BOM CONSELHO, Semana Santa e o nome da praça.
 
Por Carlos Sena

 
Gostava da Semana Santa lá na minha terra Bom Conselho de Papacaça. A cidade inteira parava desde a quarta-feira de trevas. Naquela época se levava a sério a religião. O padre tinha poderes, inclusive, para suspender um “assustado” ou outra qualquer festa profana que a cidade programasse, desde que ameaçasse o ritual religioso. Isto poderá dar a dimensão da igreja em nossa cidade, especialmente durante a Semana Santa. A programação era vasta e envolvia a todos, principalmente na Igreja Matriz. Independente dos rituais católicos que eu cumpria todos por osmose, algumas passagens não me saem da cabeça. Explico: por osmose porque eu não entendia nada daquela simbologia, mas mamãe levava e pronto, a gente tinha que cumprir. Lembro-me da missa ainda em latim: descobri que quando o padre levantasse o cálice antes da comunhão é porque estaria perto do fim. A única coisa boa que eu achava era o som do latim meio UM UM UM ou LORUM LORUM, etc... Século seculorum e assim por diante. Outra passagem era a feira da quarta-feira no “CORREDOR” aonde todos iam logo cedinho e tinha muita pitomba, peixe, bredo, etc. Lembrava mais a festa da pitomba de Jaboatão dos Guararapes. Nesse bojo de recordações, para não me perder no labirinto das lembranças, enumero:
  1. O PEIXE. Nada de carne, só e exclusivamente peixe. Neste sentido ouvíamos histórias de pessoas que teriam comido carne na sexta-feira e de repente sai sangue da carne. Era o castigo de Deus, diziam. Pior é que eu acreditava.
  2. O BELISCÃO. Não podia bater, mas beliscar. Adorava não poder apanhar de meus pais na Semana Santa. Houve ocasião que eu e meus irmãos pintamos e bordamos, mas não levamos pisas, ou surras, porque era sexta feira da paixão. Mas mamãe lembrava: não bato, mas belisco.
  3. A MATRACA. Como o sino ficava mudo, a matraca assumia seu papel. Na procissão do Senhor Morto, a matraca, solenemente invadia as ruas e ladeiras da cidade anunciando que “Jesus morrera”... Eu achava digna aquela matraca!
  4. ALELUIA. Achar a aleluia – Pense numa coisa que me dava medo, pois me diziam que se não achassem a aleluia o mundo se acabaria. Certa noite, com minha avó a conhecida “mãe Jó”, fui pra igreja Matriz no sábado de Aleluia. De um lado uma mulher chorava, do outro lado idem. No bojo das elucubrações, diziam que a aleluia era um pingo de sangue que estava escondido na Bíblia e o padre tinha que ir lendo devagarzinho até encontrar. Fiquei, naturalmente,  morrendo de medo, mas me contive até dar meia noite que era o limite para que se “achasse” a Aleluia. Meia noite: o “pano” caia simbolizando que a aleluia tinha sido encontrada. O padre celebrava a missa e a procissão tomava conta da cidade ao som de Aleluia de Handel – musica das minhas preferidas até hoje.
  5. OS SETE PECADOS. Adorava ver os sete pecados capitais encenados por cores, desfilando na procissão do Senhor Morto. Outro personagem que adorava era Madalena e os 12 apóstolos, inclusive cheguei a ser um deles.
  6. LAVA PÉS. Era sagrado ir pra igreja ver a cerimônia do Lava-pés. O detalhe é que eu gostava mais de ir para o colégio Frei Caetano que também fazia essa encenação.
  7. O JEJUM. Era levado muito a sério. Isto levava pessoas mais pobres a pedirem nas portas: “um jujunzinho pra minha mãe jejunhar”... Geralmente eu respondia (já era bem humorado) “se quem jejunha passa fome pra que você tá pedindo comida”... Contradição à parte, mas eu gostava daqueles meninos batendo em nossa porta. O fim justificava o meio.
  8. BREDO. Ah, que saudades do nosso bredo. Também da umbuzada. Do feijão de coco e tudo mais de coco.
  9. LOURDES CARDOSO. Ela era a cara da nossa semana santa. Durante a noite de adoração só dava ela. Do alto do colégio, da casa da minha avó, escutava Lourdes: “Senhor Deus, misericórdia”! Os fiéis respondiam e ela de novo “Senhor Deus, misericórdia”!
  10. O SENHOR MORTO. Depois da procissão, a imagem de Jesus no caixão ficava exposta na frente do altar mor. Eu ficava do lado observando o beija pés do povo. Em seguida, o principal: um dinheirinho pro santo! Todos davam!
Hoje, Bom Conselho continua caótica, digo, católica. Mas a internet tá lá. O crack tá lá. As motos tão lá. Os carros tão lá. A Universal tá lá. A Renascer tá lá. O “ficar” tá lá faz tempo. A fé tá lá, principalmente nos que temem a Deus independente dos padrecos e pastorecos... Ah, a pedofilia parece que passou por lá, mas não ficou. Foi direta para  Arapiraca. Meno male.
Agora, em plena época de Semana Santa, do alto do meu profaníssimo, permito-me ao som da matraca que por dentro de mim passeia, estralando, batendo, expulsando meus demônios sem garoa. Sem segredo nem degredo dos filhos de Eva, torcendo para que Monsenhor Alfredo seja o enredo da nossa praça, sem ter de Dom Pedro a pirraça, mas a graça de ser nobre e gentil.