UM MILAGRE QUASE ME ATINGIU
FANTASMAS DE UMA NOITE DE TREVAS
Anteontem, quinta feira, uma dessas quintas iguais a todas as quintas. Nada pra fazer de muito importante a não ser a boa expectativa da sexta que chegaria com tudo no dia seguinte e que obviamente foi ontem. Mas por outro lado gera uma aterrorizante expectativa negativa de que a segunda também vai chegar logo.
Até ai, tudo bem. Até que eu estava administrando razoavelmente meu tédio incomum em finais de semana, onde geralmente eu tento me resolver situando-me na tênue linha de fogo do existencialismo brando, consolado pela eterna esperança de que o dia seguinte sempre pode ser melhor.
No aeroporto, nas filas de bancos, nos supermercados e nos comerciais de TV, já sou tratado carinhosa e respeitosamente como pertencente ao grupo da “melhor idade”, e alguns amigos meus, principalmente os mais chegados, me tratam simplesmente de “véio”, que não dá conta disso, não dá conta daquilo e daquilo mais. Nos estacionamentos são mais cruéis e diretos e no chão está uma bengala desenhada com um cidadão curvado e um letreiro indubitavelmente sinistro: VAGA PARA IDOSO.
Na família você começa a se tornar invisível. No começo é mais consolador porque você fica que nem vagalume, apaga e acende, apaga e acende. Depois eu não sei, porque ainda não cheguei lá. Rssss. Mas não sei por que, estava pensando nisso e de repente fui interrompido pelo inesperado, pelo pior, pelo imprevisível. A energia elétrica se foi de repente, como se fosse um aviso, uma advertência pelas minhas más reflexões e maus pensamentos. Otimizei um tempo de restabelecimento e nada aconteceu. Andei pelo corredor e me escorando pelas paredes na escuridão, postei-me frente a um espelho enorme que sei que estava lá, mas nada consegui ver. Conclui que eu não tinha mais luz própria. Imaginei-me no tempo das cavernas e ao retornar pelo mesmo corredor, pude perceber a luz de uma vela que fora acendida por alguém e colocada sobre a mesa da copa distante ainda uns seis ou oito metros de onde eu estava. O medo chegou e eu parecia como num pesadelo, ter me transportado para uma caverna cheia de morcegos.
A chuva batia forte, o lodo nas pedras frias tinha uma gosma e um cheiro de mofo de plantas parasitas e eu sequer possuía um sapeca neguinho que por certo ainda não fora inventado, para socorrer-me do frio. A imagem da lua refletindo um prateado majestoso era a única a enfeitar meu pesadelo, já que pensar em fogueira de São João, também não seria adequado, pois o fogo gerado na fricção das pedras provavelmente sequer teria sido inventado.
Consigo sair da minha perplexidade e olhar pela janela e vejo o poste da rua totalmente quieto, sem uma escada, uma viva alma por lá que pudesse eventualmente substituir um fio de cobre roubado ou um fusível queimado por um desses raios malucos enviados por Deus.
Mas não havia no momento do corte da energia nenhuma chuva, qualquer raio ou trovão que pudessem sinalizar um acidente e pensei: Talvez sejam os anjos bons, nem tão bons assim, desejando exibir ou demonstrar a força do Olho de Tandera para um trabalho lento, uma tortura branda, um terrorismo bíblico que pudesse me fazer render aos encantos da luz divina, como dizem da Santíssima Trindade. Permaneci gelado, tremendo de medo na escuridão, ninguém em casa, resistindo aos encantos do crer ou não crer, da fé cega que diz que tudo se resolve quando se confia em Deus.
Comecei a ficar abatido, lembrei-me do meu computador mudo, desligado, não falava comigo, todas as minhas fotos, correspondências, todos os meus textos, pensamentos, correspondências, meus poemas, sem falar na parte comercial, relação de clientes, instruções de vendas dadas e recebidas, toda minha vida resumida, guardada dentro daquele pedaço de metal misturado com plástico e fios, um troço esquisito cheio de luzinhas que apagam e acendem, com um fio de telefone enfiado no trazeiro, como se estivesse simulando uma copula eletrônica.
E eu ali parado, tentando advinhar quem teria sido a pessoa que acendeu a vela. Não havia mais ninguém em casa além de mim. Eu pensei, estou ficando mesmo velho e não me lembro, talvez tenha sido eu mesmo, mas sou muito lógico e jamais vou ficar pensando outro tipo de coisa.
Fiquei portanto, inerte, paralisado em frente aquele computador, todo meu, mas ao mesmo tempo, dono de mim e numa fração de segundo fiquei me imaginando sendo sugado pra dentro daquela coisa horrorosa, um cruzamento exdrúxulo de radiola, com máquina de escrever, máquina de calcular, telefone e TV e o maluco que o inventou o chamou de computador. Fazer o que? Mas, na minha fértil imaginação e ainda com medo da assombração que acedera a vela, eu me senti salvo sendo chupado lá pra dentro, pelo menos lá haviam algumas luzes piscando como se fossem as estrelas de uma enorme galáxia que também povoava meu sonho.
Acendi mais uma vela e pensei na possibilidade de ter que dormir sem banho e depois ainda levantar-me para abrir o portão manualmente quando minha família chegasse. O sorvete começou a se perder na geladeira e o meu chá de mate couro que tomo quentinho todas as noites já não poderia mais ser feito, pois o maldito micro ondas estava desligado. De repente, minha mulher se aproxima, foi ai que eu descobri quem havia acendido a primeira vela, me dá um susto e diz: “Deus bem que poderia ajudar pra essa energia chegar logo e eu poder ver minha novela” – Tiro e queda, foi falar o nome dele e “plim, plim” a TV já estava ligada. Foi ai que eu pensei que a Globo é abençoada até na hora de medir o Ibope. Rssss.
Mas foi ai, que eu fiz uma retrospectiva de todo meu sofrimento naquelas quase duas horas de trevas e tive uma recaída: Quase me prostrei de joelhos e me converti. Fui pro chuveiro, tomei meu banho, liguei o computador e ainda houve um trovão daquele retardatário, tipo fim de festa, bem estrondoso, bem ensurdecedor e autoritário, parecendo mesmo uma bronca divina. Fiquei meio cismado, meio com medo: E afinal, se a energia fosse embora de novo, seria talvez uma segunda bronca do todo poderoso?
Que nada, terminei tudo, sacudi minha auto-estima, tirei da minha memória todas aquelas pregações terroristas dos apóstolos, olhei pra cima e disse:
- Oh... vamos fazer um acordo justo: Saio bem cedinho amanhã, faço um cartãozinho simples de dois pilas e você me dá o premio integral. Se for mais de 50 milhões, prometo investir parte dos rendimentos mensais (eu disse parte) na construção de uma escada rolante nas escadarias daquele subterrâneo da basílica de N.Sra. Aparecida.
Na escadaria da Igreja da Penha eu vou patrocinar um corrimão, pois escada rolante por lá vai ficar muito caro.
E prometo mais: Toda vez que eu estiver me despedindo de alguém e ele disser: “Deus te acompanhe”, prometo não mais colocar você no banco de trás e exigir que ponha o cinto de segurança. Rsss.
Afinal, invisível como você é, por mais que eu vá afirmar que você “está comigo”, ninguém vai acreditar e tudo vai continuar na mesma..E assim, mesmo considerando o grande susto, permaneço ateu, ainda não foi dessa vez que me converti.