A Comunhão dos Santos {SERMO CXLIV)
A COMUNHÃO DOS SANTOS
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
Creio na Comunhão dos Santos!
Um dos assuntos do qual os cristãos – especialmente os católicos – tem mais dúvidas e fazem mais perguntas é o que trata da “Comunhão dos Santos”. Às vezes esta questão é levantada nas Igrejas e as respostas nem sempre são satisfatórias e esclarecedoras. O que, afinal, é a Comunhão dos Santos? Como e quando ela ocorre? A Comunhão dos Santos é a união-comum que há entre Jesus Cristo, cabeça da Igreja, e seus membros, e destes entre si. Eu vou desenvolver o assunto a partir das tantas questões levantadas pelos nossos irmãos, cujo teor venho anotando a alguns anos,
Quem são os membros da Igreja? Os membros da Igreja são os santos do céu, as almas do purgatório e os fiéis da terra. É aquilo que antigamente se chamava, respectivamente de Igreja Triunfante, Igreja Padecente e Igreja Militante. Os que não estão fora da graça de Deus (em situação de pecado) participam da Comunhão dos Santos somente enquanto podem alcançar alguns benefícios do Senhor e principalmente a graça da conversão e do arrependimento. Vou falar mais sobre isso lá adiante.
Depois de professar a fé na “Santa Igreja Católica”, o Símbolo dos Apóstolos continua dizendo “Creio na Comunhão dos Santos”, artigo que, em certo modo, explícita o anterior: “O que é a Igreja, senão a assembléia dos santos?”, afirma um autor antigo. A Igreja é o Corpo de Cristo, no qual se integram os fiéis da terra, os que estão no purgatório e os santos do céu; e entre os três grupos existe uma comunhão de vida, igual àquela da família de cada membro que a compõe, comunhão de afeto e ajuda.
Esta comunhão de vida e de bens sobrenaturais, que intercomunica os membros da Igreja com a Cabeça, que é Cristo e entre si, é o que se chama de Comunhão dos Santos. Há muitas teorias e doutrinas a respeito. Vamos às idéias principais.
É pelo batismo que começamos a fazer parte do corpo da Igreja Ao receber o batismo nos incorporamos à Igreja, que é o Corpo Místico de Cristo; por isso se diz que, pelo batismo, começamos a fazer parte do Corpo de Cristo. Ao receber a graça do sacramento, nos unimos a Cristo, que é a Cabeça deste corpo, e começamos a ser membros vivos. Se perdermos a graça, nos separamos da Cabeça, e nos tornamos membros mortos. É como se uma mão, que está viva por estar unida ao corpo e à cabeça, se separa do corpo; a mão se corromperia, morreria e não serviria para nada. Em conseqüência, temos de nos esforçar por viver sempre em graça.
Num segundo conjunto de idéias vemos que cada membro da Igreja está unido aos demais membros. Sabemos muito bem que no corpo humano, quando o sangue limpo e bom chega a todos os membros, esse sangue faz com que os membros estejam vivos e se comuniquem uns com os outros.
No Corpo Místico de Cristo há algo que é como o sangue, e a graça e os dons que Deus nos dá estabelecem uma comunhão de vida sobrenatural dos membros com a Cabeça e dos membros entre si. Há uma ponderável circulação de dons, assim como a seiva se espalha por toda a árvore, da raiz aos galhos.
A “comunhão” preconiza a união entre os santos do céu, as almas do purgatório e os fiéis da terra. A Igreja é formada não só por nós que pelo batismo a ela pertencemos e estamos na terra (Igreja militante) mas também os santos que estão no céu (Igreja triunfante) e os que estão purificando sua alma no purgatório, antes de entrar no céu (Igreja padecente). Os três estados da única Igreja estão unidos porque a única Cabeça é Cristo e a vida que anima a todos é a graça.
Há uma comunicação de bens espirituais na Igreja. A vida do Corpo de Cristo, pois, é a graça, com tudo o que comporta a vida sobrenatural que os membros recebem da Cabeça, estabelecendo-se uma estreita relação da Cabeça com os membros e dos membros entre si. Cristo infunde seus dons – o sentido da fé e o impulso da caridade -, e os fiéis adoram e louvam; os bem aventurados do céu nos ajudam a nós que estamos na terra e aos que estão no purgatório, e nós invocamos a intercessão dos santos, que já estão no céu; os fiéis da terra nos ajudamos mutuamente e socorremos com sufrágios às almas do purgatório, que, por sua vez, intercedem também por nós.
Na Igreja sucede, pois, algo parecido a uma transfusão de sangue. A graça de Cristo, os méritos da Santíssima Virgem e dos santos ajudam-nos, como uma transfusão de sangue ajuda a vida do corpo. Assim, nossas orações e as boas obras são como o sangue bom que damos aos outros: a nossos pais e irmãos, aos amigos, aos demais homens e também às benditas almas do purgatório. E as boas obras dos outros membros da Igreja nos ajudam e fazem bem às nossas almas.
A partir dessa compreensão surge a questão: como viver a Comunhão dos Santos? A Comunhão dos Santos é uma realidade tão fecunda e consoladora, tão importante para a vida e a santidade da Igreja, que não podemos perder as oportunidades em vive-la, lutando por ser melhores e ajudar aos demais.
A melhor maneira de viver a Comunhão dos Santos é receber os sacramentos, já que pela graça que nos outorgam nos unimos, cada vez mais, a Deus que é o Santo por excelência. Outro modo é o de invocar a Santíssima Virgem e os santos, para que nos obtenham de Deus muitas graças.
Nós podemos ajudar a Igreja padecente oferecendo a Missa, trabalho e orações, pelas almas que estão no purgatório e desejam gozar o quanto antes de Deus, no céu. E da mesma maneira podemos ajudar a Igreja militante – aos cristãos que estão lutando ainda na terra -, oferecendo coisas durante o dia para que Deus lhes ajude. Para fazer jus aos bens espirituais, entre eles o céu, temos que estabelecer alguns “propósitos de vida cristã”:
• Um modo de viver a Comunhão dos Santos é encomendar na
Missa às benditas almas do Purgatório.
• Quando um cristão se esforça por portar-se coerentemente,
ajuda aos demais membros da Igreja. Esta responsabilidade
deve animar-nos a viver cada dia melhor a própria vida
cristã.
Muita gente pergunta como é o céu. Jesus prometeu o céu a quem o amasse. Ora, ele não iria acenar com algo que não fosse bom para nós. Às vezes estas questões apontam, quem sabe, para uma fé incipiente ou meio vacilante. Sobre o tema céu, São Paulo vem em nossa ajuda com um texto extremamente valioso e revelador:
O que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, foi isto que Deus preparou para aqueles que o amam. Deus revelou isto a nós pelo Espírito Santo (1Cor 2,9).
Como já foi dito, as pessoas sempre tiveram uma grande curiosidade de saber como é o céu. Nos retiros que tenho pregado por esse Brasil afora, esta é uma questão que surge amiúde. Pela dificuldade dessa compreensão, criam imagens, fantasias, e teorias, na busca de racionalizar o sobrenatural. O pior é que essas especulações, sem visão nem bases reais, derivam, não-raro, para superstições, crendices e perigosos escapes.
A escatologia ensina que o céu tem início quando o homem decide aceitar o perdão que Deus quer lhe dar. A vida eterna, que começa na morte, longe de um castigo ou um estigma, é um dom de Deus. Na morte o ser humano ressuscita, tornando-se “vivo com Deus”, com seu eu-pessoal dotado de liberdade e cognição.
Ao contrário das teorias mais tradicionais, o céu, como plenitude, não ocorre num remoto “fim dos tempos”, mas instaura-se a partir do fim do nosso tempo, do tempo da nossa vida. O homem chega a essa plenitude em sua dimensão completa: espiritual e corporal; corpo e alma; soma e psyké.
Quando oramos “creio da Comunhão dos Santos...” estamos dizendo que, entre tantos dons, recebemos de Deus a capacidade de ter fé em suas promessas de uma vida que não se acaba, mas apenas é modificada, transformada. Nossos queridos não foram tomados de nós. Em Deus, no reino, eles são irreversivelmente nossos, mais do que nunca. Comunhão dos Santos é a Igreja articulada sob a graça libertadora de Cristo.
Nas figuras da “videira” (cf. Jo 15, 1-6) e do “corpo místico” (cf. Ef 4, 16; Cl 1, 18) podemos ver a Comunhão dos Santos, no qual Cristo é o tronco (ou a cabeça) no qual nos enxertamos. A Bíblia nos revela essa “comunhão” em quatro níveis: a) O Deus trinitário; b) A Virgem Maria e os santos; c) Os mortos; d) Os vivos;
Nesses níveis, somos membros uns dos outros (cf. Rm 12, 5), na Igreja, articulada em fé e esperança e, sobretudo no amor. O gesto de estender a mão, simbólica ou concretamente, dentro dos atos de liturgia e solidariedade, na comunidade cristã, evidencia a fé nessa comunhão (cf. Gl 2, 9b; CIC 958).
Embora a Reforma Protestante negue a mediação que ocorre na Comunhão dos Santos, a índole escatológica da Igreja peregrina nos revela uma comunhão com a Igreja que está nos céus. A morte não rompe, mas reaviva ainda mais essa união.
A Igreja terrena já experimenta, pela graça e pela esperança, as primícias da ressurreição que vai acontecer na morte. Pela oração e pela eucaristia, fazemos circular a seiva desse corpo místico em comunhão, que nos abre a possibilidade de comunicação, em Cristo, com pessoas queridas, já falecidas, fazendo com que esperemos um encontro na glória eterna (GS 18). A fé na “Comunhão dos Santos” que professamos no Credo, dá o verdadeiro sentido cristão à morte.
Na morte, não há um fim, mas um começo. O começo biológico foi uma aventura: a criança precisava se criar, com cuidados alimentares e médicos, até uma idade em que cessassem os perigos. Na morte o homem está maduro e, o mais importante, tem Jesus a acompanhá-lo. A parusia que se dá na morte, torna-se uma constante pela eternidade.
A expressão bíblica “último dia”, tem diversos significados. Embora as teorias mais tradicionais imaginem esse “último dia” como o dia final do mundo, que precede sua destruição, hoje as novas correntes da exegese e da escatologia são tentadas a imaginá-lo apenas como o dia em que a vida física individual é transformada em vida em abundância.
É importante orar pela pessoa completa e não só por sua alma. Vamos ressuscitar com o corpo e a alma (cf. 1Cor 15). Deus sempre saberá o que fazer com nossas orações. Se não por essa, quem sabe por outra pessoa. A solidariedade recíproca de vivos e mortos retrata bem o mistério da “Comunhão dos Santos”.
A morte é um evento de de-cisão porque vai estabelecer algumas cisões em certas circunstâncias de nossa vida (ruptura com antivalores, pecados, vícios, vontade própria, intransigência, etc.) na morte. Há uma ruptura com aquilo que nos afastou, em vida, do projeto de Deus. É um momento de cognição (conheceremos todas as nossas deficiências) e de de-cisão (a decisão é agora).
Desde que fizemos a experiência de Deus em nossa vida, desde que descobrimos Cristo como aquele que dá sentido à nossa caminhada, o que mudou em nós? Que modificações se pode sentir em nosso modo de pensar, falar, relacionar-se com os outros? Que renúncia tivemos que fazer? Podemos afirmar que onde está nosso tesouro lá também está nosso coração?
É sabido que Deus dá a todos, por amor, oportunidades iguais. Há os chamados desde o princípio; há os sensibilizados à última hora. Todos são bem-vindos; todos amados... Há os que se escondem atrás de desculpas. No Reino de Deus ninguém é marginalizado. Todos têm o direito de participar daquilo que o Senhor quer dar.
Ali não há lugar para ciúme nem para excessiva auto-valorização. Ser últimos ou primeiros depende mais da justiça do amor do que de lugar ou posição.
Aos que julgam possuir mais méritos que os outros, julgando-se mais santos ou convertidos, é bom esclarecer que a faculdade de usufruir o Reino dos Céus é totalmente gratuita. Lá, como na casa do pai “rico em misericórdia”, tem lugar igual para o filho que nunca saiu, como para aquele que se evadiu, errou e quis voltar. Compreender isso é entender a essência da misericórdia de Deus.
O mistério da “Comunhão dos Santos” iguala a todos no mistério da unidade e da santidade para o qual fomos chamados. Não existem santos de primeira ou segunda classe. Todos somos convidados à perfeição igual a do Pai que é santo e perfeito. A Igreja é um corpo, cuja cabeça é Jesus Cristo.
Ora, um corpo não pode subsistir sem que haja união entre seus membros, bem como entre os membros e a cabeça. Por “santos”, aqui, entende-se todos os membros da Igreja, e não os santos canonizados, elevados à glória dos altares.
Todos os membros da Igreja são “santos” no sentido de que estão unidos a Jesus Cristo, que é a própria santidade. É nesse sentido que São Paulo chama de santos os destinatários de suas epístolas: Vocatis sanctis, e São Pedro chama a todo o povo cristão de “uma nação santa”.
É possível se dar esse título aos membros da Igreja militante – os que estão vivos – em razão de seu chamado à santidade, e porque receberam pelo batismo um caráter de santidade. O efeito da Comunhão dos Santos é tornar os bens espirituais da Igreja comuns a todos os membros que a compõem.
A Sagrada Escritura em diversas passagens usa a figura do corpo para representar a Comunhão dos Santos. No corpo existem muitos membros, embora constituam um só corpo; cada qual exerce função diferente e tem dignidade desigual; todos trabalham não para seu próprio interesse apenas, mas tendo em vista o interesse de todo o corpo (por exemplo, o olho vê, o ouvido escuta, a mão trabalha, não para si mesmos, mas para todo o corpo); a união entre eles é tão grande que, se um sofre alguma dor, todo o corpo sofre; a cura de um afeta a todos. Assim, na Igreja, há diversidade de povos, de funções, de dignidades, mas há um só corpo.
O pecado de um afeta a todo o corpo, assim como o mérito. Somos como vasos comunicantes: quando um se enche, todos se enchem; quando um é esvaziado, todos perdem conteúdo. A Comunhão dos Santos faz com que cada graça que Deus concede a um determinado membro da Igreja seja patrimônio de todos os fiéis.
Se, numa sociedade, alguns de seus membros se tornam religiosos, ou se santificam, isso redundará em bem para todos os membros da sociedade, e deverá alegrar portanto a todos.
Ensina São Gregório Magno que Deus opera nos corações dos homens da mesma forma que opera nas diversas regiões da terra. Ele poderia ter dado todos os frutos a todos os países, com igualdade. Porém não quis que assim fosse, pois se cada região não tivesse necessidade das outras, não teria com elas nenhuma relação.
Eis porque deu a uma a abundância do vinho, a outra do óleo, a outra rebanhos etc. Enquanto umas vão procurar o que as outras produzem, os povos entram em comunicação entre si. Assim também na Igreja, o que é dado a uns beneficia os outros.
Os bens espirituais, ao contrário dos materiais, comunicam-se sem divisão nem diminuição; pelo contrário, eles aumentam na medida em que se comunicam, como a chama de uma vela se comunica a outra, sem nada perder de si mesma. Assim são os méritos de Cristo, que morreu por todos os homens. Da mesma forma que a luz do sol ilumina a todos, sem que a vantagem que tira dela um diminua a do outro, assim também os méritos de Cristo se aplicam a todos.
O dogma da Comunhão dos Santos, entretanto, não significa que uma boa obra aproveita da mesma forma, no mesmo grau, àquele que a faz como àquele que não a faz. Em toda obra há um mérito pessoal que é o maior, e somente pode pertencer a quem a faz. É por causa da Comunhão dos Santos que podemos rezar e nos sacrificar pelos outros, pedindo a Deus que aplique nossos méritos a determinada pessoa.
E os que se encontram em estado de pecado mortal? São como membros mortos da Igreja, por pertencerem a seu corpo, mas não a sua alma. Estão privados da graça e mortos espiritualmente. Sua participação na Comunhão dos Santos limita-se à possibilidade de retornar à vida, possibilidade que não existiria se esses membros estivessem separados do corpo.
Como um membro paralisado não tem parte nos bens do corpo, assim também eles não participam dos bens espirituais da Igreja. Todavia, por estar unido ao corpo, o membro pode voltar a ter vida. Assim também, o pecador pode voltar a ter a graça santificante. Sua participação na Comunhão dos Santos é, portanto, puramente passiva. Eles em nada concorrem para o aumento dos bens da Igreja, enquanto não retornam à graça de Deus.
Os católicos em estado de graça participam da Comunhão dos Santos, mas de forma desigual, de acordo com suas obras e disposições: quem tem maior amor de Deus acrescenta mais com suas obras boas e ações ao tesouro da Igreja, bem como melhor participa dele. Portanto, seria errado dizer que devemos nos contentar em estar em estado de graça, não sendo necessário buscar a perfeição, pois simplesmente o estado de graça nos alcança todo o bem espiritual da Igreja. A Comunhão dos Santos não se destina a favorecer nossa preguiça, mas a compensar nossa fraqueza.
É preciso, portanto cultivar a tripla Comunhão dos Santos, com a Igreja triunfante (honrando os santos do céu), com a Igreja padecente (rezando pelas almas do Purgatório, para que também elas rezem por nós quando ali estivermos), e pela Igreja militante, rezando uns pelos outros.
Quando oramos “creio da Comunhão dos Santos...” estamos dizendo que, entre tantos dons, recebemos de Deus a capacidade de ter fé em suas promessas de uma vida que não se acaba, mas apenas é modificada, transformada. Nossos queridos não foram tomados de nós. Em Deus, no reino, eles são irreversivelmente nossos, mais do que nunca.
O gesto de se dar as mãos, simbólica ou concretamente, dentro dos atos de liturgia e solidariedade, na comunidade cristã, evidencia a fé nessa comunhão (cf. Gl 2, 9b. CIC 958). Embora os reformistas neguem a mediação que ocorre na Comunhão dos Santos, a índole escatológica da Igreja peregrina nos revela uma comunhão com a Igreja que está nos céus. A morte não rompe, mas reaviva ainda mais essa união. A Igreja terrena já experimenta, pela graça e pela esperança, as primícias da ressurreição que vai acontecer na morte.
Pela oração e pela eucaristia, fazemos circular a seiva desse corpo místico em comunhão, que nos abre a possibilidade de comunicação, em Cristo, com pessoas queridas, já falecidas, fazendo com que esperemos um encontro na glória eterna (cf. GS 18). A fé na “Comunhão dos Santos” que professamos no Credo, dá o verdadeiro sentido cristão à morte.
Na morte, não há um fim, mas um começo. O começo biológico foi uma aventura, já dissemos: a criança precisava se criar, com cuidados alimentares e médicos, até uma idade em que cessassem os perigos. Na morte o homem está maduro: pronto para ser recolhido, qual um grão de trigo, para o celeiro do Senhor.
Morrer no Senhor é morrer na paz dos que sabem que a vida continua no Infinito. Vive-se e morre-se com a Igreja, com a família e com a comunidade. Deus nos torna co-responsáveis pela morte cristã, uns dos outros. Às vezes, na hora da morte, gritos e imprecações dos familiares prejudicam a paz da passagem. A dor da perda precisa ser compensada pela compreensão e vivência profunda do mistério da Comunhão dos Santos. O grande serviço da caridade da caridade está em ajudar o cristão a estabelecer essa passagem em paz.
A Igreja, cônscia da projeção ao infinito do ser humano, celebra, nas exéquias de seus filhos, com fé e confiança, o mistério pascal de Cristo “... para que aqueles que pelo batismo se tornam membros do próprio corpo de Cristo morto e ressuscitado, com ele passem pela morte, à vida.
Por isso, a Igreja oferece pelos defuntos o sacrifício eucarístico da Páscoa de Cristo e dirige orações e sufrágios por eles, para que, ao comunicarem todos os membros de Cristo entre si, a uns seja dado o auxílio espiritual e a outro seja oferecido o consolo da esperança”.
A cruz e a páscoa são juízos que se tornam afins e permanentes nesses momentos. A capacidade da teologia é falar, justamente de morte e de cruz, sem banalizar e sem criar o terror das coisas irreversíveis. Na cruz e na morte há muito de vida...
É importante rezar pela pessoa completa e não só por sua alma. Deus sempre saberá o que fazer com nossas orações. Se não por essa, quem sabe por outra pessoa. A solidariedade recíproca de vivos e mortos retrata bem o mistério da “Comunhão dos Santos”. É evento de de-cisão porque vai estabelecer algumas cisões em certas circunstâncias de nossa vida (ruptura com antivalores, pecados, vícios, vontade própria, intransigência, etc.) na morte.
Há uma ruptura com aquilo que nos afastou, em vida, do projeto de Deus. É um momento de cognição (conheceremos todas as nossas deficiências) e de de-cisão (a decisão é agora).
O Concílio Vaticano II afirma que “os já glorificados contemplam claramente o próprio Deus, Uno e Trino, tal como ele é” (LG 49). Nesse aspecto ressalta-se a chamada “Comunhão dos Santos”: “Todos, vivos e mortos, os que são de Cristo, tendo o seu Espírito, formam uma só Igreja, onde comungam na mesma caridade para com Deus e para com o próximo” (cf. Ef 4,16). A união entre vivos e mortos não se interrompe.
Desde que fizemos a experiência de Deus em nossa vida, desde que descobrimos Cristo como aquele que dá sentido à nossa caminhada, o que mudou em nós? Que modificações se pode sentir em nosso modo de pensar, falar, relacionar-se com os outros? Que renúncia tivemos que fazer? Podemos afirmar que onde está nosso tesouro lá também está nosso coração?
Com relação à "comunhão dos santos", a parábola dos "trabalhadores da vinha" (cf. Mt 20, 1-16) nos manifesta que a recompensa de Deus é gratuita, e que toda a salvação é dom, isto é, fruto de sua misericórdia. Mais do que isso, ela nos ensina que o que realmente conta é a intensidade de nosso compromisso cristão e não sua duração. E revela-nos também que o trabalho a serviço do Senhor é em si mesmo uma graça e uma recompensa.
No mundo há um paradoxo entre a justiça de Deus e a dos homens. O empregador humano visa sempre seu interesse. Deus quando vocaciona o homem para trabalhar em sua vinha, está começando a salvá-lo. Enxergar, julgar e decidir as coisas, como fizeram os trabalhadores na parábola, usando critérios econômicos, sociais ou culturais, certamente não é o correto.
A Comunhão dos Santos, como o próprio nome sugere, nos passa uma idéia de ligação. Essa ligação inexplicável que se capta entre as pessoas é reconhecida no “Credo”, que os católicos recitam todos os domingos na Missa, plasmada na expressão “Comunhão dos Santos”, como uma das verdades reveladas por Cristo e verbalizada por Paulo nos seguintes termos, ao falar do “Corpo Místico de Cristo”, ou seja, da união invisível e, por isso, misteriosa, que existe entre Cristo e todos os cristãos:
Como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo. Em um só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres, homens e mulheres; e todos fomos impregnados do mesmo Espírito.
Assim o corpo não consiste em um só membro, mas em muitos. (...) Se um membro sofre, todos os membros padecem com ele; e se um membro é tratado com carinho, todos os outros se congratulam por ele. Ora, vocês são o corpo de Cristo e cada um, de sua parte, é um dos seus membros. (1Cor 12, 12-27).
Santo Tomás de Aquino fala de forma concisa dessa realidade sobrenatural: “Uma vez que todos os crentes formam um só corpo, o bem de uns é comunicado aos outros” (“Expositio in Symbolum Apostolicum”, 10).
Não é uma realidade meramente natural, uma vez que o fundamento está na união espiritual de todos os cristãos-membros com Cristo-Cabeça, por quem nos vêm todas as graças, ou seja, as ajudas espirituais que iluminam a inteligência e movem a vontade para a prática do bem. O Catecismo da Igreja Católica resume essa verdade da fé nos seguintes termos:
Cremos na comunhão de todos os fiéis de Cristo, dos que são peregrinos na terra, dos defuntos que estão terminando a sua purificação, dos bem-aventurados do céu, formando todos juntos uma só Igreja, e cremos que nesta comunhão o amor misericordioso de Deus e dos seus santos está à escuta das nossas orações (n. 962).
Portanto, a realidade da “Comunhão dos Santos” é mais ampla do que se possa imaginar: abarca a Igreja Militante (os que ainda peregrinam pela Terra em busca de sua salvação), a Igreja Padecente (das almas que se encontram purificando no Purgatório) e a Igreja Triunfante (dos santos que já se encontram gozando da visão de Deus no Paraíso).
La visión de Dios hará que el hombre se conozca mejor a sí mismo no sólo en su dimensión individual y particular, sino en cuanto unión con los demás a través de la comunión” (Blanca Castilla y Cortázar, in “Comunión de Personas y Dualidad Varón-Mujer”).
Ou seja, a relação de cada um com a cabeça – Deus Pai Criador –, de verdadeira filiação, estabelece um laço de fraternidade não meramente retórica, mas palpavelmente sentida. Ora, essa comunhão significa, fundamentalmente, um laço espiritual entre todos os cristãos em particular e entre todos os homens em geral, pela qual as orações e sacrifícios de uns lucram misteriosamente para todos aqueles para quem eles são dirigidos.
Ou seja, mesmo isolado, o cristão sabe que conta com o apoio, as orações e os sacrifícios de todos os seus irmãos na fé, que lhe aumenta a graça santificante e o fortalece na refrega.
A idéia central da “Comunhão dos Santos” é a de que, na luta cósmica entre o Bem e o Mal, que se plasma na luta interior que cada um trava consigo mesmo para viver de acordo com a dignidade humana, nunca estamos sozinhos, mesmo que, fisicamente, possamos estar isolados.
Há uma relação misteriosa entre todos os seres, pela qual a vitória de um no caminho do Bem é um pouquinho a vitória de todos. É sabido que Deus dá a todos, por amor, oportunidades iguais. Há os chamados desde o princípio; há os sensibilizados à última hora. Todos são bem-vindos; todos amados...
Há os que se escondem atrás de desculpas. No Reino de Deus ninguém é marginalizado. Todos têm o direito de participar daquilo que o Senhor quer dar. Ali não há lugar para ciúme nem para excessiva auto-valorização. Ser últimos ou primeiros depende mais da justiça do amor do que de lugar ou posição.
Aos que julgam possuir mais méritos que os outros, julgando-se mais santos ou convertidos, é bom esclarecer que a faculdade de usufruir o Reino dos Céus é totalmente gratuita. Lá, como na casa do pai "rico em misericórdia", tem lugar igual para o filho que nunca saiu, como para aquele que se evadiu, errou e quis voltar. Compreender isso é entender a essência da misericórdia de Deus.
O mistério da "comunhão dos santos" iguala a todos no mistério da santidade para o qual fomos chamados. Não existem santos de primeira ou segunda classe. Todos somos convidados à perfeição igual a do Pai que é santo e perfeito.
Meditação realizada em um retiro de espiritualidade para padres em Belém do Pará, em 2007. O autor é Mestre em Escatologia e Doutor em Teologia Moral.