PROVAS DA EXISTÊNCIA DE DEUS: O ARGUMENTO COSMOLÓGICO KALAM
O argumento cosmológico Kalam (chamarei apenas de ACK) é um dos mais bem sucedidos e mais utilizados argumentos a favor da existência de Deus. Porém,apesar do seu sucesso, ele contém falhas muito graves que geralmente são desconhecidas, tanto por ateus quanto por teístas. Eu já expus essas falhas em vários debates, porém, nunca escrevi nenhum texto formal tratando apenas desas falhas. Este ensaio/artigo tratará de apenas uma delas, um erro categórico existente no argumento.Existe outras falhas, mas que podem ser tratadas em outra ocasião. Embora estas também sirvam para invalidar o ACK, seria demasiado trabalhoso apresentá-las aqui. O erro categórico do ACK, no entanto, é simples de ser exposto e sua eficiência é imediata.
O ACK faz parte da família dos argumentos cosmológicos, que são aqueles que tentam provar ou justificar a crença em Deus mostrando que ele seria a única explicação para a existência do universo. Já analisei aqui o argumento cosmológico de São Tomás de Aquino e, embora o ACK seja parecido em alguns aspectos, este evita algumas dificuldades daquele. O ACK não é novo. Foi elaborado pelos filósofos árabes na Idade Média, mas ressurgiu com força graças ao teólogo William Lane Craig. Talvez arazão porque o ACK seja tão popular é porque ele condiz com algumas de nossas intuições sobre a cosmologia científica, no entanto, como mostrarei, ele é uma má interpretação das teorias científicas. De maneira bem simples, o ACK se apresenta da seguinte maneira:
1. Tudo que começa a existir tem uma causa.
2. O universo começou a existir.
3. Logo, o universo tem uma causa.
Como tenho dito muitas vezes aqui, para se refutar um argumento temos que mostrar ou que a forma lógica é inválida ou que alguma premissa é falsa. Como se vê, aforma lógica do ACK é válida, sendo assim, se o argumento é incorreto, qual a premissa falsa? A primeira premissa é falsa. Aliás, mais que isso: ela é sem sentido. Ela supõe que coisas tem causas, mas isso é falso. Coisas não tem causa. O que tem causas são eventos. Apenas eventos podem ter a propriedade de ser causados e apenas eles podem ser causas ou efeitos. É claro que na linguagem cotidiana dizemos que coisas tem causas, mas isso é só um modo de falar, não é literal. É função da filosofia esclarecer ouso da linguagem comum sem contrariá-la. Uma boa análise de um termo tem que dar conta de explicar o uso que fazemos dele. Desta forma, vejamos então se entender o conceito de causa e efeito como propriedades de eventos explica melhor o uso que fazemos dos conceitos que entendê-las como propriedade de coisas. Mostrarei isso usando uma reductio ad absurdum(redução ao absurdo).
Tomemos por um instante como verdade que coisas podem ter ou ser causas. Se, por exemplo, atiro uma pedra numa vidraça e este se quebra, diremos que a causa foia pedra, não é mesmo? Bem, existe uma proposição que sabemos ser absolutamente verdadeira: não existe efeito sem causa, assim como não existe causa sem efeito. Ora, a pedra que atirei na vidraça existia muito tempo antes de eu tê-la quebrado. Portanto, só podemos concluir que antes de quebrar a vidraça a pedra era uma causa sem efeito. Como sabemos que não existe causa sem efeito, podemos concluir, por "reductio ad absurdum", que a pedra não é a causa de a vidraça ter se quebrado. Porém, se considerarmos que a causa foi um evento, não uma coisa, tudo começa a fazer sentido. A causa de a vidraça ter se quebrado foi um evento, a pedra se chocando contra o vidro. Além do mais, se consideramos que coisas podem ser causas, seria impossível determinar o que é a causa nesse ou em qualquer caso. Alguém poderia dizer que a causa não foi a pedra, mas eu, que a atirei contra a vidraça; eu poderia alegar que a causa foi o peso da pedra ou a fragilidade do vidro; outro poderia alegar que a causa foio movimento da pedra, etc. Se considerarmos que coisas podem ser causas, seria impossível determinar uma causa apenas. No entanto, entendendo-a como eventos, isso se torna simples: a causa de o vidro ter quebrado foi um evento pedra-se-chocando-contra-o-vidro, e este evento, por sua vez, é efeito de outro evento, que é o movimento da pedra, que é causado por outro evento, que é meu ato de ter atirado a pedra. Isso explica perfeitamente o uso que fazemos do conceito de causa e efeito, sem contrariar o que entendemos por isso intuitivamente.
Está claro, assim, que apenas eventos podem ter ou ser causas ou efeitos.Dizer que tudo que começa a existir tem uma causa não é apenas falso, é sem sentido. Sendo assim, também é sem sentido alegar que o universo teve uma causa. No entanto, assim como quando dizemos que uma coisa causou algo estamos apenas usando uma linguagem figurada, talvez a primeira premissa do ACK seja assim também. Como ele se baseia em evidências científicas para sustentar que o universo teve um começo, talvez ele queria dizer não que o universo teve uma causa, mas sim o Big Bang. Que o universo não é um evento é algo evidente, mas o Big Bang com certeza é um evento. Sendo assim, poderia ele ter tido uma causa? Em tese, sim, uma vez que ele é um evento. No entanto, o ACK fica sem estrutura para provar que o Big Bang teve uma causa. Como, das duas premissas originais do argumento, podemos concluir que o Big Bang teve uma causa? De fato, não podemos. Se tentarmos substituir “universo” por “Big Bang” o fracasso do argumento é ainda mais desastroso. Tem-se, portanto, que modificar as premissas do argumento original.
Alguém poderia sugerir a seguinte reformulação do argumento:
1. Todo efeito tem uma causa.
2. O Big Bang é um efeito.
3. Logo, o Big Bang tem uma causa.
Neste caso o argumento incorre em raciocínio circular. Que todo efeito tem uma causa é algo necessariamente verdadeiro, mas não é necessariamente verdadeiro que o Big Bang é um efeito. Dizer que algo é um efeito é a mesma coisa de dizer que tem causa. Sendo assim, o que a segunda premissa diz é que o Big Bang tem uma causa e a conclusão diz exatamente a mesma coisa. Portanto, raciocínio circular. É evidente que o Big Bang é um evento, mas não é evidente que seja um efeito. Para saber se o Big Bang é ou não um efeito, é preciso verificar sua causa, não apenas alegar que ele tem alguma. Embora pareça um tanto contra-intuitivo, não há nada de ilógico se falar em eventos sem causa. Aquele que se opõe a essa ideia teria que crer que todo evento tem causa,formulando a seguinte versão do ACK:
1. Todo evento tem uma causa.
2. O Big Bang é um evento.
3. Logo, o Big Bang tem uma causa.
Apesar de a primeira premissa desse argumento ser duvidosa, este é, sem dúvida, a melhor das três versões apresentadas aqui. Ela não tem premissas sem sentido como o argumento original e nem comete falácias como na primeira modificação do ACK. Como eu disse, a primeira premissa não é evidentemente falsa, é apenas duvidosa. Não quero falar aqui das evidências contra ela, mas apenas mostrar as consequências da sua verdade. Se a primeira premissa for verdadeira, assim como a segunda que evidentemente é verdadeira, então estaria provado que o Big Bang teve uma causa. No entanto, as consequências disso seriam desastrosas para as crenças teístas: se o Big Bang teve uma causa, esta causa também é um evento, e como é verdade que todo evento tem uma causa, a causa do Big Bang também teria que ter uma causa, assim "ad infinitum". Os teístas poderiam dizer que não, porque Deus é incausado, mas isso seria não ter compreendido o que já falei sobre causas e efeitos. Mesmo que eu admita a existência de Deus, ele não é uma causa no sentido estrito da palavra. Como causas sempre são eventos, Deus teria que ter feito alguma ação pra criar o universo, como falar, pensar ou simplesmente desejar. Mesmo que Deus exista, o que seria a causa do Big Bang seria a vontade de Deus (que é um evento, embora mental) não o próprio Deus. Mas se a primeira premissa for verdadeira, então nunca houve uma causa primeira, o que é contrário à cosmovisão teísta. Além do mais, sem uma causa primeira, desaparece totalmente a necessidade de Deus como explicação para o universo.
Embora uma sequência infinita de causas e efeitos gere problemas para os teístas, este não é o problema mais grave. O mais complicado é explicar como Deus pode realizar um evento. Não pretendo me deter numa análise detalhada sobre o conceito de evento, mas uma coisa importante que sabemos é que todo evento é um acontecimento temporal, é algo que ocorre em determinado tempo (e lugar). Deus, ao contrário, é um ser atemporal, que não está sujeito à estrutura do tempo. Sendo assim, como Deus poderia realizar um evento, sendo que este é um acontecimento temporal, enquanto Deus é atemporal? Deus não poderia querer criar o mundo em um instante e não querer em um instante anterior, pois noções temporais como antes e depois não se aplicam a ele.Mesmo os eventos mentais estão sujeitos à ação do tempo. Uma vez que causas sempre são eventos e uma vez que só existem eventos no tempo, isto é, não existem eventos atemporais, Deus não poderia ter realizado nenhuma ação temporal de modo que esta possa ter sido a causa do Big Bang. Esse é, na verdade, o erro fundamental do ACK: pensar a causalidade fora do tempo é algo sem sentido e totalmente absurdo.