segundo o coração de Deus, conforme a vontade dele, andando na sua presença paterna? Basta obedecer, amar, ter fé, ser liberal com suas posses e se tornar um adorador por excelência. Quem age assim toma posse de todas as credencias de Davi, vistas acima. Por fim, cabe a questão definitiva: qual a vontade de Deus?

A vontade daquele que me enviou é esta: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas que eu os ressuscite no último dia. Esta é a vontade do meu Pai: que todo homem que vê o Filho e nele acredita, tenha a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia (Jo 6,39s).

Às vezes é uma heresia grosseira a gente se julgar intérprete da vontade de Deus fora daquilo que é dito nas Escrituras. Tem muita gente por aí, nas Igrejas, na televisão, na sociedade que se arvora a arauto dos desejos divinos. Será que somos capazes de identificar fielmente – sem confundir os outros – qual é a vontade de Deus?