EVANGELIZAÇÃO E PALAVRA DE DEUS
1.- O que é evangelizar
Segundo o Novo Testamento, a evangelização vincula a Igreja ao mundo, e define a sua missão em relação a ele. Mas nem por isto pode-se dar por evidente o conteúdo do que seja “evangelizar”. Verdade é que a evangelização se realiza no encontro da Igreja e mundo. É ali que o Evangelho se manifesta como o “poder de Deus para a salvação de todos os que crêem”, como diz o Apóstolo Paulo em sua Carta aos Romanos (cf. Rm 1,16), e pode também tornar-se salvação para os que ainda não crêem. Evangelizar não é apenas proclamação do Evangelho, inclui também o engajamento pela transformação do homem e da história, esperando que isto se realize humanamente na terra e plenamente na escatologia. Desde a atividade pública de Jesus, a tarefa da evangelização consistiu em proclamar a Palavra de Deus, e em agir para que ela se concretizasse.
Já no Antigo Testamento se evangelizou muito. Num primeiro sentido, “evangelho” é ali uma notícia de vitória, e não um vocábulo religioso. Depois da morte de Saul, por exemplo, os filisteus cortam-lhe a cabeça e levam os troféus pelo país, para anunciar este “evangelho” a seus deuses e ao povo (cf. Sam 31,9). De acordo com este significado, o evangelho ocorre quando se luta e se triunfa. “Javé te libertou da mão de teus inimigos” – este é o conteúdo do evangelho que Aquimaas, filho de Sadoc, proclama (2 Sam 18, 19.25-28; cf. Sl 68(67), 13).
Os capítulos 40-45 do profeta Isaías foram uma das partes prediletas de Jesus nas Escrituras. Também a Igreja inicial se preocupou muito com estes textos. Neste texto de Isaías existe uma passagem clássica (Is 52,7), citada pelo Apóstolo Paulo (Rm 10,15), que diz: “Quão belo é ver pelos montes os pés do evangelizador! Proclama a paz, traz boas notícias, anuncia a salvação, e diz a Sião: já reina o teu Deus”. “Javé consolou o seu povo, redimiu Jerusalém”(Is 59,9). “Todas as regiões da terra viram a salvação do nosso Deus” (Is 52,10; cf. Is 40,9; 41,27; 61,1; Na 2,1). O que aqui se considera de “admirável” é o evangelizador percorrer as montanhas de Israel, proclamando que Deus triunfou, que Ele é chefe soberano. Estes textos de Isaías sempre foram considerados messiânicos. O evangelizador do qual ali se fala é o próprio Messias. A sua simples presença já é o sinal da vitória de Deus. Com a presença do evangelizador se manifesta que Deus ganhou a batalha, e principia o tempo messiânico. “O mensageiro da vitória vem anunciar este evangelho aos pobres. Para isto foi enviado”(Is 61,1). E isto é motivo de alegria. Nestas passagens constata-se uma íntima semelhança com os conceitos e a linguagem do Novo Testamento. O que se vê no relato sobre o nascimento de Jesus, em que o anjo comunica aos pastores: “Anuncio-vos uma grande alegria, acaba de nascer o Salvador, que é Cristo Senhor” (Lc 2,10s). O verbo grego, utilizado por Lucas para caracterizar o anúncio dos anjos é “euangelízesthai”, que significa “proclamar uma boa notícia”. Assim já se fixam dois elementos de qualquer evangelização: o fundamento num fato e o efeito da alegria. Após Jesus Cristo, que foi o evangelizador prenunciado por Isaías, a Igreja inicial considerou os seus missionários como os mensageiros encarregados de anunciar e proclamar a salvação, a paz, a vitória, a consolação, a alegria e o universalismo do Reino de Deus aos povos, a exemplo do evangelizador de Isaías.
Na Grécia pagã os “evangelizadores” anunciavam vitórias olímpicas, nascimentos de pessoas importantes, como o filho do Imperador, ou fatos semelhantes. Em todos os casos, proclamar um “evangelho” era comunicar uma boa notícia. Por isto, o povo tinha o evangelizador em alta consideração, pois a sua presença era motivo de alegria. A notícia trazida, muitas vezes, já era esperada, e até já podia ser conhecida. Mas somente com a presença do evangelizador as notícias se confirmavam, tornando-se motivo de festa. Portanto, somente quando proclamado o conteúdo da boa notícia se transformava em acontecimento, em vivência. Interessante é reparar na importância que se dá à proclamação da boa nova para que efetivamente repercuta na vida do povo.
O cristianismo assumiu tanto os elementos evangelizadores do Antigo Testamento, como do ambiente Greco-romano.
2. Evangelho e evangelização
Fixando agora nossa atenção para o significado neotestamentário de Evangelho e Evangelização, verificamos que no contexto do Novo Testamento há uma variedade bastante ampla no uso do conceito “Evangelho”. Jesus é apresentado com um evangelizador, como um mensageiro que traz e é a boa notícia, de que se cumpriu o tempo esperado, de que Deus triunfou. Neste sentido, o evangelista Mateus cita Isaías (61,1), dizendo que com Jesus “é anunciado aos pobres o Evangelho” (Mt 11,5), sinal da vitória de Deus. Assim que, de agora em diante, não se precisa mais esperar por outro mensageiro de paz, de redenção, de vitória. Jesus traz uma mensagem e é uma mensagem. A própria palavra de Jesus é eficaz. O evangelista Lucas fala que depois de João se evangeliza o reino de Deus, e que cada um se esforça para entrar nele (cf. Lc 16,16). E quando não se fala em “evangelizar”, se empregam termos como “anunciar, pregar, proclamar”. O anúncio evangelizador de Jesus não se limita, porém, ao que diz. Inclui toda a sua vida e a sua obra.
Na literatura paulina não se fala somente em um evangelizador, mas em evangelizadores (Rm 10,15; cf. Ef 2,17; At 10,36). Neles a atividade de Jesus e dos Apóstolos se prolonga e se multiplica. Uma prolongação da mesma realidade divina de paz, de salvação e vitória, que se concretizou em Jesus Cristo. Também os gentios se tornam portadores desta mensagem que salva. Em sua Primeira Carta aos Coríntios, Paulo fala duma necessidade imperativa de proclamar o Evangelho, e diz: “Evangelizar não é glória para mim; é uma obrigação que se me impõe. Ai de mim, se não evangelizar” (1 Cor 9,16).
O Novo Testamento insiste em descrever o caráter dinâmico do Evangelho. Evangelizar é muito mais do que uma verbalização da mensagem. Evangelizar é, em si mesmo, uma ação. Dizer “Senhor, Senhor” pode até ofender a Deus; é necessário fazer a sua vontade para mostrar-lhe nossa submissão. Ainda que o “fazer” e o “dizer” sejam praticamente inseparáveis, é significativo que o evangelista Marcos, o autor mais antigo dos evangelhos, apresente principalmente fatos da vida de Jesus. Mateus enriquece estes dados com longos discursos. No Evangelho segundo João aparecem também, em primeiro lugar, as ações de Jesus, depois os seus discursos.
A recepção dinâmica do Evangelho denomina-se tanto por “submeter-se”, como por “crer” (Rm 1,5; 10,16). Paulo lamenta que nem todos se submetam ao Evangelho. Por isto escreve aos Gálatas: “Admiro-me que tão depressa tenhais abandonado a quem vos chamou pela graça de Cristo, para seguir outro Evangelho...” (Gál 1,6). Aos Coríntios Paulo testemunha que “os pobres de Jerusalém” glorificam a Deus pela submissão que eles haviam mostrado, professando o Evangelho de Cristo, na demonstração generosa de lhes enviar dádivas (cf. 2 Cor 9,13). Marcos insiste no serviço abnegado até a vitória final: “Quem perde sua vida pelo Evangelho, a salvará” (Mc 8,34). Assim a evangelização ativa se caracteriza pelo serviço abnegado. Através deste serviço, a evangelização se transforma num instrumento de salvação comunitária. E, por ser salvação, produz fraternidade. Os Filipenses, juntamente com os presidentes da comunidade e os diáconos dos pobres, perseveraram num mesmo espírito, lutando de comum acordo pela fé do Evangelho.
Pela evangelização também se quer pôr fim aos conflitos. Neste sentido, os Efésios lutaram com zelo para propagar o Evangelho da paz (cf. Ef 6,15). Pela evangelização se promove a vida, pois Nosso Senhor Jesus Cristo destruiu a morte e fez brilhar a vida incorruptível, mediante a evangelização da Boa Nova (2 Tm 1,10). Neste processo de evangelização, o evangelizador ocupa uma função específica na comunidade.
Enquanto a Palavra do Senhor segue o seu curso (2 Ts 3,1), enquanto o Senhor abre uma porta grande e eficaz (1 Cor 16,9), o evangelizador aproveita a oportunidade que o Senhor lhe oferece. Os frutos da evangelização são obra do Senhor. Por isto diz Paulo: “Não ousarei falar coisa alguma, sendo do que Cristo fez por mim... pela Palavra e pela ação, pelo poder das coisas maravilhosas e prodígios, pela virtude do Espírito Santo, chegando eu a divulgar em todas as partes o Evangelho de Cristo...” (Rm 15,18ss). Para Paulo o Evangelho é a personificação de Jesus Cristo. Por isto ele também acentua que na evangelização o mais importante não é o evangelizador, e sim a mensagem que ele proclama. Da parte do evangelizador esta consciência exige uma grande abnegação, pois o seu primeiro interesse não pode ser a promoção própria. Por outro lado, isto nos leva a perguntar quem foram na Igreja inicial os agentes da evangelização. Em relação a isto, descobrimos que todos os Apóstolos são tidos por evangelizadores, mas nem todos os evangelizadores foram denominados de apóstolos. Evangelizadores são também os seguidores e os auxiliares dos apóstolos na pregação, dentro e fora da Igreja. Mas como chegaram a ser nomeados aqueles evangelizadores que auxiliaram e continuaram a obra de evangelização dos apóstolos? Uma primeira resposta encontramos nos Atos dos Apóstolos, onde se relata que, aumentando o número de cristãos, os de fora da Palestina começaram a murmurar contra os da Palestina, porque suas viúvas eram deixadas de lado na distribuição diária. Os Doze convocaram, então, a assembleia dos discípulos e disseram: “Não convém que descuidemos da pregação da Palavra de Deus para servir à mesa. Por isto, irmãos, deveis escolher dentre vós sete homens bem conceituados... os quais encarregaremos desta tarefa” (cf. At 6,1-4). Este texto nos poderia dar a impressão de que os sete escolhidos só se deveriam preocupar com o atendimento material da comunidade. Mas, logo mais, nos mesmos Atos dos Apóstolos, deparamos com Filipe, um dos sete, sendo denominado “evangelizador”, enquanto prega a Palavra de Deus e cura doentes. Foi também este Filipe que explicou a Escritura ao Etíope, e o batizou. Numa de suas viagens a Jerusalém, Paulo e Lucas visitam a Filipe em Cesareia. A respeito desta visita, Lucas relata: “Entramos na casa de Filipe, o evangelizador, um dos sete, e ficamos com ele. Tinha ele quatro filhas virgens, que possuíam o dom da profecia” (At 21,8s).
Como se pode ver pelo caso de Filipe, o encargo dos sete escolhidos pela comunidade, para auxiliarem os apóstolos no atendimento material dos cristãos, rapidamente se ampliou para a pregação da Palavra e administração dos sacramentos. Isto nos mostra que a verdadeira obra evangelizadora da Igreja inicial sempre tomou em consideração este duplo aspecto: pregação da Palavra e atendimento material das comunidades. Para que esta dupla função pudesse ser atendida, os apóstolos pediram que as comunidades elegessem pessoas idôneas para auxiliá-los. Alguns destes escolhidos acompanhavam os apóstolos em suas viagens missionárias. Paulo tem como auxiliares: Barnabé, Silas, Marcos, Lucas, Timóteo, etc... Para a seleção dos acompanhantes e dos seguidores dos apóstolos na lide evangelizadora, olhava-se unicamente para a sua fé e a sua idoneidade. Não importava que fossem casados ou não. Isto aparece claramente na Primeira Carta aos Coríntios, onde Paulo se defende de acusações, dizendo que ele também teria direito de levar consigo uma mulher irmã na fé, portanto uma esposa, como os outros apóstolos, e os irmãos do Senhor e Cefas (cf. 1 Cor 9,3-6). Para Paulo, os “apóstolos” não são somente os Doze, mas também outros agentes de evangelização.
De acordo com o princípio de seleção dos evangelizadores, estabelecido pelos apóstolos, o bispo, por exemplo, deveria ser irrepreensível, “marido de uma única mulher, sóbrio, prudente, equilibrado, hospitaleiro, capacitado para ensinar; não dado ao vinho, nem violento, mas indulgente, pacífico, não interesseiro; sabendo governar bem sua casa, mantendo os filhos submissos e em perfeita honestidade...”(1 Tm 3,2ss). Quanto aos diáconos, era necessário que fossem homens dignos, não de duas palavras, nem dados ao vinho, nem ávidos de lucros ilícitos, que soubessem guardar o mistério da fé numa consciência pura. Somente quando irrepreensíveis eram admitidos ao diaconato. Deviam ser maridos de suas únicas esposas, e governar bem aos seus filhos e as próprias casas. As suas mulheres também deviam ser dignas: não maldizentes, mas sóbrias e fiéis em tudo (cf. 1 Tm 3,8ss).
Ainda poderíamos apontar mais características dos agentes de evangelização da Igreja apostólica e inicial, mas parece-me que já bastam estas para vermos qual foi o critério para a escolha dos evangelizadores nos primeiros tempos do cristianismo. Parece-me também que havia nesta escolha muito mais liberdade de espírito do que nós a temos hoje em dia. Eram pessoas da própria comunidade que recebiam a imposição das mãos para atendê-la, dirigi-la e explicar-lhe a Palavra de Deus, zelando pela justiça e pelo atendimento aos necessitados. Assim o evangelizador podia exercer a sua função amparado por toda a comunidade. E a obra evangelizadora, por isto mesmo, se tornou uma parte integrante da vida da Igreja. De acordo com o aumento e as necessidades da Igreja, criavam-se novas funções para propagar o Evangelho. Os pregadores peregrinos colocavam o fundamento da fé, fundavam comunidades e ali deixavam pastores para continuarem a obra iniciada. Combina-se assim a tarefa de conservar unida a Igreja já formada com a tarefa de conduzir “as outras ovelhas”, que ainda não pertenciam à Igreja, para junto do Senhor (cf. Jo 10,16).
Pelas considerações feitas, constatamos que certos problemas que afligem atualmente a Igreja, como, por exemplo, a falta de vocações e de evangelizadores, não afligiam tanto a Igreja inicial, pois ela tinha outro método de selecionar e aproveitar as forças disponíveis do que nós. Com isto explica-se também, ao menos em parte, o enorme crescimento da Igreja nos primeiros tempos de sua existência. Para nos conscientizarmos mais do dinamismo da Palavra de Deus nos primórdios do cristianismo, vejamos alguns resultados da primeira empresa evangelizadora da Igreja.
3. Resultados da primeira empresa evangelizadora da Igreja
Se observarmos a atividade evangelizadora da Igreja em seus inícios, ficamos atônitos. Encontramo-nos com uma Igreja que cresce ininterrupta e rapidamente. E não é mera questão de números. É uma Igreja que cresce em todas as direções. Para dentro, através de estruturas pastorais adequadas (ministérios, catecumenato, disciplina penitencial, etc...); para fora, mediante a superação do desafio que a cultura Greco-romana oferecia à fé. Este fenômeno da difusão do Evangelho, e do crescimento múltiplo da Igreja, não ocorreu, ao que parece, em circunstâncias sociais particularmente favoráveis. Algumas destas circunstâncias, como, por exemplo, a unidade do Império Romano, a língua popular do mundo grego, a koiné, talvez levem a crer que havia chegada “a plenitude dos tempos” (Gl 4,4); outros, porém, como as perseguições, o gnosticismo, as religiões mistéricas, fazem antes pensar que “a hora do poder das trevas” (Lc 22,53) estava no seu apogeu. Contudo, ante esta situação adversa, permanece realidade incontestável que a Igreja inicial tenha crescido rapidamente. Todos o dizem, pagãos e cristãos. Já na segunda metade do primeiro século este fenômeno começou a inquietar as autoridades. O autor do Apocalipse ainda não registrara a sua visão sobre a “imensa multidão que ninguém pode contar, de toda nação, tribo, povo e língua” (Apoc 7,9), e esta já se tornara realidade. Pagãos e cristãos falam indiferenciados da “ingente multidão” de cristãos. Assim Clemente de Roma (cf. Aos Coríntios 6); o historiador Tácito que, apesar de seu desprezo pelos cristãos, testemunha para todos os séculos o martírio de muitos sob o império de Nero (cf. Anales XV,44). Para Plínio, o Moço, tornara-se um problema ter que arrastar aos tribunais a “muitos de toda idade, de toda condição, de ambos os sexos”, por serem adeptos daquela superstição (cristã), que invadira não somente as cidades, mas também as aldeias e a campanha (1 ). São conhecidos também os inúmeros testemunhos de Tertuliano, que fala duma grande multidão de homens, varões e mulheres de toda idade, de toda classe social que se apresentavam para o martírio (2). E não se tratava apenas de uma difusão numérica ou geográfica do Evangelho. Ela é uma difusão que não conhece barreiras. Raças, classes sociais, profissões, culturas, religiões: tudo cede ante a força do Evangelho. Alguns, como o filósofo Celso, quiseram negar este fato inédito e desconcertante para o homem culto da época, dizendo que os cristãos eram arrebanhados entre “a gente mais inculta e rústica, que ante seus senhores e amos de casa... não se atreviam a abrir a boca” (3). Orígenes pôde facilmente refutar tal afirmação, mostrando que entre a multidão que abraçava a fé cristã também havia ricos e altas dignidades, mulheres delicadas e nobres, que admiravam os ministros da Palavra (4). O cristianismo, em seus inícios, nem parou de crescer ante as limitações que os próprios cristãos se impunham. Por exemplo, como harmonizar a grande difusão do Evangelho entre os soldados romanos com a determinação eclesiástica que proibia ao cristão o manejo das armas? Por ali já se comprova, de alguma forma, que a Palavra de Deus não se deixa amarrar (cf. 2 Tm 2,9).
Qual teria sido o segredo desta primeira empresa de evangelização, levada a efeito pela Igreja?
4. O segredo da primeira evangelização
Já me referi ao método de seleção dos primeiros evangelizadores. Além disto, foi fator decisivo do sucesso da primeira evangelização a própria mensagem cristã e o seu método de difusão. Este método brotou duma visão fundamental nova da realidade humana, à base da qual Jesus e os seus apóstolos operaram na práxis. A este estilo de apostolado se referem implicitamente todos os escritos do Novo Testamento quando, com insistência, mostram o Evangelho na sua relação com a turba, com a multidão, com o povo (óchlos, pléethos, Laós). O Evangelho é considerado uma força de Deus para a salvação de todos (cf. Rm 1,16). Este estilo era um novo modo de ser, de ver e de interpretar a relação de Deus para com os homens, e destes para com Deus e com os seus semelhantes.
Pode-se pensar, talvez, que tal método de agir “conforme a totalidade” e “para a totalidade” fosse uma atitude fácil de concretizar. No entanto, a implantação universal do Evangelho nem para todos foi evidente nos princípios do cristianismo. Inicialmente foi necessário romper com as barreiras entre o “Israel segundo a carne” (1 Cor 10,18) e o “Israel de Deus” ( Gl 6,16). O Apóstolo Paulo teve que sustentar uma dura batalha para desligar o cristianismo do judaísmo e, consequentemente, para libertá-lo da Lei Mosaica e de seus arcaísmos. Nesta batalha discutiu, inclusive, com Pedro, ao qual dirigiu uma severa admoestação por dissimular sua conduta com os gentios (cf. Gl 2,11-14). Paulo sempre esteve atento em distinguir entre os judaizantes e os verdadeiros filhos de Abraão. Chamou de falsos irmãos aos que queriam impor a circuncisão. Insistia que o resto da Lei se subordinasse à prática da caridade (cf. Gl 2,4; 5,6), pois os cristãos haviam entrado numa nova dimensão existencial: a dimensão do Espírito (cf. Gl 5,25). Por isto, onde o homem se havia renovado interiormente, e convertido numa nova criatura, de nada serviriam os sinais exteriores da Lei Mosaica. Pouco a pouco o cristianismo, de fato, conseguiu libertar-se do judaísmo. E esta libertação lhe assegurou uma dimensão universalista. Não se ligou a nenhum povo concreto, nem mesmo ao Israel, em cujo seio havia nascido e crescido Jesus de Nazaré. Paulo caíra na conta de que o cristianismo representava um avanço em relação ao judaísmo. Por isto, o rompimento com o judaísmo representou para ele o corte com práticas incompatíveis com a liberdade dos filhos de Deus.
Aqui cabe uma referência à situação religiosa do Brasil. De certa forma nos encontramos numa situação semelhante a de Paulo, pois em nosso país encontramos também ritos e práticas incompatíveis com a liberdade dos filhos de Deus. Por isto, penso, corresponderia a uma de nossas perspectivas evangelizadoras, a exemplo do Apóstolo Paulo, que rompeu com as amarras que falsificavam a verdadeira religiosidade dos homens, libertar o nosso povo de tais formas primitivas de expressão religiosa, utilizando-as, contudo, “como ocasião ou ponto de partida para o anúncio da fé” (5).
Foi mérito de Paulo ter-se voltado constantemente contra tendências sectarizantes dentro da Igreja. E o estilo universal e popular de evangelizar nunca foi uma colocação abstrata na boca de teóricos. A universalidade da mensagem evangélica afirmou-se, desde o início, mediante uma atitude muito sensível: o exercício da caridade concreta e universal. Desde cedo foi também a prática da caridade que distinguiu o estilo de evangelização dos hereges do método de evangelização dos cristãos ortodoxos. O bispo Inácio de Antioquia diz sobre os hereges: “A caridade não lhes interessa, pois não se preocupam com as viúvas, nem com os órfãos. Não lhes importa o atribulado, nem se preocupam com quem está encarcerado ou foi liberto, nem com quem está faminto ou sedento” (6). O impacto evangelizador do exercício de caridade sobre os pagãos foi grande. E tal exercício de caridade não conhecia limites, nem sequer religião. Num de seus escritos nos diz Tertuliano: “Que venha Júpiter, e não sairá de mãos vazias...” (7). Não havia também necessidades que fossem excluídas do atendimento por parte dos cristãos: viúvas, órfãos, débeis, pobres e desocupados, prisioneiros e condenados à prisão perpétua, moribundos, escravos, calamidades gerais, comunidades pobres, etc... Nem podia ser diferente, pois uma Igreja com um Evangelho para todos os homens, não podia deixar de interessar-se universalmente por todos os seres humanos. A práxis evangelizadora da Igreja inicial não foi, contudo, puro empirismo. Ela correspondeu a uma compreensão teológica da Igreja, que dimana do mistério total de Cristo, cujo ato redentor se estende a todos os homens. Neste mistério de Cristo se fundamenta a compreensão da Igreja como o Corpo de Cristo, cujos membros são todos solidários na tarefa de evangelização. É também neste mistério do Cristo total que se fundamenta o ministério que Cristo cumpre na Igreja e na humanidade através de seus discípulos, para levar o Evangelho aos homens. A consciência de que cada fiel integra ativamente a Igreja foi, desde a primeira hora, muito clara. E o segredo pastoral da tarefa de evangelização foi justamente a atitude ativa e a participação de todo o “povo de Deus” na ação evangelizadora. Para o Evangelho não existe massa amorfa. O povo não somente é objeto de evangelização, mas se torna sujeito e agente da mesma. Paulo, e também os demais apóstolos, submetiam as considerações comunitárias ao julgamento e consentimento de toda a comunidade. Este proceder, posteriormente, ainda se intensificou (8). Portanto, nada de decisões hierárquicas, centralizadoras, monopólio de uma casta clerical, à margem dos fiéis populares.
As considerações sobre a evangelização na Igreja inicial, acima feitas, nos mostraram que o princípio fundamental que orientava esta evangelização era a prática da caridade. A partir deste princípio evitavam-se as sectarizações. Dele emanavam também os novos cargos e as novas funções dentro da Igreja. Estes mesmos encargos eram ampliados de acordo com as necessidades da evangelização. Quando faltava alguém nalgum posto de serviço, os cristãos nos primeiros séculos até eram capazes de obrigar algum membro da comunidade a aceitar tal cargo, mesmo que isto implicasse, em alguns casos, na ordenação presbiteral. Tal aconteceu, por exemplo, com Alexandre de Jerusalém, com Cipriano em Cartago e com Ambrósio de Milão (9). Para nós parece um tanto estranho um método destes, mas, de certa forma, corresponde àquela ideia de Paulo de que a dedicação ao Evangelho exige a entrega da própria vida (cf. 1Tes 2,8-9).
A pastoral e a estratégia de evangelização da Igreja inicial fundamentaram-se na sabedoria do Novo Testamento, cuja lógica é a do raciocínio humano, iluminado pela fé. E esta lógica raciocina da seguinte forma: Porque Cristo derramou seu sangue por todos os homens, por isto a todos os homens enviou os seus apóstolos (cf. Jo 20,21; 17,18; Mt 28,18-20; Mc 16,15; At 1,8). A contemplação da imponente multidão humana, afastada de Deus, em vez de desencorajar, levou Jesus Cristo a instituir a missão dos apóstolos: “Elevai os vossos olhos e vede os campos que branqueiam para a colheita... eu os enviei a colher o que não plantastes” (cf. Jo 4,35-38). A insuficiência e a incapacidade dos ministros do Evangelho, levou Jesus a convidar os seus discípulos de todos os tempos a que pedissem número e capacidade do alto: “A messe é grande, mas os operários poucos. Pedi ao Senhor da messe que envie operários para a sua messe” (Lc 10,12).
As sentenças de Jesus, que acabo de citar, manifestam dois aspectos de toda evangelização. Por um lado, o que os pregadores do Evangelho colhem é fruto da graça de Deus. Por outro lado, Deus confia a pregação do Evangelho aos homens. A partir desta pregação, Deus espera que seu propósito de submeter todas as coisas à sabedoria de Cristo (cf. Ef 1,10) se possa cumprir no devido tempo. Jesus Cristo é o Senhor, que foi exaltado para que todo o universo se submeta a Ele (cf. Fil 2,9-11). A Igreja é a comunidade que aceita a Jesus Cristo como a seu Senhor. E esta aceitação é para ela, desde o seu início, o centro de seu culto, o fundamento de sua moral, e a sabedoria de sua evangelização. A partir dali, fica sendo fim primordial da evangelização levar os homens a Cristo. Ao Cristo mediado pela Palavra e pelo Espírito.
Na evangelização genuína comunica-se o Evangelho com o propósito de que os homens cheguem a um encontro pessoal com Jesus Cristo, o reconheçam como o Senhor da totalidade da vida, e unidos a Ele se integrem na intenção divina de criar uma nova humanidade, que manifeste sua glória. Esta intenção de criar uma nova humanidade se expressa no conteúdo e no método de evangelização de Jesus, dos apóstolos e de seus seguidores.
Vejamos, a seguir, alguns tópicos do método evangelizador de Jesus, e de seu significado para a nossa evangelização.
5. O método evangelizador de Jesus
Comparando a atividade de Jesus com a de João Batista, constatamos uma diferença essencial no modo de evangelizar de ambos. O Batista se retira para o deserto e, às margens do Rio Jordão, espera pelo povo. Jesus, ao contrário, não espera pelo povo. Ele vai para lá onde se encontram os homens. Dirige-se às pessoas simples, cuja vida conhece. Dirige-se aos pescadores, aos agricultores, e aos trabalhadores em geral. As imagens de suas comparações e parábolas Ele as assume de seu meio-ambiente. Apresenta-se como um pregador peregrino nas sinagogas, nas estradas e nos arredores do Lago de Genesaré. Dirige-se a todos os seres humanos. Não faz distinções, nem exclui aqueles que são tidos por impuros, ou foram relegados pela sociedade. Perdoa pecados às meretrizes e aos pecadores em geral. Quebra os tabus religiosos da época, provocando as iras dos sacerdotes do Templo e dos devotos de seu tempo. A novidade que uma tal atitude representava para os contemporâneos de Jesus pode-se auferir, de alguma forma, dum texto dos monges da seita de Qumran, cujo mosteiro central, no tempo de Jesus, se localizava às margens do Mar Morto, onde se diz: “ninguém que de alguma forma estiver afetado por uma impureza humana poderá aparecer na reunião de Deus. Ninguém que assim se encontrar poderá assumir cargo na comunidade. Ninguém que tiver um mal em sua carne, que for paralítico ou aleijado, nenhum cego, surdo ou mudo, ou alguém que tiver uma cicatriz visível em seu corpo, ou um homem velho que não se conseguir conservar em pé na comunidade reunida – poderá entrar para sentar-se entre os homens de nome, pois existem anjos santos na comunidade” ( I Q Sa 2,3-9).
Por este texto dos escritos da comunidade de Qumran, acima apresentado, vê-se quão radicalmente Jesus se distinguia do ideal religioso de sua época. Jesus não excluiu ninguém do Reino de Deus, nem exigiu que os seus seguidores se retirassem da sociedade humana defeituosa. Ele mesmo convivia com os pecadores, e se interessava pelos que sofriam de algum mal, ou estivessem oprimidos. E lá onde Jesus se encontrava com alguma pessoa, os sinais do Reino de Deus começavam a se manifestar, e as forças deste Reino se tornavam ativas. Quando olhamos para a vida pública de Jesus, assim como ela está descrita nos Evangelhos, constatamos que toda a sua mensagem se orienta para o ser humano. Busca libertá-lo, salvá-lo, arrancá-lo de suas próprias limitações e preconceitos. Através de sinais maravilhosos Jesus torna claro como Deus quer o ser humano: com saúde espiritual e corporal, alegre, com qualidades e possibilidades de viver solidariamente com seus semelhantes, para assim poder relacionar-se melhor com Deus, louvando-o e agradecendo-lhe as maravilhas da criação. O sentido dos sinais maravilhosos de Jesus é a libertação do homem, voltado unicamente sobre si mesmo, libertação do ambiente de pecado em que vive, da morte que o envolve. Nos feitos extraordinários de Jesus, relatados no Novo Testamento, o importante, propriamente, não são os acontecimentos maravilhosos que ali se referem, e sim a reação a favor ou contra Jesus. O fato maravilhoso é sempre a maravilha da fé. Esta fé, em contato com Jesus, é integrada na vida e se torna inabalável. Assim o ser humano entra vivencialmente em comunhão com Deus, adquirindo uma fé e uma confiança capaz de superar todos os perigos e catástrofes, pois no íntimo do ser a pessoa está convencida de que a vida com Deus perdurará também depois da morte. Mais especificamente em relação às curas de doenças e às expulsões de demônios, Jesus mostra a proximidade do Reino de Deus, prenunciando a vitória certa de Deus, em que a humanidade desfigurada novamente será restabelecida.
Transpondo para a nossa realidade o que Jesus queria com as curas e as expulsões de demônios, i.é, restituir a imagem de Deus ao ser humano desfigurado, verificamos que a intenção de Jesus é muito atual para a nossa evangelização. Jesus não se limitou a tratar as pessoas com métodos psiquiátricos um tanto superficiais. Não lhe interessavam, propriamente, as doenças em sentido médico, mas o fato de que o ser humano pode ser desfigurado através de doenças, de vícios, de ilusões coletivas, por opressões e pelas forças do mal, a ponto de perder a sua dignidade humana, destruindo a si mesmo e aos outros. Tal fixação em preconceitos e dominação por forças do mal, encontramos também hoje em dia. Por exemplo, nos conflitos e preconceitos raciais, nas guerras, nas corridas armamentistas, nas prisões injustamente efetuadas, no desprezo pelos direitos humanos, nas torturas, nos fanatismos religiosos, na concorrência sem limites na nossa sociedade tecnocrata e capitalista, na ganância pelo maior lucro possível, sem se tomar em consideração as verdadeiras necessidades do ser humano, na vida sexual desregrada, no uso de drogas alienantes e alucinógenas, nas tiranias e múltiplas formas de intolerância. No charlatanismo religioso. Destes e de muitos outros demônios, muito vivos entre nós, os cristãos de hoje, a exemplo de Jesus Cristo, são convidados a libertar a humanidade através do processo de evangelização. Somente corresponderemos ao método evangelizador de Jesus Cristo na medida em que também tentarmos expulsar tais demônios modernos, e curarmos as múltiplas doenças que afetam a humanidade atual desfigurada, pois só assim contribuiremos para que a vitória de Deus seja anunciada, e se torne um acontecimento e uma vivência aos nossos contemporâneos.
Jesus se volta também energicamente contra a situação social de seu tempo. Não é vontade de Deus que haja pobres e ricos. Mesmo que Ele diga: “Pobres sempre tereis entre vós...”, isto, contudo, não é um apelo a contribuirmos para que a miséria e a exploração continuem. Chama de benaventurados os pobres, e mostra quão difícil é aos ricos entrarem no Reino de Deus. De todos os que O pretendiam seguir, exige que se libertem das amarras da propriedade. Convida os seres humanos a que mudem a sua relação com Deus e entre si. Jesus supera em sua atividade os métodos e os ensinamentos até então válidos. O Deus que Ele chama de “Abba” é diferente do Deus dos fariseus. Os fariseus procuram servir a seu Deus pela observância meticulosa de prescrições. De acordo com esta compreensão, quem não observasse tais prescrições punha em perigo a sua fé em Deus. O Deus de Jesus Cristo é diferente. O relacionamento com ele não está apenas em perigo quando se discutem enunciados de fé, ou não se observam ritos litúrgicos ou outras prescrições, mas já, e antes de tudo, quando um único ser humano é desrespeitado em sua dignidade, não encontrando ninguém que por ele se engaje. O Deus de Jesus Cristo também não reina no longínquo além. Podemos encontrá-lo entre nós. Isto, porém, nunca sem os nossos coirmãos. Dali nasce uma nova dimensão de nossa caminhada para Deus, i.é, não podemos caminhar sozinhos, teremos também que levar nossos companheiros a Deus. Em outras palavras, todos os cristãos têm o encargo de evangelizar, mostrando pela palavra e pela ação que o nosso Deus é misericordioso, acessível, voltado para a humanidade; e que este Deus quer que o ser humano seja livre, capaz de modelar o mundo, e responsável por seus coirmãos.
Através do anúncio de que Deus venceu, de que seu Reino está por vir, Jesus proclama o fim do mundo injusto. Para entrar nesta nova realidade não basta, porém, reformar o culto e o templo, como os zelotas e os monges de Qumran pensavam. Em vista de seu Reino todas as instituições humanas se tornam relativas. Por isto, não basta a Jesus substituir uma instituição humana deficiente por outra. Ele exige uma atitude nova do ser humano, atitude que é expressa, de alguma forma, na seguinte frase: “Quando levares tua oferta ao altar e te lembrares que teu irmão tem queixa contra ti, abandona a oferta ante o altar e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão...” (Mt 5,23-24). Esta frase é muito mais revolucionária do que a atitude dos zelotas, pois inclui também a reconciliação com os inimigos, uma vida de justiça, de respeito e de amor para com toda a humanidade. Pois, se pratiquei uma injustiça terei que, primeiramente, procurar reconciliar-me com meu irmão, antes de dirigir-me a Deus.
Nos ensinamentos e na atitude de Jesus entre os homens manifestam-se, principalmente, dois aspectos importantes para nosso método evangelizador. Um, a comunicação da mensagem; outro, o atendimento material das pessoas. Jesus pregava, curava doentes e perdoava pecados; saciou a fome de seus ouvintes, compadeceu-se da multidão sem rumos. Os Evangelhos nos apresentam Jesus como um modelo a seguir. Se nós, por isto, em nossa evangelização, somente cuidarmos de pregar a palavra, sem atendermos para a solução dos problemas concretos daqueles a quem nos dirigimos, estaremos correspondendo apenas a um aspecto do método evangelizador de Jesus. E o povo irá buscar o que lhe falta, e que os cristãos não lhe oferecem, em outros lugares: junto a curandeiros e charlatães fantasiados em apóstolos e profetas milagreiros, em crendices múltiplas, e nas múltiplas seitas espalhadas pelo Brasil, onde se alimenta a magia, a enganação e uma religiosidade alienante da vida. Se os cristãos não contribuírem para a solução dos problemas sociais, de acordo com a mensagem do Evangelho, o povo irá um dia tentar a solução para eles em ideologias ateias, que prometem mais solidariedade humana do que os cristãos lhes sabem dar. Os seguidores de Cristo, já nos primeiros séculos de Igreja, entenderam muito bem isto. Entenderam como se devia cuidar dos doentes, não por sessões de “milagres”, mas construindo hospitais; não pela concorrência desenfreada, mas por gestos de solidariedade; não por guerras e intrigas, mas por gestos de paz, não pela enganação de ignorantes, mas pela criação de escolas e universidades...
A evangelização autêntica, por isto, não poderá restringir-se à mera pregação da Palavra. Ela exige também o engajamento a favor da humanidade, em todos os níveis em que a imagem e semelhança do ser humano para com Deus esteja sendo desfigurada. Verdadeira evangelização somente acontece onde a Palavra de Deus se transforma em acontecimento, em vivência. Em relação a isto, é interessante reparar que os apóstolos e a Igreja inicial souberam magistralmente, a exemplo de Jesus, transformar a Palavra que pregavam em acontecimento e em vivência para aqueles que a recebiam. Para consegui-lo, era necessário estar com os dois pés na terra, quando evangelizavam. Vejamos algumas indicações neste sentido.
6. A evangelização apostólica
Lucas narra nos dois primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos como nasceu a Igreja e sua ação evangelizadora. Primeiramente fala da Ascensão do Senhor, e diz: “À vista deles elevou-se ao céu; e veio uma nuvem que o escondeu a seus olhos. E enquanto Ele subia e eles estavam ainda olhando para o céu, apareceram junto dele dois homens vestidos de branco, que disseram: Homens da Galileia, por que estais a olhar para o alto? Este Jesus, que do meio de vós foi levado para o céu, virá da mesma forma que o vistes subir” (cf. At 1,9-12). E eles regressaram então a Jerusalém. Com este texto Lucas, implicitamente, nos mostra que uma religiosidade alienante, em que se fica contemplando o céu à espera de acontecimentos maravilhosas, alheios à realidade terrena, não corresponde à religiosidade cristã. Por isto, os anjos mandam que os apóstolos deixem de olhar para o céu e voltem à realidade da vida. Eles, de fato, voltam à Jerusalém. Para lá onde Jesus fora crucificado, onde se verificara a mais crua das realidades humanas, a crucifixão de Jesus. Ali organizam o seu apostolado, e esperam forças para iniciarem a sua obra evangelizadora. Não é no alto do monte, longe da sociedade humana, que Cristo os quer. Compreendendo este desejo de seu Mestre, os apóstolos, reunidos em Jerusalém, oravam e reconstituíram o quadro dos Doze, elegendo Matias como substituto de Judas. Em outras palavras, ali organizaram a estratégia de sua evangelização. E com a força do Espírito Santo lançaram-se de corpo e alma à empresa evangelizadora.
É uma das características de Lucas situar a obra da salvação na concreticidade da história e da vida. No seu Evangelho acentua que a Encarnação foi um evento, acontecido num determinado povo e num determinado momento histórico. Para expressar isto, situa histórica e geograficamente os acontecimentos referentes. Assim relata: “Houve no tempo de Herodes, rei da Judeia, um sacerdote chamado Zacarias...”(Lc 1,5); - “O anjo Gabriel foi enviado... para uma cidade da Galileia, chamada Nazaré...”(1,26); - “Naqueles dias apareceu um decreto de César Augusto, ordenando que se fizesse um recenseamento... quando Quirino era governador da Síria...”(2,1-2); - “No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judeia, Herodes governador da Galileia, seu irmão Filipe governador da Itureia e de Traconítide, Lisânias governador de Abilene, sob o pontificado de Anás e Caifás, a Palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias,no deserto” (3,1-2); - Pilatos, governador da Judeia, condenou Jesus à morte (cf. Lc 23,24-25).
A exemplo da obra redentora de Cristo, também a evangelização apostólica acontece, segundo Lucas, no meio da sociedade humana: “Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia, da Capadócia, do Ponto, da Ásia, da Frígia, da Panfília, do Egito, de parte da Líbia, perto de Cirene, bem como romanos, judeus e prosélitos, cretenses e árabes, todos ouvem proclamar as maravilhas de Deus” (cf. At 2,9-11). E qual o resultado desta evangelização? Isto nos diz Lucas nas seguintes palavras: “A multidão dos crentes tinha um só coração e uma só alma. Ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas tudo lhes era comum. Com muito vigor os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus... Não havia indigentes entre eles” (At 4,32-34). Interessante é reparar neste texto que o testemunho da Ressurreição está ali em relação direta com a vida da comunidade, como a dizer que tal testemunho produz fraternidade, e que os cristãos, através da vida comunitária, testemunham a ressurreição de Cristo. Como quer que seja, o certo é que o testemunho dos apóstolos é algo muito vivo. Não é apenas proposição abstrata de palavras ou de doutrinas. Tem repercussão imediata na vida de quem o aceita. Dali se pode concluir que a evangelização apostólica não se efetuou apenas no nível das ideias e das palavras. Aliás, em toda a história da Igreja, o cristianismo abstrato das ideias e das discussões sempre foi assunto de elites e minorias. O cristianismo do povo é vida prática. Restringe-se a poucos conhecimentos teóricos, mas possui vivências religiosas muito concretas. Com isto constatamos novamente que a obra evangelizadora deve transformar a mensagem divina numa vivência, num acontecimento vital para quem a recebe. Também o Apóstolo Paulo está preocupado para que os seus ensinamentos tenham consequências na vida de quem os aceita. No Areópago de Atenas, Paulo inicia sua pregação referindo-se ao “deus desconhecido” dos atenienses. Anuncia, assim, o Deus que os seus ouvintes já adoravam, mas desconheciam. Para descrever este Deus, e a sua manifestação à humanidade, o Apóstolo recorre a uma frase da literatura ambiental, dizendo: “Alguns de vossos poetas o disseram: somos também de sua estirpe”(cf. At 17,22ss).
Por suas cartas constata-se que o Apóstolo Paulo possuía um bom conhecimento das línguas, e das culturas grega e judaica, o que lhe permitiu transmitir adequadamente o Evangelho. Neste particular ele não foge ao normal dos escritores bíblicos, que revestem a Palavra de Deus com dados culturais e linguísticos de sua época. Os autores bíblicos, como homens de seu tempo, participantes da cultura de sua época, nem podiam agir diferentemente: usam ideias, imagens e palavras comuns ao contexto cultural em que viviam. Mas as usam para comunicar uma mensagem nova. Esta constatação não deixa de ser um exemplo para os evangelizadores de hoje. Além de possuir uma mensagem, a Sagrada Escritura nos ensina um método: conhecer a cultura do nosso tempo, usar palavras, expressões, imagens e temas que possuam força de comunicação atual. É verdade, existe neste método um risco, pois usar a linguagem do contexto ambiental para evangelizar poderia levar-nos a pregar a cultura contemporânea, ou a corrente filosófica da moda, em vez da mensagem divina. Isto, contudo, não impede que se estude a literatura e os elementos culturais em que se age, pois, quanto melhor se participa do ambiente cultural, tanto melhor se saberá compenetrá-lo e transformá-lo com elementos do Evangelho, manifestando, assim, que com Cristo, Deus libertou a humanidade, demonstrando a sua vitória sobre os elementos pagãos do mundo. Para que esta vitória de Deus se pudesse manifestar concretamente, Paulo fundou comunidades em toda parte onde evangelizava, e fez os membros destas comunidades participarem da propagação do Evangelho. Nestas comunidades a celebração da Ceia do Senhor era o lugar onde se manifestava de modo especial a vitória de Deus. Por isto, ela devia ser celebrada de modo que todos se sentissem irmãos. Além isto, Paulo quer que a própria vida do cristão se transforme num culto vivo a Deus. Que o cristão vivesse esta vitória de Deus no dia-a-dia de sua vida (cf. Rm 12,1s). A concretização desta realidade se manifestará na prática do amor fraterno. Por isto, o dom das línguas e da profecia somente terão valor se contribuírem para a edificação da comunidade. Se a religiosidade individual não contribuir para a edificação do todo, ela não tem sentido.
Olhando para este aspecto comunitário, proposto pelo Apóstolo Paulo, verifica-se que toda a evangelização tem por finalidade frutos comunitários, significativos para cada membro da comunidade. Isto se conseguirá fortificando os laços comunitários, através da prática da caridade e pela participação na Ceia do Senhor. Transparece também nas cartas de Paulo que não se pode separar a evangelização dos sinais da graça, pois ele manda batizar, impõe as mãos, celebra a Ceia. Neste sentido diz: “Anunciamos a morte do Senhor” cada vez que comemos o seu corpo e bebemos o seu sangue (cf. 1Cor 10,16; 11,26). Desta forma, também a liturgia faz parte da “educação cristã”. Contudo, a vida cristã não pode restringir-se a uma proclamação cúltica do Ressuscitado. Se fosse assim, o cristianismo não se teria distinguido essencialmente das religiões mistéricas da época. Porém, a autêntica existência cristã tem, para Paulo, como critério uma vida segundo a cruz de Jesus Cristo. O que o Apóstolo confirma com seu próprio exemplo de vida (cf. 2 Cor 6,4s; 11,23s; Gl 6,17). A partir desta perspectiva, Paulo desmascara um erro fundamental quanto à compreensão da ressurreição nas condições negativas do dia-a-dia. Pois, os coríntios pensavam somente poder corresponder à ressurreição, vivendo como se não vivessem mais neste mundo. Realidade que pensavam poder experimentar pela manifestação de seus dons espirituais (dom das línguas, profecias, êxtases, prodígios, etc...). Tal atitude mereceu uma repreensão enérgica de Paulo: viver o presente como ressuscitados é, para Paulo, viver o caminho da cruz, o caminho do serviço, da auto-entrega, imerso no mundo, naquilo que ele tem de mais humano, o serviço ao próximo, procurando assim superar o mal. Um tal seguimento se celebra, posteriormente, na liturgia, em manifestações de ação de graças. As práticas da vida cristã não podem ser substituídas por nenhum culto, nem pela união extática com o Senhor.
O primeiro serviço à humanidade é, para Paulo, a evangelização. Por isto diz: “Ai de mim se não evangelizar”. E, como não se pode excluir de nenhum serviço cristão os aspectos da cruz, esta cruz também aparece no trabalho da evangelização. Por isto, não se deveria estranhar que na ação evangelizadora se encontram forças que a procuram destruir. E nem se deveria estranhar se neste trabalho de evangelização, de vez em quando, alguém é preso, ou expulso de seu ambiente de trabalho. Pois, estas são facetas da cruz que acompanham uma autêntica evangelização.
Conclusão
Ainda poderíamos apontar mais características da evangelização na Sagrada Escritura, mas penso que as indicações que fiz, até agora, já são suficientes para detectarmos algumas linhas de orientação para a ação evangelizadora concreta. Resumindo em poucos pontos o que considerei, fica o seguinte:
- Evangelizar é proclamar a vitória de Javé. O sinal desta vitória é a presença do Evangelizador por excelência, Jesus Cristo, nosso libertador. O único capaz de transformar nossas vidas. Por isto,
- Evangelizar é transmitir a vida nova do Senhor Ressuscitado. Não se trata apenas da apresentação intelectual de alguém que morreu e ressuscitou pela libertação da humanidade.
- Evangelizar é muito mais do que isto: é um testemunho de vida. A Palavra de Deus não se compõe de conceitos racionais e religiosos vazios. A libertação, a caridade e a saúde espiritual, de que se fala, devem verificar-se realmente na convivência humana. É necessário que se experimente através da própria libertação, da prática da justiça e de nossa saúde espiritual, que Deus venceu em Jesus Cristo a batalha sobre os poderes do mal, afastando todos os tipos de escravidão. Por isto, a obra da evangelização não estará completa enquanto existirem desrespeitos à dignidade humana, imagem e semelhança de Deus; enquanto existir miséria desassistida, torturas e opressões.
A Palavra de Deus ensina que a tarefa dos evangelizadores é levar a mensagem da vitória de Javé, nosso Deus, a toda a humanidade, de modo que todos possam descobrir em suas vidas sinais de libertação e saúde espiritual. Pois,
- Evangelizar é transformar a Palavra de Deus em acontecimento, em vivência para todos, assim como Jesus Cristo e os seus seguidores o fizeram magistralmente no início do cristianismo.
- A ação evangelizadora é encargo de todos os cristãos. A todos compete manifestar com obras de caridade, de justiça e apostolado de que são “a luz do mundo e o sal da terra” (Mt 5,14). A palavra e a ação evangelizadora deveriam fazer “ferver” os corações, também dos cristãos de hoje, assim como ferveram os corações dos discípulos de Emaús, em contato com a Palavra do Senhor Ressuscitado, e, sobretudo, na fração do pão (cf. Lc 24,31-32). Isto é possível conseguir, pois em Jesus Cristo se cumpriu o que o Profeta Isaías havia predito (is 61,1s): “O Espírito do Senhor me ungiu para evangelizar os pobres, me enviou para proclamar a liberdade aos cativos...” Este Senhor Libertador é Jesus Cristo. Ele é o sinal da vitória de Deus, da qual todos são chamados a participar. Participarão dela na medida em que forem evangelizados.
Notas
1. Actas de los mártires. Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 1951, p 223-246.
2. Cf. Apol. 2,37; Ad Nat. 1,8; De Bapt. 5; De Corona, 12; De Fuga, 12; Adv. Judeos, 7; De Anima, 15.49.50.
3. Contra Celso, III, 54. Madrid, Ed. BAC, 1967, p 219.
4. Contra Celso, III, 9.
5. II Celam, 8,2.
6. Esmirnenses, 6,2.
7. Cf. Apol. 42,8.
8. Cf. S. Cipriano, Ep. 14,4.
9. Cf. Eus., Hist., VI-11; Pontio, ita 5; Ec 63,65.
Referências Biblográficas
1. MONS. M.P. CARVALHEIRA, P. GÉRARD DUPONT, P.A.CELSO QUEIROZ, etc., O Sínodo de 1974 – Evangelização no Mundo de Hoje. São Paulo, Loyola, 1974.
2. La Evangelización en el Mundo Contemporáneo. In: Revista Criterio, número extraordinário. Buenos Aires, 1974.
3. F. CALVELLI-ADORNO. Über die religiöse Sprache, Kritische Erfahrungen. Frankfurt, 1965
4. A. GRABNER-HAIDER. La Biblia y nuestro Lenguaje. Barcelona, 1975.
5. R. AVILA. Biblia y Liberación. Bogotá, 1973.
6. A Evangelizaçãodo homem encarcerado: Reflexões pastorais. Rio de Janeiro, Vozes, 1975.
Inácio Strieder é professor de filosofia e teologia – Recife/PE