O fim do mundo

FIM DO MUNDO

Antônio Mesquita Galvão

O fenômeno conhecido como “fim do mundo” está incluso no estudo da es-catologia, aquilo que se chama de “as últimas coisas!” (novíssimus) que abrange morte, juízo, parusia e ressurreição. Muitas pessoas, reportando-se às belezas na-turais do planeta, perguntam: “será que Deus vai destruir tudo isso, no fim do mundo”?

As religiões fundamentalistas, as seitas pentecostais usam a simbólica ater-radora de um “fim do mundo” para semear o medo e assim acelerar o proselitismo que desenvolvem há anos. A cada ano, cada época, surgem boatos e comentários alarmistas a respeito desses sobressaltos, que depois de expirados os prazos, fica constatado o engodo. Quando morei na Paraíba (80-85) havia uma seita funda-mentalista chamada de “borboletas azuis” que previu o fim do mundo para uma determinada data. O dia passou, o mundo não acabou e o grupo, desacreditado, se desfez. Agora, assombram o mundo com as “profecias maias” sobre o fim do mundo.

A maneira correta de designar o mundo é “céus e terra” (cf. Gn 1, 1). O mun-do terrestre é chamado de tebel, no hebraico (cf. Jr 51, 15) e cosmos na literatura sapiencial helenista. Tendo saído da sabedoria criadora de Deus, o mundo, orga-nizado como verdadeira obra de arte, é a manifestação contínua da bondade de Deus. No entanto, o mundo físico, a terra, os lugares onde habitam os homens, tem sido contaminado pelos pecados, pelos crimes, pelos atentados à natureza, pela poluição. A poluição ambiental, o desmatamento irracional, o envenenamento de rios e fontes, é um crime contra a natureza, contra o ser humano, e um des-respeito ao Deus da vida.

A história bíblica está repleta de citações e sinais que falam em “mundo presente” e “mundo futuro”. Sob esse enfoque, podemos compreender que o mun-do presente é este onde vivemos, desde que a inveja do demônio (e o pecado dos homens) transformou-o para pior, com o surgimento da morte (cf. Sb 2, 24). Esse mundo somos nós, cheios de pecados e seqüelas. O mundo futuro é aquele que será restaurado, quando Jesus vier estabelecer aqui o seu Reino. Em paralelo à transfiguração do homem, ocorrerá a restauração do cosmos. A divisão desses mundos é sensível nas páginas da Bíblia:

ESTE

de pecado e injustiças (cf. Lc 16, 8)

O QUE VEM

glorioso, de graça(cf. Mc 10, 30)

Igualmente, algumas expressões do Novo Testamento, como “filhos do mun-do” (do pecado) e “filhos da luz” (na graça de Deus) retratam as forças em confron-to na terra. Paulo fala em “mundo mau” (cf. Gl 1, 4) para evidenciar o domínio do mal sobre os corações dos homens. Satanás é chamado de “rei deste mundo” (cf. 2Cor 4, 4). O “mundo futuro”, na contrapartida, é aquele em que Cristo vai reinar.

Mas a pergunta não foi respondida. A terra será destruída? A terra, o mun-do, com suas belezas, tantas coisas boas, rios, montes, florestas e praias, animais selvagens e domésticos, merecem ser destruídos? Creio que não! A terra é algo de bom, neutra a valor. O homem é que, com sua ação, positiva ou negativa, dá um valor à terra em que vive. O que há de mal na terra, secas, enchentes, devastação, desmatamentos, alteração dos ciclos de vida, são como que um corolário do mau uso que os homens – em situação de pecado – realizaram. Desprezar a natureza, obra de Deus, e templo dos homens, é um pecado. Como obra de Deus, a terra não será destruída, mas restaurada. O homem novo habitará numa terra renova-da. É a figura dos “novos céus e nova terra” que trata o Livro do Apocalipse (cap. 21).

Quando Jesus se apresenta como aquele que “venceu o mundo” (cf. Jo 16, 33), não há uma referência à vitória sobre montes, mares e planícies, mas um esmagador triunfo, primeiro sobre o pecado e depois sobre seu salário, que é a morte. Jesus morrendo tirou o pecado do mundo (cf. Jo 1, 29), constituindo-se cabeça da nova criação. O “novo céu” e a “nova terra” (cf. Ap 21) será fruto de re-novação cósmica e não de destruição. Ora, se a primeira Palavra de Deus foi de criação, a última, por certo, não será de destruição. No princípio, Deus cria a ter-ra para o homem. No fim, por certo, restaurará a terra para o homem renovado.

Buscando o sensacionalismo, os meios de comunicação, volta-e-meia anun-ciam cataclismos. O mundo terá fim? Haverá uma catástrofe? Os “sinais” escato-lógicos indicam a destruição da terra e do universo? O mundo material também será objeto de julgamento? E as ameaças de “fim do mundo”? Toda passagem da vida terrena para o tempo glorificado é uma ruptura só possível pela força trans-formadora de Deus.

Vai ocorrer um conflito cósmico, um “fim do mundo”? Não creio! Deus não criaria uma obra tão perfeita para depois destruí-la. A resposta sobre o como da parusia, a segunda vinda de Jesus, não têm recebido respostas exatas. Também pudera, é impossível, devido à nossa limitação, estabelecer uma compreensão exata dos desígnios de Deus. E as estrelas que vão cair? Elas são os poderes hu-manos, os impérios, o reino da “estrela da manhã” (Satanás).

Haverá um fim do mundo, destruição, maremoto, fogo? Não creio! Mesmo porque as palavras da Bíblia precisam ser entendidas dentro do quadro e da situ-ação cultural em que foram escritas. O fogo é uma primeira idéia estóica de trans-formação e purificação. A história se conclui pela ação transcendente de Deus, que assume definitivamente a vida dos vivos e dos mortos. Isso não acontece em um momento único, mas à medida que as pessoas morrem. As expressões empre-gadas pelos milenaristas provação e arrebatamento podem ser vistas pelas dificul-dades da vida atual, e a conversão dos que desejam um mundo melhor.

A grande questão sobre o fim do mundo gira sob dois eixos. Haverá uma catástrofe (como preconiza a apocalíptica judaica)? Ou uma profunda transforma-ção (hermenêutica bíblica do “novos céus e nova terra”)? Teólogos e exegetas não são unânimes. Para uns há um “grande julgamento”, para outros, o julgamento ocorre na morte. O fim do mundo não é de destruição da vida e do cosmos, como preconizou Nostradamus para 1999 (que acabou não ocorrendo), mas uma res-tauração do que está em desacordo com o projeto de Deus. Por ser obra de Deus, o mundo, para glorificá-lo, precisa ser transformado.

Em toda a literatura bíblica precisa ser observado o sentido metafórico dos textos relativos ao fim do mundo. As trevas são o oposto à luz de Deus. O abalo dos fundamentos do mundo pode estar ligado ao fim dos reinados de egoísmo, poder, riqueza e luxúria. O cair estrelas pode estar ligado à derrota de Satanás (seus anjos, no Antigo Testamento são referidos como “estrelas da manhã”; são a terça parte das estrelas e, Ap 12). O fogo é um elemento simbólico da purificação (cf. Is 26, 11; Ml 3, 2). A idéia do apóstolo Pedro tem um fundo estóico de influên-cia da apocalíptica judaica, onde acontecerá um grande incêndio cósmico que destruirá a tudo, conforme 2Pd 3, 7.10.12. Trata-se da ekpirossin, a “conflagração universal” de Heráclito, onde, após a purificação pelo fogo, tudo voltará acontecer como no princípio. A essa formulação estóica, que influenciaria Orígenes, a filoso-fia chama de “leis do eterno retorno”.

Eu prefiro o modelo de T. Chardin que diz que, pelo poder de Deus, o mun-do evolui para o bem (campanhas, conscientização, movimentos pela paz, solida-riedade). Há a cristificação do cosmos com a adoção de uma consciência amoriza-da. A humanidade evolui, purifica-se e ocorre a plenitude. É o novo céu e a nova terra (In: Comment je crois, Paris, 1934; as expressões cristificar e amorizar são neologismos de Chardin, hoje incorporados à literatura cristã do século XX). En-quanto não chega o dia da nossa morte, vivemos em tensão com o mundo. É im-portante, no entanto, não amoldar-se às suas estruturas, mas (cf. Rm 12, 2) con-verter-se ao projeto de Deus. Até o dia da triagem, os grãos de trigo e as sementes de joio ficarão misturados no mundo. Quando ocorrer o fim de nosso mundo, de nossa vida, Deus nos dará viver a vida plena.

Os ateus, os sensuais, os idólatras, os zombadores e os pecaminosos su-põem que só existe este mundo, por isso não esperam “novos céus e nova terra”. Haverá um momento, na hora da morte de cada um, em que não será mais possí-vel o arrependimento, a retratação. Aí será o fim de tudo...

O príncipe deste mundo já está julgado (cf. Jo 12, 31).

Não se trata deste mundo de terras, campos, florestas e mares. Não! Jesus refere-se ao mundo de pecado, de egoísmo e de opressão. Esses astros e estrelas vão desabar... Estes sim, serão destruídos, dando lugar ao novum de Deus. O fim desse mundo de pecado é certo. A cruz de Jesus é parte integrante do julgamento e da destruição da morte e do pecado. A cruz denuncia, desnuda e erradica o mal. O mundo do pecado tem na cruz o símbolo de sua destruição.

A morte de Jesus é um juízo profético sobre a morte do cristão: a morte tem senti-do se a vida for consumida no amor. A morte será então consumação do amor. A morte de Jesus é ainda profecia sobre o ódio, sobre as violências e as dores que produzem morte (...). Assim, na cruz e na morte se encontra o escatológico Reino de Deus” (L. C. SUSIN, Assim na terra como no céu, Ed. Vozes, 1995).

O projeto de Deus irá realizar o fim do mundo em que vivemos. O amor vai transformar esse mundo de pecado em um mundo renovado, onde habitarão ho-mens novos. A apocatástase redentora pressupõe uma renovação conforme pre-conizaram as Escrituras:

Eis que faço novas todas as coisas (Is 43, 19; AP 21, 5).

As realidades cristãs, bem como toda a história humana nos fazem ver que Deus não destrói a pedra, não faz secar a erva ou morrer o animal selvagem sem uma finalidade transformadora, como iria, então, destruir o homem, a quem criou como filho e amigo? Pelos tempos afora, o ensino religioso e a catequese não con-seguiu dissipar o temor a respeito desse julgamento, nem estabelecer com clareza uma definição convergente entre o que chamam de “juízo particular” e “juízo fi-nal”. Igualmente as teorias a respeito do “fim do mundo” mais confundem que es-clarecem.

O juízo, como aniquilamento do mal, vem sucedendo ao longo da história. O autor do Apocalipse usa um vocabulário do profeta Daniel (cf. Dn 7, 9-14). Em Daniel assim como em Paulo (1Cor 15, 25) e no Apocalipse, o último inimigo a ser vencido é a morte. As forças da morte devem ser vencidas pelos cristãos no curso da histó-ria. A vitória definitiva será trazida por Deus. O juízo final revela que a entrada no Reino começa pela entrada na comunidade cristã (J. I. ALFARO, O Apocalipse, Ed. Loyola, 1996).

Deus, e ninguém mais, é o autor da nossa salvação, em Jesus Cristo (cf. Hb 5, 9). Nesse projeto, ele deseja dar vida abundante ao homem todo; todas as suas dimensões (física, histórica, social, espiritual, psíquica e cósmica) devem ser sal-vas. Como autor de toda a criação, ele não quer a salvação só do homem, mas a restauração do cosmo, onde o novo homem vai viver (cf. Ap 21), naquilo que T. Chardin chama de cristificação do cosmo, onde vai ocorrer, ao invés da destrui-ção, o fim do mundo de pecado.

As imagens de um “fim do mundo”, de cataclismo, dias de trevas e de des-truição funcionam como que uma figura comparativa, apropriada da apocalíptica judaica, para exprimir como será a frustração do homem se ele tentar construir sua vida sem Deus. A ressurreição do corpo, centro da nossa fé (está contida no Credo Apostólico) revela a propriedade da equação tomista, que agrega ao ser, o corpo, a alma e a graça divina, como realidade indivisível.

Santo Tomás, como se observa, não é dualista, mas essencialmente integralista, uma vez que vê o ho-mem como uma só substância, integral. Só há “fim do mundo” quando o mal ven-ce. Por isto Jesus veio, para vencer as trevas, o mal e a morte.

O cristão não deve temer as ameaças de fim do mundo. Deve se preocupar em viver sua vida conforme o projeto divino, longe de pecado e cercado pelo amor. Desta forma nada há que o possa intimidar.: Nosso Deus é de criação e não de destruição. Trata-se de uma atitude de fé.

O autor é Teólogo e Mestre em Escatologia. Escritor com mais de cem livros publicados, entre eles “O grão de trigo. Reflexões cristãs sobre a vida depois da morte”. Ed. Ave-Maria, 2000 (sua tese de mestrado).