Deus envia em missão [SERMO CXLV)

DEUS ENVIA EM MISSÃO

Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão

Sigam-me e eu farei de vocês pescadores de homens (Mc 1,17)

Um fato inconteste é que Deus, seja Javé o Pai (cf. Gn 12,1s), Jesus Cristo o Filho (cf. Mt 28,18ss), ou Paráclito o Espírito Santo (At 13,2s), sempre tem enviado pessoas em missão para trabalharem pelo plano divino. Deus tudo pode, mas ele sempre quer contar com o esforço, a disponibilidade e o talento do ser humano, que para essa tarefa se torna discípulo.

Por causa da economia da graça, inserida no plano de Deus, sabe-se que ele em geral não chama os capazes, mas capacita aqueles que vai chamar para sua obra. Ele não olha nossas limitações, mas nossa abertura de coração e nossos desejos de apostolado. Conforme mencionamos antes, há três vocações que sintetizam o desejo missionário de Deus:

Javé disse a Abrão: “Saia de sua terra, do meio de seus parentes e da casa de seu pai, e vá para a terra que eu lhe mostrarei. Eu farei de você um grande povo, e o abençoarei; tornarei famoso o seu nome, de modo que se torne uma bênção (Gn 12, 1s).

Começava a surgir aí um novo povo e uma nova raça a partir da descendência de Abraão e Sara, que se tornaria numerosa como as areias da praia e as estrelas do céu. Para isto, porém, fez-se necessária a concordância do casal em aderir ao plano traçado por Deus. Dessa geração nasceria Jesus, o Salvador.

Então Jesus se aproximou, e falou: “Toda a autoridade foi dada a mim no céu e sobre a terra. Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo o que ordenei a vocês” (Mt 28,18-20a).

Antes de subir aos céus, Jesus exara novos mandamentos, como evangelizar, batizar e ensinar. Em At 1,8 vemos o Mestre enviando todos os discípulos, como suas testemunhas, até os confins da terra.

Certo dia, eles estavam fazendo uma reunião litúrgica com jejum, e o Espírito Santo disse: “Separem para mim Barnabé e Saulo, a fim de fazerem o trabalho para o qual eu os chamei”. Então eles jejuaram e rezaram; depois impuseram as mãos sobre Barnabé e Saulo, e se despediram deles (At 13, 2s).

Aqui, nos primórdios da Igreja, é o Espírito Santo que seleciona e chama seus agentes para um trabalho missionário por ele estipulado. O Espírito fundou a Igreja, presidindo-a e dando-lhe suporte para a inquestionável tarefa de anunciar o evangelho em todo o mundo e a todas as pessoas. Igualmente, desde o Antigo Testamento, profetas e outras pessoas escolhidas foram chamadas por Deus e enviadas em favor da causa do Senhor junto ao povo:

Javé dirigiu a palavra a Elias: “Saia daqui e dirija-se para o oriente e esconda-se junto ao córrego de Carit, que fica a leste do Jordão” (1Rs 17,3).

Antes de formar você no ventre de sua mãe, eu o conheci; antes que você fosse dado à luz, eu o consagrei, para fazer de você profeta das nações (Jr 1,5).

Javé disse a Jeremias: “Não tenha medo (...) pois eu estou com você para protegê-lo oráculo de Javé; vejam, eu estou colocando minhas palavras em sua boca. Hoje eu estabeleço você sobre as nações e reinos (...) Quanto a você arregace as mangas, levante-se e diga a eles tudo o que eu mandar...” (Jr 1, 8ss.17).

Palavra de Javé dirigida a Jonas, filho de Amati: “Levante-se e vá a Nínive, a grande cidade e anuncie aí que a maldade dela chegou até mim...” (Jn 1,1s).

Nessa linha vocacional Jesus também foi designado pelo Pai e ungido pelo Espírito Santo para a missão de libertar, curar, salvar e congregar todos os que se definiram em seu favor.

Jesus foi à cidade de Nazaré, onde se havia criado. Conforme seu costume, no sábado entrou na sinagoga, e levantou-se para fazer a leitura. Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus encontrou a passagem onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,16-19).

Em outro momento Jesus chama, em nome do Deus Uno e Trino os discípulos de todos os tempos para a missão de anunciar o Reino:

Ao passar pela beira do mar da Galiléia, Jesus viu Simão e seu irmão André; estavam num barco, jogando a rede ao mar, pois eram pescadores. Jesus disse para eles: “Sigam-me, e eu farei vocês se tornarem pescadores de homens”. Eles imediatamente deixaram o barco na praia e seguiram a Jesus (Mc 1,16ss).

Deus sempre chamou os homens à vida, à libertação e ao trabalho. É salutar ter a sensibilidade para atender a esses chamados. Há os que não escutam os apelos do Mestre, e por causa disto não se libertam. Há um assunto, cujo paralelismo estudamos a seguir, que evidencia a importância de estar preparado para atender ao chamado de Deus:

Javé disse a Moisés: “Este mês será para vocês o principal, o primeiro mês do ano (...). Nessa noite, comerão a carne assada no fogo e acompanhada de pão sem fermento com ervas amargas. Vocês comerão a carne do cordeiro assada no fogo; devem comê-lo assim: com cintos na cintura, sandálias nos pés e cajado na mão; vocês o comerão às pressas, porque é a páscoa de Javé. Esse dia será para vocês um memorial, pois nele celebrarão uma festa de Javé. Vocês o celebrarão como um rito permanente, de geração em geração (Ex 12, 1.8s.14).

Pedro estava preso, vigiado na prisão, com duas correntes, e os guardas vigiavam a porta da prisão. De repente, apareceu o anjo do Senhor, que tocou seu ombro e lhe disse: “Levante-se depressa!”. As correntes caíram das mãos de Pedro. E o anjo continuou: “Aperte o cinto e calce as sandálias”. Pedro obedeceu, e o anjo lhe disse: “Ponha a capa e venha comigo”. Depois de passarem pela primeira e segunda guarda, chegaram ao portão de ferro que dava para a cidade. O portão se abriu sozinho. Eles saíram, entraram numa rua, e logo depois o anjo o deixou. e Pedro então saiu... (At 12,4-12).

Há nestes dois chamamentos o vigor das vocações de Deus, de onde se destacam algumas atitudes comuns a ambos os casos, indispensáveis ao discipulado e à caminhada: a) colocar-se de pé; b) rins cingidos; c) sandálias aos pés; d) vestir o manto; e) cajado na mão.

Moisés e Pedro são dois expoentes do projeto de Deus, cada um a seu tempo. O primeiro, na função de libertador do povo, na operação de resgate da escravidão do Egito, quando arrancou os hebreus das garras do imperialismo do faraó. O segundo, como alguém a quem ficou afeta a missão de coordenar a Igreja de Cristo que se iniciava após Pentecostes.

As mesmas coisas que o Senhor ordenou ao povo, antes de sair do Egito são praticamente os mesmos fatores recomendados pelo anjo a Pedro. O ato de colocar-se de pé, requerido aos dois, denota uma posição de disponibilidade, de em marcha. Igualmente, ter os rins cingidos revela uma atitude de prontidão. O povo do Oriente Médio tinha o cinto como um adereço estratégico. Ali pendurava uma bolsa com as moedas, um sabre ou punhal para a defesa e outras utilidades. Ninguém saia sem o cinto.

A sandália aos pés era igualmente um indicativo de prontidão, bem como uma proteção para a jornada. A sandália era o calçado do povo, empregado para resguardar os pés em qualquer atividade. O cajado na mão funcionava às vezes como uma arma, e era o distintivo do caminhante, especialmente quem, como o povo que ia para o deserto em busca da liberdade.

Enquanto o povo do êxodo tinha o cajado, Pedro usava um manto. Ambos significam proteção para quem vai dar início a uma caminhada: o povo pelo deserto, em direção à Terra Prometida; Pedro ia começar uma caminhada – que culminaria em Roma – pelas trilhas do evangelho, que precisava ser anunciado.

Uma amiga e companheira de caminhada me alertou sobre o fabuloso número de pessoas que trabalham, num legítimo voluntariado, em prol da causa do Reino de Deus. E brincou: “Notaste que Deus é o maior ‘empregador’ do mundo?”. É significativo o número de pessoas leigas, que se dedicam aos trabalhos eclesiais, como catequese, organização, eventos sociais e religiosos, administração paroquial, serviços e movimentos, assessoramento de cursos e encontros, além dos ministérios extraordinários, bem como serviços mais simples, porém relevantes e indispensáveis. Os leigos deveria ter mais espaço na Igreja.

Os leigos atuam na Igreja não por vocação, mas por con-vocação, uma vez que sua vocação específica e intransferível é a família, o mundo, as profissões, os direitos humanos e a comunicação. Aí eles devem perseverar e testemunhar de forma consciente e ativa seu ser-cristão. A convocação é posterior à vocação, e deve ser exercida sem prejuízo da primeira. Ou seja, não é lícito você ajudar na Igreja se isso prejudicar sua atividade familiar ou profissional. A carga do “Deus-empregador” é mais leve.

Enquanto os chefes deste mundo oprimem aqueles que para eles trabalham, pagando – na maioria das vezes – salários injustos, exigindo um número exagerado de horas trabalhadas, o Deus da Vida, mesmo sem pagar nada (pelo menos formalmente) alegra seus operários, pois os faz saber que trabalham para uma causa divina, para o próximo e para a amorização (um neologismo de Teilhard de Chardin) do mundo. Os leigos imbuídos de missões proféticas e pastorais se colocam a serviço do Reino em favor da causa dos pobres, dos oprimidos, dos que sofrem e dos que carecem do conforto da Palavra de Deus.

Quando a pessoa está cansada, nas diversas circunstâncias da vida, Jesus acolhe e alivia. Sua carga nunca é pesada demais. O nosso “Deus-patrão” conhece nossas limitações e potencialidades, por isto jamais dá tarefas além de nossa capacidade. Do mesmo modo, ele nunca vai fazer alguma coisa que nós poderíamos ter feito e não fizemos. O milagre existe, sim, mas jamais para suplementar nossa preguiça ou omissão. Ao contrário de tantos patrões que há por aí, Deus é justo, bondoso e reconhece nosso esforço.

Por último, a grande e inquietante questão levantada pela querida amiga: se todos esses “operários de Deus”, pelo mundo afora, cumprissem fielmente suas missões, se unissem e pensassem mais no outro do que em si próprios, não teríamos um mundo melhor, uma sociedade mais justa e famílias mais bem estruturadas? (Artigo “Os operários de Deus” que publiquei em maio de 2010 no portal Adital)

O chamado de Jesus aos apóstolos requer a observação de algumas exigências, pois sempre há alguns cuidados que não podem ser esquecidos para o sucesso e a eficácia da missão: um desses cuidados se refere ao compromisso. Para partir em missão a pessoa deve estar comprometida com a causa do Reino.

O Senhor escolheu outros setenta e dois discípulos, e os enviou dois a dois, na sua frente, para toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir. E lhes dizia: “A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso peçam ao dono da colheita que mande trabalhadores para a colheita. Vão! Estou enviando vocês como cordeiros para o meio de lobos. Não levem bolsa, nem sacola...” (Lc 10,1-4).

Às vezes, em determinados auditórios onde tenho falado, escuto a pergunta: “Quem é o dono da colheita?” Para responder a essa questão eu costumo elaborar outra questão. É salutar que fique claro o que se entende por uma colheita? O objeto da colheita são todas as almas da humanidade, o espírito dos filhos do Pai, pois todo o ser humano anseia pela salvação através daquela luz que vem de Deus. Esta é a missão!

Na terminologia lusitana que contemplava as antigas traduções das Bíblias brasileiras, surgia o verbete messe (a messe é grande e os ceifeiros são poucos, diziam) para caracterizar a busca que a Igreja, seus teólogos, ministros e evangelizadores empreendem nas searas do mundo em favor de todas as pessoas, separando-as e arrancando-as do joio e das ervas daninhas do pecado, do egoísmo e da discórdia que ameaçam a redenção e o abrigo aos celeiros do Pai.

Uma vez que conseguimos estabelecer um conceito que expresse adequadamente o que é colheita, por todos os argumentos recolhidos na definição, não é difícil identificar a Deus, Uno e Trino como o dono daquilo (ou daqueles) que vai ser colhido. É ele e só ele o dono da colheita; plantamos e colhemos para a glória do Pai. Colhemos para ele e não para nós. Como ensina São Paulo, Deus como o Senhor da messe, é ele que dá o crescimento das sementes que a evangelização plantou:

Eu plantei, Apolo regou, mas é Deus que dá o crescimento (1Cor 3,6).

Por tudo o que vimos aqui, torna-se manifesto que Deus envia em missão. Envia a todos nós, os batizados, na missão de anunciar o Reino dos céus. No grego, o verbo enviar aparece como apostelôo, de onde deriva a palavra apóstolo, que nada mais é que um enviado. Lemos nos evangelhos que Jesus chamou os doze à beira do lago, dando a eles o nome de apóstolos (cf. Lc 6,13). Mais tarde, a Igreja primitiva estendeu o título e a missão a todos comprometidos com a divulgação do evangelho. Em outra passagem Jesus recomenda aos seus enviados a prudência, a simplicidade, mas também a coragem diante dos obstáculos e as limitações.

Eis que eu envio vocês como ovelhas no meio de lobos. Portanto, sejam prudentes como as serpentes e simples como as pombas (Mt 10,16).

Em outro trecho, Jesus adverte contra a tentação de colocar a mão no arado e olhar para trás (cf. Lc 9,62). Tal idéia aponta para o ato de começar uma tarefa, sentir-se cansado, “desmotivado”, sem persistência a ponto de desistir da missão. Quem assim procede, adverte o Mestre, não é digno do Reino do céu. Atender ao chamado missionário de Deus resulta em felicidade e realização para o discípulo, mas sempre traz consigo algumas cruzes:

Então Jesus disse aos discípulos: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz, e me siga” (Mt 16,24).

Mesmo assim, o Mestre ensina que os fardos do mundo, que em geral são ilusórios, não trazem a felicidade verdadeira, são mais pesados e pouco somam aos projetos do ser humano.

Carreguem a minha carga e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas vidas. Porque a minha carga é suave e o meu fardo é leve (Mt 11,29s).

Jesus envia em missão, mas dá o rumo e oferece o indispensável consolo aos seus eleitos:

Venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso (Mt 11,28).

De fato, a missão seria das mais espinhosas, no campo da evangelização se os enviados não tivessem o apoio vigoroso do “dono da colheita!”, confortando-os, mostrando o caminho, iluminando as trilhas e curando as feridas da jornada. Nesse particular, os missionários de hoje, assim como aqueles do passado remoto, têm a promessa divina:

Se alguém me ama, guarda a minha palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos e faremos nele a nossa morada (Jo 14,23).

Pregação em uma novena numa paróquia de Porto Alegre em dezembro de 2010. O autor é exegeta e doutor em Teologia Moral.