UMA REFLEXÃO SOBRE O PAI MISERICORDIOSO

Para Daniel Walker

O contexto em que essa parábola se insere não poderia ser mais propício. De um lado publicanos e pecadores; do outro lado, fariseus e escribas.

Os publicanos cobravam impostos para os romanos, e por isso eram odiados pelos judeus. Os pecadores eram gente de má vida que não temiam a Deus, e estavam em completo descompromisso com a Torá ou a Lei, e os Profetas. Os fariseus representavam a ”casta religiosa”. A palavra que denomina essas pessoas, é traduzia como aqueles que são separados. Sabe por quê? Consideravam-se santos. Por fim, os escribas, sabedores e entendidos da Lei. O pano de fundo está perfeito para o que Jesus se propõe. Faltava apenas a motivação, que não tardou a surgir, e encontra-se em Lc 15,2: “Os fariseus e os escribas murmuravam: Este homem recebe e come com pessoas de má vida!” Foram estas murmurações e reclamações dos “certinhos” que levaram Jesus a contar esta parábola.

“Um homem tinha dois filhos”. É início, meio e fim. O pai e dois filhos. E a mãe? No transcorrer da história descobriremos que o pai apresenta apenas uma real e verdadeira atitude paterna; todas as subseqüentes são atitudes maternas. É um pai que é mais mãe do que propriamente pai. Jesus não os nominaliza. Donde se conclui que podem ter o nosso nome. Que podemos ser um deles, ou os dois – dependendo da ocasião.

É importante notar que esses filhos possuíam idades diferentes. Pelo texto percebe-se certo grau de diferença de idade entre os dois irmãos. O mais velho, trabalhador, quieto, responsável, atenciosos, honesto, sério, organizado, a tal ponto de o pai entregá-lo todos os seus bens para que os administrasse. Esse era o seu perfil exterior.

Do mais novo, o que poderemos conjeturar? Adolescente, irrequieto, sonhador, aventureiro. Ansioso por conhecer outras terras, ansioso por usufruir da “liberdade” que tantas vezes sonhara. Cheio de ímpeto e coragem dirige-se ao pai e solicita: “Meu pai, dá-me a parte da herança que me toca”.

Aqui cabe uma pequena explicação. Nos compêndios do Direito, “herança é o conjunto dos bens e direitos, ativos e passivos, que uma pessoa deixa ao morrer”. O que se entende então? O filho mais novo já considerava o pai como morto. Para ele o importante era a parte que lhe cabia da herança. Qual a reação do pai?

“O pai então repartiu entre eles os haveres”. O respeito à liberdade do filho estava acima do seu amor, da sua dor e dos bens materiais. Foi a única atitude paterna que ele tomou.

“Poucos dias depois, ajuntando tudo o que lhe pertencia, partiu o filho mais moço para um país muito distante, e lá dissipou a sua fortuna, vivendo dissolutamente”. Em poucos dias o dinheiro acabou, o sonho feneceu, a aventura esmaeceu, a libertinagem consumiu-o, consumindo a sua liberdade. Perdera tudo, inclusive a dignidade humana. O que lhe restou? Cuidar de porcos. E no contexto judaico no qual Jesus vivia isso era perder a dignidade humana. Tornar-se animal, com os animais. Era-lhe negada até a comida dos porcos.

Enquanto assim ocorria, o filho mais velho continuava a sua faina cotidiana, sem descanso, sem lazer, sem festa. Os dias tornavam-se uma sucessão interminável de rotinas. Mesmo dessa maneira, a sua obrigação estava acima de tudo. Não poderia desagradar o pai.

Certo dia, mal cheiroso, barba por fazer, roupas em farrapos, cabelo em desalinho, esquelético, esquálido, tem um lampejo de consciência: “Quantos empregados há na casa de meu pai que têm pão em abundância... e eu, aqui, estou a morrer de fome”. Bendita meditação! Bendita reflexão que faz desabrochar dentro de si a humildade que esmaga o orgulho! É o arrependimento regenerador que inicia o processo de restauração. A decisão não se faz por esperar: “Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados”. Seus pensamentos impregnavam-se mais e mais dessas palavras brotadas do coração, fruto do arrependimento e da reparação. Não poderia esquecê-las! Tinha que sabê-las de cor.

“Levantou-se, pois, e foi ter com seu pai”. A decisão foi a força renovadora e livre que o impulsionou ao abraço do pai, sem medo, sem máscaras, sem tremor. Se houvesse permanecido apenas no arrependimento, estaria ainda hoje à beira da pocilga, emporcalhado e apodrecido.

“Estava ainda longe, quando seu pai o viu e, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, e se lançou ao seu pescoço e o beijou”. Somente uma mãe pode ter a compaixão que tem esse pai. Uma compaixão que corre, enquanto que o pecador caminha. Uma compaixão que vem das ”entranhas”, daí a expressão “entranhada misericórdia”. Se a única atitude paterna está relacionada ao respeito à liberdade do filho, a única atitude materna, de onde decorrem todas as demais atitudes é determinada pela compaixão. Deduz-se então que o pai ao qual Jesus se refere é o próprio Deus; e esse Deus é muito mais feminino do que masculino. Duas passagens bíblicas confirmam essa assertiva.

Mt 23,37 – “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados! Quantas vezes eu quis reunir teus filhos, como a galinha reúne seus pintinhos debaixo de suas asas... e tu não quiseste! “

Os 11,3-4 – “Eu, entretanto, ensinava Efraim a andar, tomava-o nos meus braços, mas não compreenderam que eu cuidava deles. Segurava-os com laços humanos, com laços de amor; fui para eles como o que tira da boca uma rédea, e lhes dei alimento”.

O filho que volta, é acolhido com tudo o que, aos olhos humanos, não tinha direito. A melhor túnica – restauração da filiação; o anel – restabelecendo a aliança de amor que havia sido quebrada; sandálias novas – a liberdade reconquistada; a festa – júbilo e alegria pelo retorno à casa do pai.

“O filho mais velho estava no campo. Ao voltar e aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças. Chamou um servo e perguntou-lhe o que havia. Ele lhe explicou: Voltou teu irmão. E teu pai mandou matar um novilho gordo, porque o reencontrou são e salvo”. As atitudes interiores desse filho contradizem toda a sua exterioridade; toda a sua capacidade e responsabilidade diante de todos. De repente, sentimentos de ódio, raiva, ressentimento, cólera, ira, desabrocham de seu coração empedernido de desamor e recalcitrado de inveja. A explosão doeu na alma e feriu os ouvidos do pai: “Há tantos anos que te sirvo, sem jamais transgredir ordem alguma tua, e nunca me deste um cabrito para festejar com os meus amigos. E agora, que voltou este teu filho, que gastou os teus bens com as meretrizes, logo lhe mandaste matar um novilho gordo!” Toda a revolta manifestada nestas palavras, expressa a indignação pelo pai ter acolhido “este teu filho” (já não era mais nem seu irmão). Repulsa pelo pai ter usado de misericórdia para com o filho dissoluto, o que jamais poderia passar pela sua cabeça. Sabe por quê? Porque a palavra que norteava a sua vida era merecimento, e somente ele era merecedor.

O pai explica, como que se justificando perante ele: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Convinha, porém, fazermos festa, pois este teu irmão estava morto, e reviveu; tinha se perdido, e foi achado”.

O texto não nos dá nenhuma pista. Portanto não sabemos se o filho mais velho abrandou o coração e participou da festa. Através das palavras proferidas para o pai, é quase certo que ele permaneceu do lado de fora, remoendo sua inveja, seu ódio, seu rancor.

Trazendo esse ensinamento de Jesus para a nossa vida pessoal, agimos muito mais ao modo do segundo filho, principalmente quando ousamos questionar a palavra de Deus, quando o certo é nos deixarmos questionar por ela. E esses questionamentos são sempre feitos à luz humana da inteligência e da razão. “Padre, um homem íntegro, justo (isto é: ajustado à vontade de Deus), vai para o céu?” “Claro que vai”. “E um ladrão, assaltante, estuprador, assassino, pedófilo vai pro céu também?” “Se ele se arrepende verdadeiramente de tudo o que praticou, vai para o céu também”. “Aí eu não entendo mais nada”.

E não é para entender. Deus não se deixará jamais entender por nenhuma de suas criaturas. Questionar a aplicação da misericórdia de Deus é agir como o filho mais velho. De uma coisa raramente nos lembramos, e quando lembramos, passamos logo por cima: “O homem vê as aparências, enquanto que Deus vê o coração”. Essa é a grande diferença. Não cabe na nossa cabeça de mortais, mas cabe direitinho dentro do nosso coração.

ALMacêdo

22/06/2009

Antonio Luiz Macêdo
Enviado por Antonio Luiz Macêdo em 22/05/2012
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