A Teologia da Criação [SERMO 153]
A TEOLOGIA DA CRIAÇÃO
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
Gn 1-11: A pré-história
Em seu aspecto geral, Gn 1-11 pervade o terreno da pré-história, mostrando as origens do mundo e da vida, conforme a visão – de certa forma limitada – do escritor sagrado, bem como se dispõe a desvendar um período da história da humanidade dominada por fragilidade e ambigüidade.
O conteúdo do livro tem o aspecto de uma verdadeira “colcha de retalhos”, formada por lendas, “causos”, historinhas mais ou menos desenvolvidas, genealogias – ma-teriais diferentes, que foram alinhavados. É como se estivéssemos no porão, abrin-do um velho baú, onde a família foi pouco a pouco guardando suas fotografias, ob-jetos de estima, roupas antigas, etc. Qualquer leitor atento pode perceber facilmen-te onde acaba uma história e começa a outra. O importante é sempre se perguntar qual o sentido daquela história e para quem ela fazia sentido .
O livro do Gênesis, e em especial o texto compreendido entre 1-11 levou cerca de 1000 anos para adquirir a forma como nós o conhecemos hoje. Em sua redação vislumbramos três momentos importantes:
• tempo de Salomão – século X (971-931 a.C.)
• século VIII – VII (entre 800 e 700 a.C.)
• século VI – V (o período do exílio e pós-exílio babilônico).
Em termos de antigüidade é salutar observar que a cada nova circunstância e novo ciclo de tempo, a história é reescrita e reinterpretada conforme os diversos parâmetros da cultura e da ideologia vigentes. Para estudo, há quem afirme que a diferença entre pré-história e história está ligada a existência de registros, no ca-so, a escrita.
De fato, Gn 1-11 cobre um extenso lapso de tempo, pois conta fatos desde a Criação do mundo (cerca de 5 milhões de anos atrás), da vida microscópica (3 mi-lhões) e do homem (os primeiros vertebrados sugiram 250 mil anos atrás). Há 200.000 anos o homem já vivia nas cavernas, sem que se possua um sistema de escrita que possa basear as pesquisas, desse e de outros eventos contemporâ-neos.
Fica tudo nas mãos da arqueologia, que com seus métodos de inferência de datações é capaz de avaliar a ocorrência de fatos históricos. Posteriormente, há outro registro histórico, comprovado pela arqueologia, há 6000 anos atrás (ou 4000 a.C.): No chamado período obeidiano, ocorreu uma grande enchente na Me-sopotâmia, um provável dilúvio, quando muita gente morreu.
Chama-se, portanto, o texto de Gn 1-11 de pré-história bíblica, por estar compreendido dentro do período ágrafo, isto é, uma época histórica sem escrita, onde apenas as tradições orais e algumas tentativas de criar um “banco de memó-ria” através de desenhos no interior de cavernas, cacos de cerâmica, madeira e outros materiais, ajudam na identificação temporal. A escrita, mais desenho (ca-racteres pictográficos) que escrita propriamente escrita, existe há 5000 anos.
A escrita cuneiforme gravada em pequenas tabuletas de argila, fazendo parte também de inscrições sobre metais, pedras, cerâmicas, estelas (postes sagra-dos) e outros materiais (3000 a.C). Depois, foi adaptada para a escrita acádica. A transcrição da escrita cuneiforme contribuiu para o conhecimento que, hoje, se possui sobre a Assíria, a Babilônia e o antigo Oriente Médio. O período da história da humanidade é anterior ao aparecimento de testemunhos escritos.
Nas sociedades ágrafas (sem escrita), apenas a tradição oral conservava os traços do passado, com os relatos transmitidos, oralmente, de geração em gera-ção. A ciência da Arqueologia (do grego, arkháios, “antigo” e logos, “ciência”), literalmente refere-se ao estudo das antigas culturas da humanidade. A maioria dos arqueólogos do passado, limitaram a origem de sua disciplina ao estudo de anti-güidades e definiram a arqueologia como um “estudo sistemático dos restos materiais da vida humana já desaparecida”.
No contexto bíblico, ora em estudo, deparamo-nos com a narrativa (final do cap. 11) com nítidos traços míticos, de fulcro mesopotâmico, da descendência de Noé, a dispersão do povo de Babel, as toledoth (genealogias das famílias e dos pa-triarcas). Acaba aí a pré-história, toda ela dentro do chamado período ágrafo.
Logo após, (Gn 12-50) há uma cronologia, que começa com Abraão (Gn 12,1), entre 2000 e 1800 a.C. e vai até a morte de José, filho de Jacó, no século XIII a.C. O êxodo seria em 1250 a.C. Assim, Gn 1-11 não se refere tão-somente à pré-história de Israel, mas do Oriente Médio e de toda a humanidade.
O livro do Gênesis é um conjunto de mosaicos desse mundo antigo (o “crescente fértil”), onde as fronteiras entre os povos oscilavam freqüentemente com as con-quistas, as possessões e os assaltos (...). A história da Bíblia e do Gênesis está permeada de elementos culturais dos povos vizinhos .
A cosmogonia (kosmos, mundo + goné, geração) que aparece em Gn 1, em-bora esteja presente em outros relatos do Oriente Médio, é a única na Bíblia, e reporta-se a fatos ocorridos a alguns milhões de anos. Quem escreveu não viu, nem conviveu com quem tenha presenciado o início da Criação. A narração J (javista), contrariamente ao que se possa pensar, não é um relato criacional. Seu texto (Gn 2,4b-25), objetiva contar a origem do mal. O capítulo 2 foi, por assim dizer, redigido como uma “preparação” para o 3.
Deve ter sido extremamente difícil e penosa a tarefa dos escritores ao escre-ver sobre essa pré-história bíblica. Tentar estabelecer uma cosmologia (falar a respeito da origem dos astros, da terra, do mar), dizer como o homem foi criado, suas raças e línguas, não deve ter sido fácil. E depois estabelecer uma cronologia meta-histórica sobre a vida do homem, dos animais, a ocupação das cavernas, o dilúvio, as primeiras descobertas que a Bíblia omite (a roda e o fogo), a implanta-ção dos primeiros aldeamentos (Jericó foi a primeira cidade), a utilização dos instrumentos, tudo sob o fulcro da visão religiosa. A narrativa dessa pré-história da Bíblia ficará, pela peculiaridade do largo período que abrange, sempre dependente – mesmo que se queira insistir num enfoque exclusivamente místico – da herme-nêutica e das descobertas das ciências. Até o século XV-XVI de nossa era, os estudiosos cristãos afirmavam e endossavam as teorias judaicas onde era afirmado, de forma dogmática e peremptória, que todos os cinco livros da Torá (Pentateuco) haviam sido escritos por Moisés.
Ainda que esta forma de atribuição causasse dificuldades internas entre rabinos e padres apostólicos, não tinham a coragem de colocar em dúvida a tradição. A partir do século XII d.C., Ibn Esra iniciou um estudo sobre a autenticidade da autoria mosaica dos textos, e começou a colocar em dúvida alguns deles: teria tido Moisés o privilégio de antever a sua morte? (Dt 34,5-12). Os textos de Gn 12,6;13,7 vinculados à presença dos cananeus sugere ser pós-mosaico, pois como teria ele escrito uma realidade antes da conquista da terra? E assim seriam muitos textos que en-tram em contradição com a história de Moisés .
Dentro dessa linha de raciocínio, um teólogo alemão, o protestante A. B. Karlstadt († 1541) teria sido o primeiro a refutar, oficial e academicamente, a au-toria de Moisés, a despeito de ser esse o ensinamento de Lutero († 1546). Para muitos biblistas e estudiosos das ciências religiosas, a redação final da maior par-te dos livros da Torá teria ocorrido através da iniciativa de Esdras (séc. V-IV a.C.), um cronista que acompanhou a libertação israelita da Pérsia e ajudou na restau-ração da nação.
Quem olhar de forma analítica verá que na Torá (ou Pentateuco) há três ou quatro narrativas sobrepostas e independentes, evidenciando uma autoria múlti-pla, em mais de uma época. Há no texto em questão, um corpo poético, cultual e legislativo, que revela a evolução literária e cultural do judaísmo pós-exílico. A “redação final” de Gn 1-11 é atribuída a um grupo heterogêneo, onde desponta o kōhen Esdras e mais alguns sacerdotes, rabinos e copistas.
Na pesquisa das fontes bíblicas surge sempre a questão: Gn 1-11 seria uma “redação final” ou a releitura de fatos culturalmente tradicionais? Tudo nos leva a crer no aspecto histórico, quando, na volta do exílio mesopotâmico (por volta de 538 a.C.), o povo, ferido no corpo, na alma e na auto-estima, sofre uma ponderá-vel perda de identidade.
A religião está em crise, e muitos por quês surgem de modo inquietante e ameaçador: por que Deus nos abandonou? Por que fomos re-duzidos a escravos? Por que perdemos nossa nacionalidade? Por que sofremos? O fio-condutor da história, de Moisés a Abraão estava rompido, e essa ruptura ameaçava o futuro da fé e do Estado. Os critérios de historicidade se tornavam insufi-cientes para uma retomada de consciência.
Então, o que fazer? Era preciso elaborar uma nova forma de ler a história, num autêntico “olhar o passado”, organizando uma teoria do princípio (berešit), que retratasse, de forma idealista, o começo do povo, junto com a humanidade e o universo. A necessidade era criar uma saga, uma epopéia, como as dos babilônios, em que a divindade judaica fizesse coisas tão portentosas quanto os deuses estrangeiros.
Os autores resolveram somar à tradição oral das origens, alguns mitos, len-das e histórias tradicionais de outros povos, especialmente dos dominadores caldeus. Era preciso elaborar uma narrativa consistente, realista e, sobremodo, mo-tivadora. De acordo com a teoria de G. von Rad , essas sagas do Oriente Médio são vigorosas construções literárias, que se originaram na atividade religiosa e espiritual. Tais sagas não se importam tanto com a realidade histórica, cronológica ou mesmo lógica. Para elas vale a busca de uma visão ideo-lógica, adaptando um contexto universal a uma necessidade particular.
Depois de vencer os babilônios em 538 a.C., Ciro, o persa, autoriza a volta dos judeus à Palestina (o famoso e festejado “edito de Ciro”). Os exilados repatria-dos têm muita coisa para reconstruir: a capital política (Jerusalém), a muralha (sinal de força) e o templo (sinal de adoração a Javé). Mas, antes disto, eles preci-sam de uma reforma de base, que lhes possibilite reconstruir sua identidade como povo escolhido. E a árdua tarefa desse šear` (um “resto” que voltou) é resgatar sua crença religiosa, em cima, principalmente da ,Torá (a Lei) que vai organizar a vida da nação. Para tanto, a tradição tem que estar toda ela assentada nos livros sagrados, cuja redação final começou nos últimos anos do exílio, e agora, pelas razões aludidas, urge completar. Em Ne 8-9, lê-se que no século V a.C., durante “a festa dos tabernáculos”, Esdras mandou proclamar “o livro da Lei”. Ora, se o livro foi proclamado numa cerimônia oficial, é porque se tratava do texto definitivo.
A composição da Torá pode ter sido iniciada no tempo de Moisés e do êxodo (especialmente Ex, Lv e Nm), no século XIV-XIII e ter sido concluída 800 anos mais tarde, depois do exílio babilônico. A “bíblia” judaica difere da cristã em suas seções. Enquanto nossas edições têm Pentateuco, Históricos, Sapienciais e Profé-ticos, o judaísmo adota apenas três divisões: Torá Lei), Nebiim , profe-tas) e Ketuvim, Escritos). Ora, apanhando a primeira inicial de cada seção T, N e K, e interpolando nelas uma vogal, podemos referir as Escrituras judaicas como a sigla TaNaK. Às questões do povo, sobre sua identidade judaica, “quem somos?”, “Deus ainda está com a gente?” vão ser respondidas pelos kō-hen, os sacerdotes-teólogos (criadores da tradição P), que predominavam entre os repatriados.
No campo da inculturação, vale lembrar que bem antes de Moisés, os he-breus, no Egito, e os apiru, filhos de Israel nas estepes palestinas já possuíam sua cultura religiosa, e tinham – embora não escritas – bem vivas, as tradições ligadas às suas origens. É salutar sempre termos em mente que, ao contrário do que alguns afirmam, a Bíblia não nasceu de repente, nem “caiu do céu”. Essa literatura desenvolveu-se qual um embrião no seio do povo de Deus.
Em Gn 1-11 encontramos diferentes características e gêneros literários, mas em redação final a obra se revela de um cunho eminentemente sapiencial que, como tal, não se limita à cultura da época, mas projeta o futuro. Nessa visão, o “sejam fecundos e multipliquem-se” (Gn 1,28), que à primeira vista só se prende ao procriar, ter filhos e formar gerações, adquire uma visão mais profunda da fe-cundidade, no sentido biológico, afetivo e de fraternidade. Hoje, à Igreja cabe ser fecunda, gerar filhos, multiplicando a todos a boa notícia do amor. Ao povo egres-so do exílio, cabia, em função da necessidade de uma restauração geral, uma re-leitura da Torá.
Na Babilônia, o povo estivera submetido a um “bombardeio” ideológico e religioso, onde lhe eram impostas as crenças caldéias, como cosmogonias, mitologi-as, teogonias e teocrasias (fusões das divindades, metamorfoses das imagens, com fins de adaptar ritos e cultos). Alguns se mantiveram fiéis ao Deus-Javé, mas muitos deixaram-se seduzir pelas divindades dos opressores.
A composição de Gn 1-11 se dá no período pós-exílico, quando os judeus elaboraram, de modo próprio, elementos trazidos da Babilônia e que agora (época em que foi realizado o esboço final) estão sob a influência cultural dos povos da Ásia Me-nor, da Grécia e da Macedônia. Estes povos já tinham teorias bastante aprofunda-das, quer do ponto de vista filosófico, quer sob o prisma astrofísico .
Foi justamente essa capacidade especulativa da filosofia mediterrânea que levou o povo a questionar: “Por que o exílio? Se somos filhos de Deus, qual a razão de termos sido entregues nas mãos dos nossos inimigos?”. Sem admitir o fracasso sociopolítico e econômico de um Israel destroçado pela divisão, as autoridades preferem a explicação religiosa: fomos castigados por causa de nossos pecados!
A mistura do científico com o místico (e o mítico) nem sempre é bem digeridA pelo povo simples das comunidades ou pelos fundamentalistas das seitas. Estes, em geral, preferem a interpretação religiosa, sem qualquer contestação da ciência ou da exegese mais moderna. Para muita gente, modernidade ou modernis-mo é sinal de heresia. No que se refere à Criação do homem e do mundo, não existe uma história profana e outra sagrada, com linhas paralelas e até divergentes. Há apenas uma história de fundo com conseqüências religiosas, em cujo sulco aparece o homem e a natureza.
Todos os segmentos da teologia têm sua tarefa, assim como uma pedagogia específica, própria aos objetivos e ao estilo que quem a idealizou. Deste modo, modernamente se consegue divisar, como tarefa, quem sabe uma delas, da TC (Teologia da Criação) o ato de compreender a natureza como “criação”, mergulhada nos limitadores da finitude e da contingência, sem cair nos exageros maniqueístas, onde as “coisas” só podiam ser divinizadas ou demonizadas. Igualmente, outra tarefa que se nos surge, como característica da TC, é remeter-nos à compre-ensão da natureza como um “veículo de comunicação”, através do qual o Criador se comunica com as suas criaturas.
A interpretação multidisciplinar da Criação nos conduz a muitos caminhos, que são capazes de gerar esquinas ou encruzilhadas, onde a fé se encontra com a razão, e a teologia se cruza com a ciência. De um lado, freqüentemente a visão científica a respeito do mundo nos questiona: como foi criado?
Quando foi criado? Embora tais perguntas tenham sua relevância particular, de outro lado a teologia indaga: por quem foi criado? Para que foi criado? Para quem foi criado? A tarefa, portanto, da TC é esmiuçar, até onde é possível, o simbolismo criacional, que gira em torno de alguns eixos intrigantes, como: a) o caos; b) o espírito de Deus paira-va... c) Deus disse... d) os seis dias... e) Adão e Eva; f) Caim e Abel; g) o dilúvio; h) a torre de Babel, etc.
Mesmo que a maioria das novas teorias da exegese sobre Gn 1-11 estabele-ça uma compatibilidade entre fé e Criação, é preciso nunca perder de vista que, à frente de todos os panos-de-fundo dos relatos tradicionais, há uma essência, na qual devemos crer. Com a expansão da modernidade na exegese, corre-se o risco de infiltrações materialistas no enunciado bíblico.
A criação é um artigo da fé cristã (ou seja, um mistério e não a “conclusão” de um raciocínio metafísico, isto é profano). Conseqüentemente, é preciso resistir à tentação de comprometer esse mistério de fé com uma determinada cosmovisão. Nessa forma de ver as coisas, há a necessidade de firmarmos a visão no fato principal e no fato acessório, como, por exemplo:
a) Deus cria...
• fato principal: irrecorrível, indiscutível = matéria de fé;
• fato acessório: como cria, quando cria, em quantos dias,
tudo é matéria sujeita à interpretação;
b) Deus salva...
• fato principal: Deus salva os seus e deixa os infiéis
entregues à pró-pria sorte = matéria de fé;
• fato acessório: houve ou não um “dilúvio”; durou 40 dias ou
mais; Noé construiu uma “arca”? levou “x” casais de animais
para lá?
Tal enfoque privilegia o reconhecimento da tarefa da TC como a de unir o princípio com o depois, este com o ainda, e todos com o futuro. Nesse particular, é imprescindível notar (e anunciar) que a grande tarefa da teologia é unir a Criação com a Redenção e com a Escatologia. O mundo se torna reconhecido como cria-tura de Deus, não por si mesmo, mas pela revelação divina, que aponta Deus co-mo seu Criador.
Deste modo, a Criação aponta para a promessa de Deus aos Pa-triarcas, e tal promessa inflete para a messianidade de Jesus que, por sua vez, indica a iminência do Reino vindouro. A Criação aponta para o Reino. É tarefa de TC publicizar essas realidades.
Nota-se a existência de um desejo generalizado, no sentido de que a narrativa da Criação (no nosso caso, a Teologia da Criação), assim como atuou junto ao povo que voltava do exílio, provocando um rearmamento da fé e da auto-estima nacional, também em nossas comunidades de hoje, seja capaz de despertar uma nova consciência e sobretudo um novo comprometimento. Corre-se o perigo de muita contemplação e pouca ação, conforme alerta o teólogo latino-americano Jon Sobrino:
Nós, teólogos, temos que afinar o instrumento: método
hermenêutica, neste caso a busca de paradigmas. Mas, o
importante é “o que fazemos com isso?”. O perigo se-ria, como
disse com humor Karl Rahner a respeito de um colega: “Passa
toda a vi-da afiando a faca, mas ainda não cortou nada” .
Cabe ao teólogo/biblista a missão de esclarecer, mostrar, fazer ver além das simples letras. É tarefa dos especialistas, igualmente, identificar o profano. No grego, o verbo profainôo, refere-se às ações de manifestar, expor. Urge, ao teólogo e ao biblista, separar o que não pertence ao mistérico, o que está fora do âmbito da crença ou da religião. O texto marcante, quando Deus inquire Caim
O que fizeste com teu irmão? (Gn 4,9)
não se refere só ao matar, mas também – e às vezes, principalmente –deixá-lo à margem, sem conhecimento, sem condições de discernir entre a essência e o pano-de-fundo. Foi numa ocasião como esta, que Deus falou – conforme já vimos aqui – pela boca do profeta:
Pois meu povo está se perdendo por falta de conhecimento
(Os 4,6).
No trilhar os caminhos da TC é preciso fazer ver as maravilhas de Deus, on-de é preciso – para usar uma expressão de Santo Anselmo, “crer para compreender”, onde, pela metáfora (o pano-de-fundo) o crente compreende, e pela visão da essência ele crê. A fé faz ver hoje, elevando os olhos para vislumbrar o futuro, bem mais além.
Nesse particular, nossa teologia precisa ser, ao mesmo tempo, históri-ca e escatológica. Ela é histórica na medida em que nos revela que algo que acon-tece no tempo não é coisa fixa, mas vai acontecendo. A história é a Criação em andamento, e por isso – ao invés de certas tendências conservadoras, precisa ser estudada, preservada e debatida.
A Teologia da Criação é escatológica na medida em que reflete uma nova criação. É o horizonte, promessa, sentido último das realidades que o Criador preparou e guardou para o ser humano. Essa escatologia é para onde converge a paisagem da Criação: novos céus e nova terra (cf. Ap 21,1); Jerusalém celeste (v.2). É a fé cristã apoiada na páscoa de Jesus Cristo. A metáfora dos “querubins à porta do paraíso” (Gn 3, 24) retrata o projeto de preservar aquelas delícias para um retorno, quando o homem irá usá-las de novo.
A Bíblia está interessada em conservar e transmitir o sentido mais profundo da criação para a fé. Não é uma obra científica, como os modernos livros de física e de biologia, que explicam o modo como as coisas acontecem. Pela Escritura entende-se “quem” está na origem da criação, qual seu desígnio, a sua vontade e, consequentemente, qual a nossa dignidade e responsabilidade diante de nosso Criador; enfim, qual o sentido de nossas existências como criaturas .
A Teologia da Criação, por sua complexidade, revela-nos que somente pela fé é possível ao ser humano escutar nas Escrituras, o ressoar da Palavra viva do Criador, desde nosso primeiro momento humano. Essas “razões de fé” nos reme-tem a uma idéia de perenidade. Deus criou e continua criando, proporcionando à humanidade como que uma atualização, ou seja, uma nova Criação, sempre re-novada. Dentre tantas bibliografias a esse respeito, cabe destacar a chamada “te-se de Gerhard von Rad”, que afirma que essa nova criação repousa em dois eixos:
• Antigo Testamento
O eixo central da Criação está no êxodo, experiência histórica e fontal da libertação de Israel; essa páscoa retrata a passagem das trevas pa-ra a luz; do alagado para o a pé enxuto;
• Novo Testamento
Jesus Cristo – a libertação definitiva – instaura (pelo batismo) a nova criação; é o “nascer do Alto” (cf. Jo 3,3) que Jesus menciona a Nico-demos. Nascer de novo, pelas alegorias neotestamentárias, é um dom.
A TC só será convenientemente entendida se compreendermos, com todo o nosso ser, a idéia na nova criação. Se, de um lado a primeira criação restou corrompida pelo pecado, a segunda criação foi totalmente resgatada por Cristo para o futuro escatológico. Como o processo de Criação é dinâmico e se renova, não se pode dissociar um modelo de criação do outro. A pedagogia divina estabeleceu es-ta convergência, e, sobretudo, essa concomitância.
O desejo do Criador visa, por todo o sempre, uma “conversão” do coração do homem àquilo que se convencionou chamar de “projeto de Deus”, ou seja, uma estratégia, uma economia capaz de trazer o homem de volta ao estado inicial de inocência e de paraíso. Nesse projeto destacam-se vários fatores positivos, como libertação, resgate, perdão e salvação.
No revés, repudia o destino (a moira, dos estóicos), as incidências cabalísticas de sorte ou azar, o culto aos mortos, a pes-quisa nas “vidas passadas”, etc. A Criação é, toda ela, uma obra trinitária, onde ocorre o concurso eterno dos Três Divinos. O uso dos verbos no plural, “façamos...”, por exemplo, pode significar um plural majestático, como também uma obra realizada em grupo, Trindade Santíssima. Nisto há alguns fatores que vale a pena refletir:
• Deus (Pai, Filho e Espírito Santo)
Ao dizer, no evento criacional, “façamos...”, Deus revela a
Trindade trabalhando na Criação;
• Eterno
Deus não tem princípio nem fim; o Filho e o Espírito são as
duas mãos com que ele toca a humanidade;
• Sabedoria
Como “Espírito de Deus”, a Sabedoria “estava lá...” quando
tudo foi criado (cf. Sb 8, 22-310); o Espírito (o ruah) “renova”
a Criação (cf. Sl 104,29s);
• Lógos divino
A “palavra eterna” o logos estava em Deus, desde o
princípio (cf. Jo 1).
Deus, pelo poder do Espírito Santo, mandou seu Filho para dar (cf. Jo 3,16) à humanidade aquela “vida plena” que foi planejada (cf. Jo 10,10). Nisto consiste a Nova Criação. A Criação é mistério e graça. Ela reflete aquilo que K. Rahner († 1984) chamou de mysterium solis e mysterium lunae. Como “mistério do sol” deve-se enxergar a pessoa Deus. A lua é a Criação, que reflete a luz do sol sobre as trevas. Algumas correntes apontam a Igreja como “mysterium lunae”.
Na concepção do insigne teólogo alemão , na metáfora do concerto cósmico, as estrelas (que não são sol nem lua) representam os cristãos, os batizados, evangelistas e evangeliza-dos, que têm missão de iluminar quando o sol e a lua não podem fazê-lo. Pois nesse mistério da Criação vamos encontrar o verbo barah, já referido aqui, cujo significado é criar. Mas uma forma privilegiada de criar.
Para denotar a ação criadora exclusiva de Deus, emprega-se um termo técnico: é o verbo barah. É de se notar que se trata de um verbo estritamente teológico; seu sujeito é Yahweh, sempre, unicamente, e nunca se menciona uma matéria ex qua, um instrumento ou uma colaboração; sua ênfase recai sobre o caráter de ineditismo do criado.
Assim, o verbo oscila entre o próton e o esxáton, associando a idéia de criação com a de salvação. O ato criador de Deus é dom, um fruto espontâneo de sua misericórdia. Tudo foi, como dizem, creatio causa sui, criado porque ele quis. Não foi induzido a nada. Criou porque quis. Podia não ter criado.
A tarefa, portanto, da TC é revelar a grandeza de Deus, sua generosidade e a perfeição das coisas/seres que ele criou. No tocante à visão literária de Gn 1, é interessante instrumentalizá-la com um enfoque sociológico. Ou melhor: sociopolítico. Nota-se que o texto foi composto sob a ótica do oprimido, do exilado explo-rado, do sem-terra, vitimado pela truculência do imperialismo caldeu.
Ao lermos – melhor seria dizer: recitarmos – Gn 1, é imprescindível incorporar, como pano de fundo, os gemidos e as dores daquela gente escravizada. O foco da leitura só estará adequada se interpretarmos a poesia em meio ao conflito. A finalidade, portanto da Teologia da Criação é mostrar o que Deus fez/faz, como também chamar atenção para tudo o que o ser humano tem entortado aquelas linhas, tão perfeitamente criadas.
É tarefa da TC mostrar o ontem em confronto com o hoje. O Deus que cria, e não contente em criar, manda seu Filho para corrigir o que foi destroçado pelo pecado humano. São Paulo tem um texto edificante, a esse respeito:
Com alegria, dêem graças ao Pai, que permitiu a vocês participarem da herança dos cristãos, na luz. Deus Pai nos arrancou do poder das trevas e nos transferiu para o Reino de seu Filho amado, no qual temos a redenção, a remissão dos pecados (Cl 1,12ss).
O autor (70 anos em abril) é teólogo leigo, biblista, com especialização em exegese, escri-tor, com mais de cem livros editados no Brasil e exterior, entre eles “Bereshit – Teologia da Criação” (no prelo). Conferencista internacional, pregador de retiros de espiritualidade e doutor em Teologia Moral. Este texto é o resumo de um curso de teologia popular levado a efeito em uma comunidade na Região Metropolitana de Porto Alegre, em 2010.