TEÓLOGOS QUE TRANSFORMAM
Introdução
O tema, referente ao título deste texto, no meu entender, pode ser abordado de diversas formas. Uma possibilidade seria, por exemplo, tomar o livro de Batista Mondin, Os grandes teólogos do século XX, e selecionar aqueles cujas obras são as mais mencionadas e debatidas. Mas isto, ao que parece, não significaria necessariamente que são estes os que mais contribuem para uma orientação teológica dos fiéis e uma transformação cultural, social e individual. Com certeza seríamos injustos, ante o grande número de teólogos da Igreja de Cristo nestes dois mil anos de sua existência. É verdade, existem diversas listas de teólogos na Internet, geralmente organizadas a partir daqueles teólogos que mais publicaram, que foram considerados mais sábios, virtuosos, polêmicos, ou cujas ideias deram origem a alguma nova forma de organização da vida cristã. Geralmente estas listas são pouco objetivas, pois geralmente foram organizadas com interesses confessionais ou ideológicos. Por isto mesmo, os organizadores destas listas destacam a importância daqueles com os quais simpatizam, e descartam os que divergem de seus pontos de vista. Mas há também algumas listas que são um pouco mais objetivas, procurando destacar, de fato, aqueles sábios cristãos que mais contribuíram para uma melhor compreensão de todo o conteúdo da teologia e da práxis cristã. Se aqui eu falo em teologia e vida cristã, isto não significa que a teologia seja uma atividade separada da vida. A teologia não é um estudo abstrato separado da prática. A teologia acontece a partir da Igreja, isto é, a partir da vida nas comunidades cristãs. Por isto, a teologia em suas reflexões, em sua linguagem, é situada, histórica e culturalmente. E, como a teologia é um conhecimento, e a humanidade age e se organiza a partir de seus conhecimentos, as comunidades cristãs se organizam, agem e transformam a partir daquilo que os teólogos lhes propõem. Dali a importância da qualidade dos teólogos e da teologia que se articula nas comunidades. Dali também o motivo dos diversos enfoques teológicos na história e nos diversos âmbitos culturais. Basta olharmos para a nossa época histórica para repararmos na diversidade cultural e ideológica de nosso tempo, para entendermos a pluralidade teológica em nossa época. Isto não significa que todos os que hoje se apresentam como teólogos cristãos, propondo uma nova compreensão de vida cristã, devam ser considerados ortodoxamente teólogos cristãos. Isto faz com que nem todos os teólogos concordem entre si, e muitas vezes encontremos uns condenando aos outros. Pode-se até dizer que nosso tempo se caracteriza por “teologias fracas” e “teologias fortes”. As fracas seriam aquelas que simplesmente repetem o passado, e procuram conservar o sistema de vida cristã tradicional; as teologias fortes, por sua vez, procurariam avançar, tornar o cristianismo compatível com a nossa realidade histórica e cultural. Para conseguir isto, os teólogos “fortes” exigem rupturas com tradições, modos de pensar e agir do passado. Os teólogos “fracos” temem que as considerações dos teólogos “fortes” causem transformações na forma de pensar, viver e organizar a vida cristã, o que, não em poucos casos, deturparia a mensagem cristã. Vejamos alguns encaminhamentos teológicos de nosso tempo.
Teologias e teólogos em nosso tempo
Depois de uma certa paralisação teológica no século XIX, as reflexões e debates teológicos criaram novo fôlego no século XX. Situação que perdura até hoje.
No século passado o Ocidente mergulhou em diversas situações dramáticas, e a nova compreensão científica da natureza repercutiu profundamente na cosmovisão e nas culturas da humanidade. As duas guerras mundiais, os progressos científicos, a nova autocompreensão dos homens nas diversas culturas, e os novos meios de comunicação não podiam deixar indiferentes os teólogos. O mundo esperava ansiosamente explicações e orientações espirituais viáveis e com sentido nesta nova realidade histórica. Surgem então teólogos que se sentem inspirados para dialogar com o homem neste mundo novo. E se perguntavam o que a sua fé cristã tinha a dizer para o homem de nosso tempo. Dali a pluralidade das reflexões teológicas no século XX, e que perdurarão, com certeza, no decorrer de todo o século XXI. De que teologias se fala hoje?
De um lado, perduram as teologias confessionais, com seus correspondentes teólogos; de outro, cresce o número de teólogos transconfessionais, que procuram fazer uma teologia simplesmente cristã, sem adjetivações confessionais. Assim poderíamos caracterizar os teólogos mais significativos do nosso tempo, como teólogos “fracos”, tradicionais, conservadores que procuram se orientar pela teologia dos fundadores de suas confissões, procurando preservar a sua identidade confessional. Mas, em grande parte das instituições surgem, cada vez mais teólogos “fortes”, que se propõem ir além das fronteiras confessionais e fazer uma teologia sem os compromissos ideológicos e históricos com um passado, que levaram os cristãos a se separarem como inimigos. Estes querem a Palavra de Deus, o Logos Divino, encarnado na humanidade para todos os tempos, com sua mensagem significativa para todos os homens, e em todas as épocas históricas. A encarnação de Cristo, assim, é compreendida como uma boa nova a ser inculturada na diversidade das línguas, e dos modos de vida da humanidade toda. Neste sentido encontra-se em Mateus (cf. 28,19-20) o mandato missionário: “ Ide, a todas as nações, ensinando a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado”. Jesus não manda destruir a cultura de nenhum povo. Mas ele quer que se acrescente algo novo a esta cultura, que se enriqueça a vida destes povos, para que eles vivam de acordo com os ensinamentos de Jesus. E estes ensinamentos falam de justiça, de paz, de fraternidade, de esperança, de fé...”. Dali a necessidade de os teólogos orientarem suas compreensões para os valores cristãos, e o sentido destes valores nas diversas culturas e épocas históricas. E muitos teólogos, dos últimos tempos, demonstram uma intensa sensibilidade por todos os valores que fluem da mensagem cristã. Dali a elaboração de teologias que nascem da vida real das comunidades eclesiais situadas nos diversos continentes, acentuando ali os valores cristãos que necessitam maior incentivo para que as pessoas possam viver de acordo com eles. Assim muitas elaborações teológicas de hoje deixaram de ser tão abstratas e se tornaram existenciais, com o poder de transformar formas de vida que não se adéquam à mensagem dos evangelhos. Por isto, as teologias de hoje não deixam as pessoas indiferentes. E os acomodados se intranquilizam. A mensagem de Jesus não deixa ninguém se acomodar. Ela necessariamente deve transformar mentes, corações e culturas. Vejamos alguns exemplos.
Os Teólogos na Europa
A Teologia, no sec. XX teve, por assim dizer, um reavivamento. E neste contexto conhecemos importantes teólogos. Só para mencionar alguns, cujas obras todo teólogo de hoje deveria conhecer:
- Rudolf Otto (1869-1937), que se celebrizou com seus estudos sobre o sagrado e o profano.
- Karl Barth (1886-1968), com sua “teologia dialética”, se contrapondo, sob muitos aspectos, ao liberalismo teológico, e afirmando a Teologia Bíblica como o referencial fundamental para a Teologia e a legitimação para a própria existência da Igreja cristã. Para Barth, a Igreja deve ser fiel à sua missão. Dizia que, “se a Igreja for Igreja o mundo notará que a Igreja existe”. Para ele a Teologia nada significa se o teólogo não souber responder às questões vivas da comunidade onde prega. Nós não vivemos no tempo de Cristo, por isto, antes de qualquer pregação, o pregador deve responder a si mesmo as perguntas: “O que devo pregar neste domingo? O que tenho a dizer às pessoas que têm sede da Palavra de Deus?” O homem é visto como um “Ouvinte da Palavra”. Além desta proposta dialética da teologia, Barth também é conhecido por sua “Teologia Negativa” e por sua “Teologia Pietistta”. No mundo teológico, Karl Barth é considerado um dos teólogos mais influentes do séc. XX.
- Paul Tillich (1885-1965), com sua Teologia Apologética, que, em última análise, é uma Teologia da Cultura. Para ele a Teologia precisa entrar em diálogo com a situação presente, para identificar o sentido religioso que se expressa em todas as formas culturais. Para Tillich o sentido último e incondicionado, oculto nas culturas, se identifica com o próprio Deus. Para ele a Teologia Apologética é uma “teologia de resposta” às perguntas implicadas na situação, isto é, perguntas que se encontram na existência humana, e são expressas através da cultura. Aí o ser humano revela-se como um ser questionador, interrogativo, sempre em busca de sentido para a sua existência. A Teologia, por isto, deve estar em diálogo constante com a situação presente, isto é, com as ciências, as artes, a economia, a política e as éticas, onde os seres humanos expressam a sua interpretação criativa da existência. Para Tillich somente a teologia tem condições de superar as contradições na cultura do espírito, produzindo uma síntese cultural, com novo conteúdo e sentido espiritual.
- Rudolf Bultmann (1884-1976), com sua proposta de uma “Teologia existencialista” e desmitificadora dos dogmas e da Bíblia, se tornou, talvez, o teólogo mais controvertido do século XX. Até hoje, principalmente os fundamentalistas, tentam denegri-lo. Bultmann Considera que a visão de mundo, nos tempos bíblicos, também do Novo Testamento, era mítica. Os escritores sacros não tinham a intenção de documentar fatos. Em sua linguagem não podiam deixar de se orientar pela imagem mítica do mundo de seu tempo. Imagem que não era a do homem do séc. XX. E a intenção de Bultmann, como Pastor luterano, era transmitir o centro da mensagem cristã de uma forma que fosse compreensível para o homem de sua época. Por isto Bultmann considera necessário desmitificar a representação do mundo do Novo Testamento, e distinguir entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Para Bultmann, sabemos muito pouco sobre o Jesus histórico, por isto somente com a proclamação da mensagem de Jesus o homem é desafiado a dizer sim, ou não à pessoa de Jesus Cristo. Somente assim sua Palavra se torna um acontecimento salvífico para nós, recebendo-a com fé. Bultmann chegou à conclusão de que a vida humana é desprovida de sentido. Tal sentido só se manifestaria no contato direto com Deus, que seria obtido somente pela fé em Jesus Cristo. A fé não se deveria apoiar em qualquer outro meio que não fosse Cristo. Por isto, segundo sua teologia, a fé verdadeira não se apoia em uma imagem de Deus, mas ela é a disposição do homem de estar disponível para Deus se encontrar conosco nas situações mais variadas da vida.
Diante de seu esforço teológico de tornar a mensagem cristã significativa para o homem de seu tempo, muitas vezes Bultmann é criticado e rejeitado injustamente. Com certeza ele merece ainda ser analisado e avaliado pelos teólogos de hoje.
- Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). Bonhoeffer é tipicamente um teólogo engajado, que vive numa época conturbada. E, como todos sabem, ele foi executado em 1945 por sua cumplicidade em um plano para matar Hitler. Ele dialogou com diversas igrejas cristãs. Por isto ele é visto como um precursor de diálogos ecumênicos. Bonhoeffer quer voltar para um cristianismo genuíno, livre de individualismos e supernaturalismos metafísicos. Dizia, Deus deve ser conhecido neste mundo como ele opera e interage com os homens na vida diária. O Deus abstrato da especulação filosófica e teológica é inútil ao homem comum na rua, e são estes os homens que mais precisam ouvir o Evangelho.
Claro, é necessário situar cada teólogo em seu tempo. Mas a leitura das obras de Bonhoeffer ainda hoje é útil a qualquer cristão, também aos teólogos.
- Jürgen Moltmann (1926 - ) é conhecido por sua “Teologia da Esperança”.
- Outro teólogo que se destacou no século XX é Oscar Cullmann (1902-1999). Cullmann, de certa forma, se contrapôs à proposta de Bultmann, que separou o Jesus histórico do Cristo da fé. Como exegeta da Sagrada Escritura, Cullmann sempre procurou harmonizar a busca filológica com a historiográfica na reflexão teológica. Foi ele também que vulgarizou a expressão de que o Reino de Deus já é uma realidade presente, mas ainda não plenamente manifesta, o “já agora, mas ainda não”.
- Outro teólogo luterano alemão de destaque é Wolfhart Pannenberg (1928 - ). Para Pannenberg há uma união estreita entre teologia e filosofia. O Cristo crucificado e ressuscitado é o acontecimento histórico central, que permite assegurar o sentido da história universal do homem e do mundo. Para ele a revelação de Deus é história, e a perda deste horizonte é a fonte de muitas crises contemporâneas. Pannenberg é um teólogo, de certa forma, rigorista moralmente, se contrapondo à permissividade nas sociedades secularizadas, e de membros de algumas das igrejas evangélicas alemãs, especialmente na questão da sexualidade.
Mas, para não ficar apenas com os teólogos europeus evangélicos protestantes, que no séc. XX polarizaram a teologia cristã, alguns ainda hoje vivos, vou apresentar alguns teólogos católicos que se destacaram na Igreja cristã. O mais importante, sem dúvida, foi o jesuíta Karl Rahner (1904-1984). Ele foi um dos peritos do Concílio Vaticano II, e concordava plenamente com João XXIII, que queria que "novos ventos soprassem na Igreja, para limpar a poeira acumulada através dos séculos". Rahner considerava o ser humano essencialmente como um “Ouvinte da Palavra”. Assim, para ele, o cristão deveria ser um exemplar ouvinte do “Verbum Dei”, isto é, do Logos (Palavra) de Deus encarnado, Jesus Cristo. Do Deus que entrou na história da humanidade, assumindo plenamente a natureza humana, dignificando-a em todas as suas dimensões. Como consequência desta compreensão, todas as potencialidades verdadeiramente humanas devem ser valorizadas e dignificadas. E como o teólogo cristão pode fazer isto? Dialogando com todos os seres humanos em suas manifestações existenciais, dialogando com a história, as culturas, as ciências, as religiões e as diversas ideologias. Rahner aprendeu muito com as ideias de Teilhard de Chardin, que queria uma “Teologia da Criação”, em sentido pleno e cósmico. Dali a ideia do Cristo Cósmico, da atuação de Deus em todas as criaturas, e da presença do Espírito Santo junto a todos os homens de boa vontade. Dali encontrarmos em Rahner a ideia dos “cristãos anônimos”. Rahner, provavelmente, foi o teólogo mais importante na Igreja Católica no séc. XX. Dialogou com todas as propostas teológicas de seu tempo, e estava a par de toda a tradição filosófica do Ocidente. Sem formalizar qualquer coisa neste sentido, mas pode-se dizer que Rahner ainda hoje tem como que uma escola de seguidores de seu modo de fazer teologia, e não somente entre os teólogos católicos.
Outros teólogos, na Igreja Católica, que de certa forma se emparelham com Rahner, são os franceses Yves Congar (1904-1995), e Henri de Lubac (1896-1991). Grande repercussão na teologia da Igreja Católica também tiveram no séc. XX os incentivos que recebeu a Teologia Bíblica, principalmente através do Instituto Bíblico de Roma e da Escola Bíblica de Jerusalém. E neste campo da Teologia Bíblica se poderia enumerar um grande elenco de teólogos significativos. E, de certa forma, somos injustos para com eles não os considerando aqui.
Mas, antes de finalizar a referência a Teólogos, que fizeram e fazem teologia na Europa, não poderia deixar de mencionar Hans Küng (1928- ) e Johann Baptist Metz (1928- ). Dois apaixonados teólogos, ainda hoje ativos, buscando a “verdadeira” Igreja de Cristo . Hans Küng, liderando propostas de uma ética cristã para o mundo, lidera diálogos interconfessionais, e interreligiosos, convicto que a paz mundial depende da paz entre as religiões. Além disto, Küng tem sérias restrições em relação a certas práticas institucionais na Igreja Católica, como, por exemplo, a falta de participação da mulher na Igreja, e a forma do exercício do poder eclesiástico. O que fundamentalmente ele busca é definir como verdadeiramente podemos “Ser Cristão”.
O teólogo Johann Baptist Metz é amplamente conhecido com a sua proposta de uma Teologia Política. Para ele toda a atitude religiosa tem consequências políticas. Isto é, repercute na sociedade. Neste sentido, a teologia repercute na sociedade. A teologia não é inofensiva. Ela exige atitudes das pessoas. Ela transforma o homem. Por isto mesmo, o cristianismo, com sua teologia, transformou a civilização pagã Greco-romana. E o cristianismo continua tendo o poder de orientar e transformar os encaminhamentos políticos do homem de hoje. Para isto a memória histórica nos deve auxiliar. Acontece, porém, que, muitas vezes, não se tem a coragem de examinar esta memória, pois ela, certamente, traria lembranças perigosas dos pecados da humanidade. Neste sentido, é fundamental recordar a crucificação de Cristo, fruto de abusos de poder, de intolerância religiosa, de ideologias opressoras, de injustiças. A Teologia Política de Metz, de alguma forma, estimulou a Teologia da Libertação latinoamericana.
Para além da Teologia europeia.
Até aqui me ative, praticamente, aos teólogos europeus. Mas é preciso dar um salto para outros continentes. Hoje já não se pode esquecer que há teólogos nas Américas do Norte e do Sul, na África e na Ásia. Estas teologias, novamente, se poderia classificar em “fracas” e “fortes”. “Fracas” se poderia nomear aquelas teologias que, nestes continentes, simplesmente repetem as teologias produzidas na Europa; e “fortes”, aquelas que partem, nas suas análises, da vida concreta das comunidades locais. Com certeza, há teologias que, aos poucos, se destacam em suas características de fazer teologia. Por exemplo, as teologias europeias são mais especulativas, questionadoras, críticas. Isto, de certa forma, tende a produzir perguntas, intranquilidade, angústias e dúvidas na consciência dos fieis. Diferentemente a isto, as teologias, especificamente, provindas da América do Norte procuram dar respostas. É uma teologia mais pragmática, sem grandes questionamentos, nem bases filosóficas. É uma teologia que busca resultados. Nesta Teologia existe o perigo de “Deus” apenas ter o tamanho da cabeça do teólogo; a toda hora Deus pode ser chamado a resolver os problemas dos homens, fazendo milagres; na política ele legitima guerras; ele é o Deus das vitórias, da prosperidade, e assim por diante. Isto, evidentemente, nos leva a desejar um Deus nem tanto abstrato, a que nos pode levar a teologia europeia, nem um Deus que está a nosso dispor, intervindo naquilo que está nas mãos do homem resolver.
Mas, nos limites deste texto, não podemos entrar no mérito de todos os teólogos de nossos continentes. Contudo, a nossa reflexão estaria demasiadamente incompleta se não nos detivéssemos em alguns aspectos das Teologias presentes na América Latina, em parte produzidas aqui, e cujo método tem repercussão na Teologia Africana e Asiática.
A Teologia da Libertação e as teologias na América Latina.
Se quisermos enraizar os precedentes da teologia da libertação fora do continente latinoamericano, poderíamos indicar quatro frentes de pensamento: 1. Os ensinamentos sociais dos profetas bíblicos, dos evangelhos e de diversas filosofias. Na tentativa de incorporar pragmaticamente estes ensinamentos na teologia pastoral, esteve no Brasil, em 1952, o missionário presbiteriano norteamericano Richard Shaull, que já havia atuado no Caribe. Aqui estabeleceu uma estreita relação com o teólogo Rubem Alves. 2. Em 1964, o teólogo reformado Jürgen Moltmann publica sua obra Teologia da Esperança. 3. Em 1965, o teólogo batista Harvey Cox publica o livro A Cidade Secular. 4. Em 1967, o teólogo católico Johann Baptist Metz fala numa conferência sobre A Teologia do Mundo e, posteriormente, elabora sua Teologia Política.
Os próprios teólogos da libertação não veem a origem da Teologia da Libertação com estes precedentes, e consideram que a Teologia da Libertação nasceu exclusivamente pela consciência cristã de teólogos latinoamericanos, que não mais aceitavam a situação de pobreza, de injustiças, opressões e miséria das populações latinoamericanas, grande parte dominadas por ditaduras militares, insensíveis ao sofrimento da miséria, e repressoras em relação às reivindicações de justiça dos oprimidos. Assim a Teologia da Libertação teria sua origem na reação moral à pobreza causada pela injustiça social no continente latinoamericano. Esta consciência se acentuou principalmente com as reuniões do Concílio Vaticano II, e o esforço de adaptar estes ensinamentos a uma pastoral junto às populações cristãs (católicas) na América Latina, na reunião dos bispos em Medellin, Colômbia, em1968. A denominação de Teologia da Libertação, como um modo de fazer teologia, foi assumido oficialmente com a publicação do livro A Teologia da Libertação do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, em 1971. Depois disto entraram em cena os outros teólogos, considerados os principais divulgadores desta Teologia. Vou citar apenas alguns, com os quais de alguma forma tive um contato direto, ou examinei mais detalhadamente seus escritos. Com certeza, a lista dos que se sensibilizaram teologicamente com o sofrimento dos excluídos é muito maior do que eu aqui relaciono, não quero ser injusto com ninguém, mas me contento com os seguintes: Hugo Assmann, Leonardo Boff, Juan Luis Segundo, Marcelo Barros, José Comblin, João Batista Libânio, Helder Camara, Pedro Casaldáliga, Ivone Gebara, Rubem Alves, Carlos Mesters, Enrique Dussel, Jon Sobrino, Camilo Torres. Estes teólogos, mesmo se agrupando sob o título da Teologia da Libertação, são identificados por seus enfoques teológicos diversos. Hugo Assmann, durante muitos anos, teve um intenso envolvimento político, engajando-se positivamente na derrubada de Somoza na Nicarágua, ao lado de Ernesto Cardenal e dos sandinistas; José Comblin se preocupou com uma Teologia da Revolução, e esteve muito tempo empenhado na renovação teológica em diversos países da América Latina, criando no Estado da Paraiba/Brasil um centro de formação teológica de agentes de pastoral com um método teológico, que ele denominou de Teologia da Enxada; Marcelo Barros se dedica especialmente ao diálogo interreligioso, e a uma teologia que vê em organizações sociais, comunidades de base e na fraternidade entre os povos a superação do capitalismo selvagem, injusto e opressor que domina na maioria dos países latinoamericanos; Ivone Gebara é especialmente conhecida por sua Teologia de Gênero (Teologia Feminista); Leonardo Boff, hoje, está mais voltado para uma Ecoteologia, que poderíamos também denominar de Teologia da Criação, ou Teologia das Realidades Terrestres. Camilo Torres, neste contexto das denúncias das injustiças, em nome da mensagem cristã, assumiu uma atitude rebelde contra as conivências históricas da Igreja com as estruturas de injustiças, e entrou ativamente na luta armada de combate contra esta situação na Colômbia, em nome de sua indignação cristã. O que não é uma proposta comum dos teólogos da libertação.
A Teologia da Libertação, que nasceu na América Latina, como um novo método teológico, hoje está presente em muitas outras regiões marginalizadas do Terceiro Mundo. Em todos estes lugares defende uma maior inculturação do cristianismo. Hoje já não se pode deixar de falar na Teologia da libertação africana; na Teologia da libertação sulafricana; na Teologia da libertação árabe; na Teologia da libertação negra nos Estados Unidos; na Teologia da libertação na Ásia.
Como se vê, embora as igrejas institucionalizadas, por diversas vezes, terem se distanciado da Teologia da Libertação, os Teólogos que tomam em consideração a preocupação deste movimento de libertação cristã dos homens continuam ativos em suas pastorais. Estão convencidos de que a Teologia possui uma dimensão profética em nosso tempo de acordo com as características dos profetas bíblicos, que é anunciar e denunciar. Para cumprir este profetismo, o Teólogo tem à sua disposição a Palavra. A Palavra de Deus encarnada em Jesus Cristo. Em contato com o poder da Palavra de Deus, que é o instrumento principal de ação do Teólogo, as instituições e os indivíduos humanos se transformam.
Claro, na América Latina não temos apenas os teólogos da libertação. É também forte a Teologia Pentecostal, o neopentecostalismo, a teologia carismática, a “Teologia da Prosperidade” e a atividade pastoral tradicional. Com certeza, é difícil dizer: esta é a teologia certa, e a outra está errada ou é herética. Mas podemos avaliar certos aspectos destas teologias, e descobrir quais as mais e quais as menos adequadas. Pois, a fonte de inspiração de toda teologia cristã deve ser a Palavra de Deus. Mas, é importante conscientizar-se que esta Palavra nos é mediada pela palavra e pelo testemunho de homens. E tudo o que é humano deve ser interpretado e adequado à compreensão daqueles que hoje entram em contato com esta Palavra Divina. Como o teólogo se propõe a trabalhar com a Palavra de Deus, ele tem a responsabilidade de não trair o conteúdo e o sentido desta Palavra, para que o homem de hoje a receba com o poder que ela tem. E isto nem sempre é fácil no mundo em que vivemos. Um mundo com outra cosmovisão, do que muitas das cosmovisões do passado. Diante disto, é necessário identificar a função do teólogo hoje, e o que fazer para que o teólogo possa cumprir a sua missão entre os homens de nosso tempo, fazendo com que este homem oriente sua vida de acordo com o sentido que ela deveria ter na visão de Deus?
Função e Vocação do Teólogo.
A Teologia significa a realização da vocação pensante da fé e começa no ser humano que se arrisca a dizer algo do que lhe é gratuitamente comunicado por Deus. Esta comunicação de Deus é possível porque o ser humano é um ser aberto ao divino. Ele, por natureza, é “Ouvinte da Palavra”. Esta fé pensada precisa ser comunicada e vivida nas condições próprias do ser humano, histórica e culturalmente situado. Um ser pensante e racional, que hoje vive num mundo científico e plural. Então, qual é o lugar do teólogo em um tal mundo, em que o homem, muitas vezes , não sabe mais o sentido último de sua existência? Com certeza, o teólogo não seria teólogo se não falasse da Palavra de Deus, mostrando aos homens o caminho de sua saúde espiritual. Mas, para que sua teologia seja cristãmente legitimada, que cuidados o teólogo de hoje deve ter? Vejamos:
1. deve proteger as narrativas teológicas de distorções;
2. deve saber que toda nova decodificação dos dogmas possui riscos;
3. deve usar métodos de pesquisa que mostrem a relevância “política” da teologia.
Ser fiel às narrativas históricas e bíblicas, implica em diferentes facetas. Para falar honestamente do Jesus Histórico, é necessário entender o contexto em que os textos bíblicos foram escritos. Isto tem como consequência um entendimento sobre o Jesus Histórico e o Cristo da Fé, de quem falam os relatos da Igreja Primitiva. Outra faceta que o teólogo não pode esquecer é a preservação viva da memória dos ensinamentos daqueles que viveram a sua fé antes de nós. A narração memorial às vezes nos adverte de perigos que podem reorientar a nossa fé. O teólogo deve ser capaz de interpretar estas memórias como advertência para o mundo de hoje. Recordando, por exemplo, os sofrimentos de muitos cristãos do passado pode prevenir as gerações de hoje para evitar uma religião burguesa. Se a sociedade não estiver consciente de seus erros do passado, quem poderá preveni-la de novamente cair nos mesmos erros? É função da teologia na sociedade sugerir constantes transformações na busca de uma vida com mais sentido. Mas há uma tendência humana muito comum em fazer com que a religião se transforme em justificação do status quo dos valores da sociedade, sem , no entanto, empenhar-se em transformar o povo, para que viva de acordo com verdadeiros valores. O teólogo deve ser guardião dos valores de dignidade humana, sem se tornar complacente com tudo. Isto inclui valores sociais, econômicos, culturais, científicos ativos na vida política dos cidadãos. Para poder agir em relação a estes valores, o teólogo deve estar informado sobre eles.
Uma outra preocupação do teólogo deve ser a decodificação do dogma. Por dogma entendo a verdade comum aos membros de uma mesma comunidade de fé. Na decodificação do dogma o teólogo deve contribuir para que este dogma tenha um significado para a experiência e a situação na vida do ser humano. O teólogo também deve saber qual foi a importância deste dogma no passado, além de fazer crescer a esperança no futuro.
Outra função importante do teólogo é incentivar aos outros a viverem a sua fé autenticamente. Pois, se alguém tem fé em alguma coisa, ele deve viver sua vida consistentemente de acordo com esta fé, não se acomodando ou se tornando apático em relação ao mundo em que ele vive. O teólogo deve ser sensível aos problemas dos homens ao seu redor. Solidarizar-se com o sofrimento dos outros, com as preocupações dos contemporâneos e saber dar aos homens de seu tempo “as razões de sua esperança” (cf. 1 Pe3,15).
Conclusão.
O que concluir?
O teólogo tem a seu dispor como instrumento de transformação, a Palavra. E a palavra tem poder. Deus criou o mundo com sua palavra. E a Palavra de Deus , Jesus Cristo, se fez homem. E Jesus deixou a sua Palavra para dar saúde espiritual aos homens, encarregando a homens para que transformassem esta sua palavra, até o fim dos tempos e em todos os povos, em um acontecimento de sentido para a vida dos homens.
Desde o início da pregação cristã, esta palavra transformou as civilizações e a vida das pessoas. Justamente os teólogos têm a função de contribuir com a obra de Jesus Cristo, para que sua Palavra continue transformando os homens e suas civilizações.
Para finalizar, gostaria de citar o que o físico e matemático Carl Friedrich von Weizsäcker deixou dito aos teólogos. Citando: “Gostaria de dizer aos teólogos o que eles já sabem, e os não teólogos deveriam saber. Os teólogos preservam a única verdade, muito mais profunda do que a verdade das ciências, que fundamenta a ciência atômica. Eles preservam um saber sobre a essência do homem, que é mais profundo do que a racionalidade moderna. O homem sempre perguntará por esta verdade, quando seus planejamentos falharem. A situação burguesa da Igreja de hoje não mostra que os homens, de fato, ainda perguntam por esta verdade. Mas esta verdade continua convencendo quando ela é vivida”.
Inácio Strieder é filósofo e teólogo- Recife-PE