Carta 003 - Pecado, misericórdia e perdão
Carta 003
ASSUNTO: Pecado, misericórdia e perdão
Algumas pessoas, que não puderam assistir à aula que
ministrei no ECC dia 29/03/12, preparatória às confissões
da “Semana Santa”, solicitaram uma resenha da mesma.
Para começar, vamos ver algumas definições clássicas de pecado, entre elas a do Catecismo, que convém ao cristão saber:
O pecado é uma falta contra a razão, a verdade, a consciência reta: é uma falta ao amor verdadeiro para com Deus e para com o próximo, por causa de um apego perverso a certos bens. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade huma-na. Foi definido como “uma palavra, um ato ou um desejo contrários à lei eterna” (1849).
Uma colocação de Dietrich Bonnhoefer († 1945) um teólogo protestante a-lemão executado em Auschwitz, com relação ao pecado, dá o que pensar:
O pecado destroça a alma do ser humano.
Cada língua tem sua tradução para a palavra pecado, que vale a pena co-nhecê-las. No latim é peccatum (crime, transgressão); no grego é hamartia (quebra, ruptura); no alemão é sünde (afastamento); no hebraico é hatat (desvio), e no in-glês aparece com sin (doença). Para obtermos um conceito mais amplo de pecado, é salutar que agrupemos todas essas definições: pecado é crime, transgressão, quebra, ruptura, afastamento, desvio, doença.
O apóstolo Pedro usa três figuras de animais a respeito do pecado. A do le-ão, para exprimir a voracidade do diabo, e a do cão e da porca para caracterizar a recidiva dos que não se mantém no caminho da virtude:
Sejam sóbrios e fiquem de prontidão! Pois o diabo, que é o
inimigo de vocês, os ro-deia como um leão que ruge,
procurando a quem devorar 1Pd 5,8).
Aconteceu com eles o que diz o provérbio: “O cão volta ao
seu próprio vômito”; e ainda: “A porca lavada torna a revolver-
se na lama” (2Pd 2,22).
Muitas vezes, a pessoa depois de convertida parece sentir saudades da anti-ga vida de pecado. É a temível “recaída”. O povo hebreu, liberto da escravidão do faraó, a caminho da terra prometida, murmurava contra Moisés, com saudade das cebolas e dos melões do Egito (cf. Nm 11,4-10). Estas murmurações equiva-lem à saudade da opressão, da degradação do cativeiro, da antiga vida de pecado. São Paulo chega a afirmar (cf. Rm 6,23) que “a recompensa do pecado é a morte. Sem dúvida, a morte entrou no mundo a partir do pecado dos nossos pais primiti-vos.
No confronto do jovem Davi com o gigante Golias, podemos enxergar o em-bate do ser humano contra o pecado. Que chances teria um menino contra um gigantesco soldado fortemente armado? Nenhuma! Sobre essa desproporção entre o humano e o diabólico, Santo Agostinho adverte:
Se não fosse a proteção de Deus, colocada entre nossa
fraqueza e a astúcia do demônio, nenhum ser humano
sobreviveria...
Curiosamente, Davi não era soldado. Ele fora ao acampamento levar algum alimento aos seus irmãos que estavam incorporados no exército do rei Saul. Lá todos estavam com medo de Golias, que insultava o exército de Israel. Diante do poder do guerreiro filisteu, Davi não tremeu, mas se dispôs a enfrentá-lo:
Davi replicou: “Você vem contra mim armado de espada, lança e escudo. E eu vou contra você em nome de Javé dos exércitos, o Deus do exército de Israel, que você desafiou. Hoje mesmo Javé entregará você em minhas mãos: vou ferir você e ar-rancarei a sua cabeça” (1Sm 17,45s).
Sozinho ele seria derrotado por Golias, mas com Deus ao seu lado ele obteve a vitória. Assim ocorre com o ser humano, na luta diária contra o pecado.
Há outra história envolvendo Davi (cf. 2Sm 11), já coroado como rei de Isra-el, que sempre conto nas minhas pregações sobre o pecado e nos traz uma séria reflexão sobre o tema:
Um dia Davi estava em seu palácio quando, olhando as casas ao redor viu uma mulher, muito bonita, que despreocupada, tomava banho. O soberano se encheu de cobiça e desejou aquela mulher. Mandou chamá-la ao palácio e constatou tra-tar-se da esposa de Urias, um de seus comandantes, que estava lutando na guer-ra. Isto não o impediu de seduzir a mulher e torná-la sua amante. Com o passar do tempo e a continuidade das relações, a mulher engravidou, o que causou um so-bressalto no rei.
Para tentar resolver a situação, ele mandou buscar o marido da frente de combate, na esperança de que ele dormisse com a esposa e tivesse rela-ções sexuais com ela, assumindo a constrangedora gravidez. Urias veio e não dor-miu com a esposa, pois achava que era injusto ele estar em casa, sob um teto, em contato com uma mulher, enquanto seus soldados passavam agruras na frente de batalha. Ao invés de dormir no quarto, ele dormiu ao relento, na porta da casa. O plano do rei havia falhado. Então ele preparou uma carta e a mandou ao coman-dante Joab, usando o próprio Urias como portador. Na carta dizia o seguinte: “de-samparem Urias para que sucumba e morra”. Não deu outra: Urias morreu em combate. Quando a notícia chegou a Jerusalém, Davi, o rei, tomou a mulher, Bet-seba, por esposa.
Para dar curso à nossa reflexão sobre pecado, cabe perguntar: Qual foi o pecado mais grave de Davi? Vamos rever o itinerário do pecador: a) olhou a mu-lher tomar banho; b) desejou-a em sua concupiscência; c) chamou-a ao palácio, e mesmo constatando que ela era casada, seduziu-a; d) depois da sedução a mulher engravidou e o rei não quis assumir a criança; e) chamou o marido a Jerusalém para dissimular a gravidez; f) praticamente o obrigou a ter relações sexuais com a esposa; g) como ele – movido pela ética – não aceitou a imposição do rei, foi – por ordem de Davi – colocado na linha de frente, e morreu.
Temos aqui sete atitudes de Davi, que vão desde a cobiça, passando pelo adultério, pela mentira, pela dissimulação, desembocando em um assassinato. Qual o pecado mais grave do rei? É claro que cada um vai achar esse ou aquele, e a maioria vai afirmar que o homicídio é o ato mais grave. Não é?
Pois eu vou dizer – e gostaria que analisassem comigo – que o pecado mais grave foi o primeiro; os outros todos foram como que consequências do primeiro. Se não houvesse o primeiro pecado, espiar a vizinha tomando banho – talvez con-siderado como uma falta de pouca gravidade – quem sabe não aconteceriam os seguintes. Assim, como os alcoólicos aconselham que seja evitado o primeiro gole, também se deve evitar o primeiro pecado, quando às vezes se consente em uma falha banal, mas que pode avolumar-se e chegar a um delito monstruoso.
Alguns dias depois veio à corte um profeta, de nome Natã, que se dispôs a fazer uma denúncia ao rei. O homem de Deus começou contando uma história: “Havia um homem que possuía uma grande quantidade de bens, entre eles mui-tas ovelhas. Ele podia dispor delas a hora que quisesse. Ali perto vivia um homem pobre, que só tinha uma ovelha, uma pequena ovelhinha, que ele criava como pessoa da família, dando-lhe de comer na própria mão. Um dia chegou uma visita na casa do rico, e este sem a mínima consideração mandou roubar a ovelha do pobre para servi-la aos seus convidados”. Indignado, Davi falou: “Este homem é um canalha! Quem é ele? Ele deve morrer!”. Sem perder a calma o profeta olhou fixamente para o rei e disse: “Este homem és tu!”. Davi reconheceu a gravidade do seu pecado, fez penitência e pediu perdão a Deus, sendo por ele perdoado. Nessa oportunidade ele compôs o Salmo 51.
Para que se entenda convenientemente o pecado, é preciso que se conheça a graça. Nela é Deus que vem ao nosso encontro, oferecendo-nos sua paternidade, seu amor e sua amizade. Nós correspondemos à graça com a nossa fé. A graça é o remédio que apaga o pecado. A estrutura da graça começa com o que chamamos de virtudes teologais: a fé, a esperança e o amor, que são infusas em nós pelo ba-tismo. A essas virtudes devemos somar os “dons do Espírito Santo” (Sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus). Desse con-junto (7+3) vamos obter as obras do Espírito (que são 10):
Os frutos do Espírito são amor, alegria, paz, paciência,
bondade, benevolência, fé, tolerância, mansidão e domínio
de si (Gl 5, 22s).
De outro lado, o pecado tem sua gênese a partir de três desajustes conheci-dos como o ter, o poder e o prazer, que sintetizam as três tentações que Jesus so-freu no deserto, por obra de Satanás. A esses descaminhos devemos somar os “pecados capitais” (Luxúria, gula, avareza, ira, soberba, vaidade e preguiça). Des-se círculo vicioso (3+7) chegamos às obras dos instintos egoístas, também chama-das de “obras da carne”, que ocorrem em número ilimitado:
As obras dos instintos egoístas são bem conhecidas:
fornicação, impureza, liberti-nagem, idolatria, feitiçaria, ódio,
discórdia, ciúme, ira, rivalidade, divisão, secta-rismo, inveja,
bebedeira, orgias e outras coisas semelhantes. Repito o que
já disse: os que fazem tais coisas não herdarão o Reino de
Deus (Gl 5,19ss).
O pecado das “obras da carne” é agravado pela impureza, que é caracteriza-da pelas concupiscências (dos olhos, da carne e da soberba) conforme nos adverte São Joao (cf. 1Jo 2, 15). Mas Deus, que é rico em misericórdia (cf. Ef 2,4) possibi-litou um mecanismo, em Cristo, para que fôssemos limpos e perdoados de nossos pecados: o sacramento da Penitência.
Na Jornada Mundial da Juventude em Ma-dri (2011) um jovem perguntou ao Papa Bento XVI sobre a necessidade de confes-sar os pecados, se estes eram sempre os mesmos. O Santo Padre carinhosamente perguntou ao jovem: “Mas você não limpa seu quarto sempre, mesmo que a sujei-ta seja sempre a mesma?”. Sobre a confissão, falou Santo Antônio de Pádua: “Quando perdoamos os pecados de uma pessoa, devolvemos o sol a sua vida”.
Com relação ao pecado, é desagradável ver pessoas minimizando seus peca-dos ou suas faltas, afirmando “eu não tenho pecados!” Quem diz tal coisa é menti-roso, diz que Jesus é mentiroso (ele veio pelos nossos pecados), rejeita a redenção (este é um “pecado contra o Espírito Santo”). Sem fé não há reconhecimento de nossa condição de pecadores, e por conta disso não há santidade, salvação e per-dão. O Sangue de Jesus não foi derramado (por nós) em vão. Quem crer e for bati-zado será salvo (cf. Mc 16,16). No livro do Apocalipse lemos que
Eis que venho em breve, e comigo trago o salário para
retribuir a cada um confor-me o seu trabalho. Eu sou o Alfa
e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim. Felizes
aqueles que lavam suas roupas para terem poder sobre a
árvore da Vida, e para entrarem na Cidade pelas portas. Vão
ficar de fora os cães, os feiticei-ros, os imorais, os
assassinos, os idólatras, e todos os que amam ou praticam a
mentira (vv. 12-15).
Para quem julga que pecado é apenas matar, roubar e cometer adultério, é salutar que se distinga gravidade em odiar (quem odeia é assassino, pois matou o irmão em seu coração), difamar (armar complôs) e invejar. Sobre inveja há uma história interessante:
A cobra perseguia o vagalume. Cansado de fugir ele perguntou: “Por que queres de devorar? Eu nem pertenço à sua cadeia alimentar?”. A resposta da serpente é sin-tomática dos invejosos: “Quero matá-lo por causa do seu brilho!”.
A prevenção contra o pecado é a oração, a leitura atenta das Escrituras, a vigilância, a vida comunitária e a prática das boas obras. A todos nós é necessário o testemunho do ser-Igreja. Devemos rejeitar quaisquer atitudes ambíguas e que possam dar margem a distorções. Como disse Julio César “não basta à mulher de César ser honesta, ela precisa parecer honesta”. Assim deve ser com o cristão fiel.
Deus – já falei antes – é sumamente misericordioso, e sempre tem perdão para nós. A ele não interessa as nossas falhas, mas o desejo de conversão de cada um. E isto é cabalmente atestado pelas três parábolas da misericórdia (Lc 15): a ovelha desgarrada, a moeda perdida e o filho pródigo. Nelas Jesus nos relata o júbilo do Pai em restaurar o pecador. Para esse reencontro, São Paulo dá os pas-sos que são necessários:
Por isso, vistam a armadura de Deus para que, no dia mau, vocês possam resistir e permanecer firmes, superando todas as provas. Estejam, portanto, bem firmes: cingidos com o cinturão da verdade, vestidos com a couraça da justiça, os pés cal-çados com o zelo para propagar o evangelho da paz; tenham sempre na mão o es-cudo da fé, e assim poderão apagar as flechas inflamadas do Maligno. Coloquem o capacete da salvação e peguem a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus (Ef 6,10-17).
Assim como o povo hebreu se libertou da opressão do faraó do Egito, tam-bém cabe ao cristão se libertar da opressão do pecado. Sob a esse aspecto há uma historieta curiosa, que vale a pena refletir.
Dois irmãos, um menino e uma menina, foram passar uns dias no sítio da avó. Com um bodoque o menino andava atrás de alvos para jogar suas pedras. Numa dessas, ele acertou uma pedrada num dos patos da vovó, matando-o. Assustado, o garoto escondeu a ave debaixo de uns galhos. A irmã viu a fato, mas não falou na-da. Depois do almoço, a vovó pediu para ela lavar a louça. Ela falou: “O Joãozinho vai lavar a louça para a senhora!”. E disse baixinho ao menino: “Lava a louça, se-não eu conto sobre o pato”. No outro dia, na hora de varrer a cozinha, a mesma chantagem. Lá pelo quarto dia, o menino não agüentou tanta pressão e confessou seu deslize à avó. Ela disse: Eu já sabia... lá de cima, eu vi quando deste a pedrada no pato,... só queria ver até quando ias suportar a opressão da tua irmã”.
Conhecendo as ameaças do pecado, mas, sobretudo sabendo a extensão da misericórdia divina, podemos desfrutar seguramente da oferta gratuita da amiza-de de Deus. Esta palestra desta noite, preparativa para a penitência da “Semana Santa” serve para nos revelar que o perdão de Deus é capaz de nos levar das tre-vas para a luz, do pecado para a vida da graça e, sobretudo, da morte para a vida.
Um abraço, amigos!