A Patrística Grega

A PATRÍSTICA GREGA

Considerando-se o objetivo desta matéria, não vou me preocupar muito com o aspecto teológico propriamente dito da produção dos Pais da Igreja, mas refletir a partir de seus textos históricos mais conhecidos. Por teologia patrística se entende os textos produzidos pelos antigos escritores da Igreja. Essa coletânea tem uma divisão geográfica: a ocidental (latina) e a oriental (grega). Patrologia aparece também como sinônimo de patrística. Para simplificar, vamos aos nomes mais expressivos da Patrística grega.

 João Crisóstomo,

 Gregório de Nissa,

 Gregório de Nazianzo,

 Basílio Magno.

Pais ou Padres? Há menções das duas palavras. Eu prefiro dizer “pais da Igreja” não tanto por meu anti-clericalismo, mas que entre esses escritores há leigos a quem não se pode chamar de “padres”. Embora exista uma “patrística latina”, a maior parte desses escritos foi feita na língua grega. Há escritores que insistem em afirmar que, do ponto de vista lingüístico, o cristianismo, nos seus primeiros séculos, foi um movimento grego. A civilização, a cultura e a literatura helênica tinham conquistado tão profundamente o mundo romano, que não era possível encontrar no Ocidente uma só cidade em que não se falasse corretamente o grego. Os Pais gregos, bem como os autores do Novo Testamento, não escrevem no grego clássico, e sim no koiné, um meio-termo entre o ático (clássico) e o demótico (popular). É claro que, em termos de Pais da Igreja, não existem só estes, aqui relatados abaixo.

 JOÃO, o crisóstomo († 13/09/407)

João nasceu na Antioquia, atual Antakya (região da Capadócia). Sua eloqüência, seriedade e sentido prático da pregação deram-lhe a fama de maior orador da Igreja antiga. Ganhou o título de “Crisóstomo” (stóma, boca e xrysos, ouro) três séculos depois. Em seus sermões proféticos atacava reis, bispos e autoridades, o que lhe rendeu inimizades, boicotes e até dois exílios. Sua obra consta de mais de 300 homilias, que vão desde o Gênesis até o Apocalipse.

Dentre suas obras, encontram-se homílias exegéticas, e epístolas (cerca de 240), tratados teológicos e liturgias. Nenhum Pai da Igreja foi como ele, em zelo apostólico, em sabedoria literária, discernimento e oratória. A doutrina Patrística de Crisóstomo é eminentemente cristológica, revela o Cristo humano e divino. Foi nomeado Patriarca de Constantinopla em 398 por Arcádio, imperador do Império Romano do Oriente. Seu projeto de reformar o clero gerou-lhe, desde o início, muitos inimigos. Seus tratados sobre o Pecado Original, Eucaristia (presença real) e Penitência (confissão pública e não auricular) são atuais, assim como a contundência da sua pregação social.

Curiosamente, a “Opção pelos pobres”, até hoje, século XXI, ainda não foi convenientemente entendida e assumida por muitos segmentos da Igreja. Uns afirmam tratar-se de desvio do evangelho, outros, mera ideologia a serviço de partidos políticos, movimentos populares ou associações classistas (A.M. Galvão, A Fome e o Ensino Social da Igreja, Ed. Santuário, 2002).

A “opção pelos excluídos” dos Pais da Igreja precisa ser compreendida e colocada em prática, pois ela explicita a autêntica base evangélica para o pensamento social de todos os tempos. É a partir da produção teológica (e literária) dos Pais da Igreja que surge, em oposição à usura, à exploração e à exclusão, um pensamento social, solidário e eminentemente evangélico.

A avareza é uma paixão tão funesta que não é mesmo possível ficar rico sem ser ladrão ou explorador. Honesta é a pequena propriedade que é adquirida pelo trabalho pessoal de toda uma vida, sem dependência de roubos pessoais ou praticados pelos pais (in Homilia XIII);

Curiosamente, João Crisóstomo, em pleno século V, é o precursor do chamado “estado de necessidade”, hoje contemplado por boa parcela dos julgadores que adota o “direito alternativo”, em que não é crime (e teologicamente não é pecado) roubar para matar a fome (sua ou de familiares):

Quando o pobre nos furta, ele comete um ato de justiça;

pois veio buscar o que é seu, e que nós, criminosamente, lhe

sonegamos (in Homilia sobre 1Cor 13);

Deus nunca fez uns ricos e outros pobres. Deu a mesma terra para todos. A terra é toda do Senhor e seus frutos devem ser comuns. As palavras ‘meu’ e ‘teu’ são motivo e causa de discórdia. A comunidade dos bens é uma forma de existência mais adequada à natureza que à propriedade privada (in Homilia sobre 1Tm 12, 4);

Reter os alimentos no estômago é uma doença grave para o corpo Prejudica todo o organismo. Assim também constitui enfermidade a maldade dos ricos em reter só para si o que possuem, pois resulta em perdição para si e para os outros (in Homilia sobre Lc 12, 13-21).

São João Crisóstomo, por todos os seus méritos de sabedoria e santidade, foi declarado Santo e Doutor da Igreja. Sua festa ocorre em 14 de setembro.

 GREGÓRIO, de Nissa († 394)

Os três Pais da Igreja a seguir, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa e Basílio, são chamados de “Padres Capadócios”, por haverem exercido seu ministério a partir da região da Capadócia. Essencialmente místico, elaborou a primeira sistematização teológica da Igreja.

Os escritos teológicos de Gregório de Nissa, como, aliás, os demais escritores de sua época, além de místicos, são eminentemente sociais:

Há realmente um jejum não corporal e uma temperança não material, a abstinência do mal pela alma convertida. Por isso, jejuai do mal; sede fortes contra os desejos incompatíveis; repeli o ganho ilícito (in Homilia sobre o amor fraterno aos pobres);

Em algumas casas, quais oficinas de Mámon, as pessoas comem até vomitar, enquanto lá fora, uma multidão da lázaros, os amigos de Jesus cobertos de feridas, são expulsos a pauladas pelos serventes e corridos a dentadas pelos cães (idem).

Aprende com o profeta as obras do jejum sincero e puro: “abre toda a cadeia injusta. Desata os nós dos pactos violentos. Reparte teu pão com o faminto e ao pobre sem teto recolhe em tua casa” (Is 58, 4.6s). O tempo atual nos apresenta uma quantidade de nus e de sem abrigo. Há multidões de escravos junto a cada porta (idem);

Foi Gregório, irmão de Basílio Magno, quem sistematizou, pela primeira vez, a teologia da Igreja. Sua extensa obra consta de escritos dogmáticos, tratados exegéticos, homilias e escritos ascéticos. Sua doutrina, a par de sua contundente chamada ao social, se fundamenta sobre, a) o conhecimento de Deus; b) a Doutrina Trinitária; c) a Cristologia; d) a Escatologia; e) a Eucaristia. Ele foi o mais especulativo dos Padres Gregos. Bispo de Nissa, foi chamado de “coluna da ortodoxia” e por isso proclamado Doutor da Igreja e elevado à honra dos altares. Sua festa é celebrada a 12 de março.

 GREGÓRIO, de Nazianzo († 390)

Como o amigo Basílio, este outro Gregório também vem de uma abastada família da Capadócia. No final de sua vida, se retira para consagrar-se à atividade contemplativa e às obras literárias. Sua teologia é igualmente voltada para os pobres, excluídos, órfãos, viúvas e doentes:

Quando damos aos indigentes o que eles precisam, estamos lhes devolvendo o que lhes pertence e não é nosso. Mais do que misericórdia, estamos fazendo justiça, pagando uma dívida (in Patrem tacentem propter plagam grandinis, 18 PG 35, 957);

Sem dúvida alguma, a tudo teremos de renunciar por amor a Cristo, para que o acompanhemos de modo autêntico. Carregando sua cruz, admirados por sua leveza, seremos levados ao mundo do alto, ágeis, sem nada para nos puxar para baixo (Sermão XIV);

Mas que somente se glorie quem se gloria em procurar e conhecer a Deus, em sofrer com os que sofrem e reservar para si algo do bem que está por vir. Os bens terrenos são, na verdade, inconstantes e passageiros. Os outros, ao contrário, existem sempre e permanecem. Nunca desaparece nem decepciona a esperança dos que têm fé (idem).

Santo, Bispo de Constantinopla e Doutor da Igreja, Gregório Nazianzeno foi o primeiro a ganhar o título de “o Teólogo”. Sua festa é no dia 2 de janeiro. Não confundir os dois Gregório com São Gregório Magno (Papa † 604) cuja festa ocorre em 03 de setembro.

 BASÍLIO MAGNO († 379)

Os Padres Capadócios forneceram excepcionais subsídios para a elaboração do Ensino e Teologia Social da Igreja. Os sermões de Basílio deixavam os espectadores boquiabertos, pela audácia da denúncia e pela profundidade do conteúdo:

Contemplas o teu ouro e não tens ao menos um olhar para teu irmão. Conheces todo o tipo de moeda e sabes distinguir a falsa da verdadeira, porém a teu irmão, na necessidade, tu o ignoras por inteiro (Sermão sobre ‘Destruirei meus celeiros e construirei maiores’);

Dúplice é a espécie da tentação: de um lado, as tribulações que põem à prova o coração como o ouro no crisol (cf. Sb 3, 6) mostram quanto há nelas de bom na prática da paciência; de outro lado, a própria prosperidade da vida, que para a maior parte das pessoas se torna, freqüentemente, uma prova, dado que é igualmente difícil manter-se seguro o ânimo nas adversidades e não se deixar dominar pelo orgulho e pela arrogância no meio das dificuldades . (idem).

Dizemos que é ladrão aquele que leva as coisas alheias. E o que dizer de você que transforma em sua exclusiva propriedade aquilo que recebeu de Deus, e que devia ser comum a todos? (Homilia sobre a Primeira Carta a Timóteo 12, 4);

O pão que guardas em tua despensa pertence ao faminto, como pertence ao nu o agasalho que escondes em teus armários. O sapato que apodrece em tuas gavetas pertence ao descalço, e ao miserável a prata que ocultas (in Sermão II, contra a avareza, inverno de 405);

Aquele que despoja o homem de sua roupa é um ladrão. O que não veste a nudez de um indigente, quando pode fazê-lo, merecerá outro nome? (Sermão II, contra a avareza).

A mais célebre peça oratória de São Basílio Magno, inspirada em Cícero, é a comparação com o teatro:

O rico diz:

- Qual é o meu erro em guardar o que me pertence?

- Mas quais são mesmo os bens que de fato te pertencem? Pareces-te com um homem que, chegando ao teatro, quisesse impedir que os outros entrassem e imaginasse poder gozar sozinho de um espetáculo ao qual todos têm direito. Assim são os ricos: apoderam-se dos bens comuns que açambarcaram porque foram os primeiros a ocupá-los. Se cada um só guardasse para si o necessário, riqueza e pobreza seriam abolidas. Ao faminto pertence o pão que tu guardas (in Homilia contra os ricos e contra a avareza).

Basílio não é um teórico que pesquisa e discorre academicamente sobre a pobreza. Vemos que sua atividade ascética, sua inclinação para a vida monástica, não o impediu de se dedicar a socorrer concretamente os pobres e denunciar os mecanismos geradores da pobreza.

A pobreza não é desígnio da Providência como ocasião para o rico ganhar méritos celestes dando esmolas e socorrendo necessitados. A pobreza é fruto da injustiça, da ganância, da avareza dos ambiciosos (in Basílio de Cesaréia, Ed. Paulus, 1996)

São Basílio é chamado “o pai dos monges orientais”; ele é um dos “quatro grandes doutores da Igreja Oriental”. Santo, sua festa ocorre a 2 de janeiro.