A Biblioteca do Ateu Esclarecido

Há pessoas que se dizem religiosas e capazes de fornecer “a resposta correta” sobre o divino e o sagrado, mas que de fato ocultam uma profunda ignorância sobre o assunto. Quando parecem convincentes – e algumas vezes assim o são! – é pelo desconhecimento de seus interlocutores, gente que, em sua maioria, diante de argumentos teológicos mirabolantes, prefere professar indiferença ou mesmo ateísmo pragmático (aqui, entenda-se por “não esclarecido”), assumido ou nem tanto.

Entretanto, quando alguém se proclama ateu mas não tem buscado de verdade uma resposta para as questões ontológicas (isto é, acerca da existência de deus, da essência divina e de seus atributos), essa pessoa comete um autêntico “pecado original”: pode até chegar à conclusão derradeira, admitamos, porém sem ter passado pela análise das premissas, o que ao fim e ao cabo invalida o processo como um todo.

É por esse motivo que resolvemos escrever o presente artigo, e nele apresentar sugestões de leituras que certamente darão um respaldo adequado aos que já percebem a falácia dos argumentos teológicos mas ainda não adquiriram conhecimento suficiente para enfrentar a “fera” do fundamentalismo religioso. Forneceremos, por conseguinte, farto “alimento para reflexão”.

Naturalmente, as indicações resultam de intenso estudo e longas pesquisas, muitas delas em meio acadêmico. Nesse espaço “laico”, por assim dizer, optamos por privilegiar as obras que não apresentam grande dificuldade de leitura. Garantimos que não haverá, porém, grandes prejuízos, pois os autores aqui referenciados abordam o tema de maneira aprofundada, clara, argumentativa e documental: será difícil não aceitar a avalanche de evidências.

A seguir, enumeraremos as obras, e faremos breves comentários:

1. RICHARD DAWKINS. Sugerimos ler “Deus, um Delírio” (Companhia das Letras). O autor é zoólogo de cátedra e evolucionista, mas teve que estudar muita filosofia e teologia para completar sua formação. As explicações têm um caráter geralmente científico. As refutações ao “mundo espiritual” são consistentes. Impossível deixar de ler o capítulo sobre o “culto à carga”, que mostra diversos exemplos de surgimento de crenças “messiânicas” na modernidade, principalmente em ilhas da Polinésia, onde jamais se ouviu falar de cristianismo. Conforme resumiu o autor, “o estudo sistemático dessas semelhanças pode nos dizer alguma coisa sobre a psicologia humana e sua suscetibilidade à religião” (p. 272). Há muitas outras obras de Dawkins, geralmente interessantes, ele que é considerado entre os mais destacados membros do ateísmo militante. A quem dispor de fôlego e pendor para as ciências biológicas, recomendamos enfrentar o mastodôntico “A Grande História da Evolução”.

2. BART D. EHRMAN. “O que Jesus Disse? O que Jesus não Disse? Quem Mudou a Bíblia e Por quê?” (Editorial Prestígio). O autor é atualmente considerado a maior autoridade em Bíblia do mundo. Estudou nas melhores escolas protestantes dos Estados Unidos, e teve acesso a manuscritos raros. Esse livro sustenta de maneira documental que o Novo Testamento teria sido o resultado de uma colcha de retalhos, devido a “erros de copistas ignaros”, “mudanças intencionais” e manipulação de eclesiásticos políticos. No final, tudo isso levou a consolidação da doutrina cristã atual, resultado da vitória de um grupo primitivo sobre as demais correntes igualmente cristãs e legítimas, mas que passaram a ser dilapidadas, caluniadas e denominadas “heresias” pela ortodoxia oficialmente instaurada.

3. ISRAEL FINKESTEIN e NEIL ASHER SILBERMAN. “A Bíblia não Tinha Razão” (Editora A Girafa). Os autores são arqueólogos e historiadores de renome internacional. O livro é fruto de décadas de investigação nas áreas onde ocorreram os principais eventos alegados no Antigo Testamento. Se, após ler os textos de Bart Ehrman (indicados no item anterior), você já havia ficado desconfiado da autenticidade do Novo Testamento, agora pode começar a rever a primeira parte das escrituras: com o perdão do trocadilho, não ficará pedra sobre pedra.

4. JAMES D. TABOR. “A Dinastia de Jesus”(Ediouro). Tabor é especialista em estudos bíblicos. Revê as origens do cristianismo e, feito detetive, trabalhando com provas remanescentes, apresenta em detalhes, passo a passo, o modo como se elaborou a “história oficial” do tempo de vida de Jesus nesse planeta.

5. DALE T. IRVIN e SCOTT W. SUNQUIST. “História do Movimento Cristão Mundial” (Edições Paulus). Não nos enganemos nem sejamos preconceituosos: não é porque a editora é cristã até a medula que o livro seria tendencioso. Os autores coletaram pesquisas dos mais importantes estudiosos da história do pensamento pagão e cristão antigos, e resolveram elaborar uma nova história dos primórdios do pensamento cristão. Eles mostram como as apropriações conceituais dos antigos gregos foram inseridas no cristianismo, e não escondem os momentos de dominação pela força, frequentes na saga da cristandade ocidental, e também oriental.

6. MICHAEL BAIGENT e RICHAR LEIGH. “A Inquisição” (Imago). Quem porventura se arriscar a visitar uma editora de livros religiosos, certamente não encontrará obra sobre esse período negro da história. Se encontrar, ou lerá sobre protestantes afirmando que os católicos são os únicos culpados desse negócio, ou verá católicos na defensiva, a dizer que “não foi bem assim” e que o “Santo Ofício” era até bonzinho. Outro aspecto interessante desse livro é que ele demonstra que a Inquisição não terminou, apenas mudou de nome, e agora se chama “Doutrina da Fé”, que tem a função de “controlar” e “vigiar” o pensamento de teólogos. Por sinal, o cardeal Ratzinger foi o “poderoso chefão” dessa entidade antes de assumir o papado atual. Nessa obra há também interessante perspectiva sobre o “modus operandi” da elite clerical, a maneira como ocorreram os “milagres” e aparições marianas etc.

7. HENRY ANSGAR KELLY. “Satã, uma Biografia” (Editora Globo). O livro é uma pesquisa provocativa, pois documenta como se forjou a figura antropomórfica do "Representante do Mal", e com que interesses isso se fez. Enfim, ele contextualiza as aparições do diabo nas escrituras, e demonstra como se buscou dar um enfoque diferente do que de fato o texto significava. Posteriormente, as novas construções do mítico demônio foram ainda piores e desacertadas, e carecem até mesmo de fundamento bíblico.

8. VOLTAIRE. “Deus e os Homens” (Martins Fontes). Não, Voltaire não era ateu. Talvez, “deísta”, ou seja, acreditava num “Ser superior”, em nada antropomórfico, e totalmente diferente dos que os dogmas nos têm feito crer. O autor foi educado em colégio de religiosos, e sabia do que falava. As religiões e as diversas etapas e facetas do cristianismo passam pelo crivo desse escritor irreverente e altamente lúcido, que expõe contradições das mais diversas origens e espécies.

9. KAREN ARMSTRONG. “Em Nome de Deus: o Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo” (Companhia das Letras). Karen já foi freira. Figura entre as principais autoridades em história das religiões. Quem ler esse livro saberá porque se faz necessário repensar e tomar medidas contra o crescente fundamentalismo religioso, fenômeno que atinge as principais religiões monoteístas. Há outros livros da autora, mas esse já é um bom começo.

10. ÉRIC FRATTINI. “A Santa Aliança: Cinco Séculos de Espionagem no Vaticano” (Editora Boitempo). Dificilmente se encontrará alguém que conheça mais os segredos do Vaticano do que esse pesquisador. É obra de referência nesse assunto. O termo “santa aliança” diz respeito a uma das mais eficientes organizações de espionagem do mundo. Existe ainda o “Sodalitium Pianum”, a contra-espionagem. Esses organismos foram capazes de atuar e influenciar de maneira decisiva. Trata-se, como disse um comentador, “do poder secreto da Igreja Católica e de suas ligações com acontecimentos políticos que marcaram a história da Europa”. Segundo o Le Monde, é uma “meticulosa pesquisa de 500 anos de história, que põe a nu a face escondida do papado, e são revelações que dão arrepios”.

11. ÉMILE DURKHEIM. “As Formas Elementares da Vida Religiosa” (Martins Fontes). Sejamos sinceros: essa obra é complexa, e de leitura reservada a acadêmicos. Afinal, foi escrita por um dos maiores sociólogos de todos os tempos. Enfim, o livro, publicado em 1912, é considerado entre os textos fundadores da antropologia religiosa. Não é das leituras mais acessíveis, mas o leitor persistente ficará sabendo que, já nos aborígines australianos, silvícolas que jamais conheceram a doutrina judaico-cristã e viviam em regime tribal primitivo, a maioria dos fenômenos da religiosidade moderna são identificáveis: circuncisão, ceia com partilha do alimento, crença na alma, na vida após a morte, no mundo celestial, numa divindade superior etc.

12. LUDWIG FEUERBACH. “A Essência do Cristianismo” (Editora Vozes). Feuerbach pode soar como um nome desconhecido, mas ele influenciou diretamente os principais pensadores do século XX: Nietzsche, Freud e Marx. Parece pouco? Além disso, esse livro é praticamente uma autópsia do fenômeno religioso no Ocidente cristão. Não fica nada de fora. O estilo é convincente, altamente fundamentado. É difícil encontrar respostas (e parece que ninguém ainda o fez), capazes de refutar seus argumentos. Em resumo, Feuerbach defende que religião é, nada mais, nada menos, pura antropologia. Em outras palavras, é o ser humano mirando-se no espelho. Inexiste outro horizonte além do nosso.

13. BERTRAND RUSSEL. “Por que Não Sou Cristão: Um Livro que Coloca ao Leitor Questões que Nunca Mais Poderão Ser Ignoradas” (L&PM). Bertrand Russel, além de ser talvez o mais famoso agnóstico, é um sujeito especial: filósofo contemporâneo, gênio da lógica moderna, escreve com uma didática de fazer inveja. O livro traz diversos artigos, mas transcreveremos como demonstração de estilo um trecho constante do parágrafo final: “a religião se baseia, acredito, em primeiro lugar e principalmente, no medo. Trata-se, em parte, do terror ao desconhecido e, em parte, do desejo de sentir a existência de um tipo de irmão mais velho a proteger-nos em todos os problemas e disputas. O medo é a base de todo o problema: medo do misterioso, medo da derrota, medo da morte. O medo é o progenitor da crueldade, e portanto não é surpreendente o fato de a crueldade e a religião andarem lado a lado. Isso acontece porque o medo é a base de ambas as coisas”.

14. MICHEL ONFRAY. “Tratado de Ateologia”(Martins Fontes). Onfray, além do ateísmo militante, se destaca entre os filósofos da modernidade, e por inúmeros outros motivos. Deixemos isso de lado, e passemos ao “tratado”. De fato, essa expressão a nosso ver não se aplica: o livro é praticamente um “dossiê” do que se fez (de mal, de falso, de equívoco) em termos de crenças. Inovador, condensado, destilado após décadas de leituras, eis um material que resume as vilezas de que pessoas foram capazes de praticar em nome da religião.

15. JOSEPH RATZINGER e PAOLO FLORES D´ARCAIS. “Deus Existe?” (Planeta). É de se ficar embasbacado. Um livro sobre ateísmo, tendo como um dos autores o papa? Pois é. A obra apresenta dois artigos, um de cada autor, lembrando que Paulo Flores é um filósofo italiano, reconhecidamente ateu. Entre os artigos, um debate, ocorrido no ano de 2000. Aplausos para Raztzinger, pois demonstrou a coragem de enfrentar refutações. Mas a parte mais interessante do livro é mesmo o artigo do filósofo italiano, que descreve a religião como um fóssil e, o que nos deixou mais perplexos, afirma que “as objeções de uma tradição riquíssima e devastadora (e cita vários filósofos) não foram demolidas até agora”. Ora, se o pensamento teológico ainda não conseguiu refutar Hume e Nietzsche, por exemplo, quando é que isso ocorrerá?

16. SAM HARRIS. “Carta a uma Nação Cristã” (Companhia das Letras). Misto de filósofo contemporâneo e neurocientista, Harris põe em confronto direto os fundamentos das religiões e o racionalismo científico. Para o autor, se nada for feito – isto é, se as pessoas não se tornarem esclarecidas – o lado “irracional” da religiosidade representa não só um grande perigo para o futuro da ciência (vejam o que tentaram fazer com os anticoncepcionais, o tratamento para infertilidade, a clonagem, o uso de células-tronco etc.) mas principalmente para a sobrevivência da humanidade. Afinal, inúmeras seitas e correntes religiosas anseiam pelo “fim dos tempos”: nos Estados Unidos, 44% da população acredita que Jesus voltará para julgar vivos e mortos dentro de no máximo 50 anos! Alguns religiosos, para piorar a situação, creem que esse retorno somente ocorrerá depois de um tremendo cataclisma (acidente nuclear ou queda de meteoro, por exemplo), e eles aguardam que isso aconteça logo, a fim de que os malvados sejam julgados e os bons rumem ao céu. Em suma, para tais fanáticos, estratégias para “salvar” o planeta seriam como impedir o advento do juízo final... A mensagem de Harris, sendo também um alerta, é de causar espanto. Como o próprio autor diz, “esta carta foi uma manifestação desse espanto, e talvez um pouquinho de esperança”.

17. SIGMUND FREUD. “O Futuro de uma Ilusão” (Imago, v. XXI). Esse é um livro peculiar, que Freud deixou para escrever no final da vida, temendo que as críticas ao tema fossem atreladas à psicanálise. Para o “pai da psicanálise”, o sentimento religioso é uma forma – até benéfica, sob certo ponto de vista – de delírio coletivo. Mas o “problema” das religiões é a falta de amparo racional e científico: “a longo prazo, nada pode resistir à razão e à ciência, e a contradição que a religião oferece a ambas é palpável demais. Mesmo as ideias religiosas purificadas não podem escapar a esse destino, enquanto tentarem preservar algo da consolação da religião”. E finaliza, respondendo às críticas (algumas vezes oportunas, diga-se de passagem) à ciência: “não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não pode nos dar, podemos conseguir em outro lugar”. Ponto. O que mais se poderia acrescentar?

18. ARISTÓTELES. “De Anima” (Editora 34). Não se trata de um livro sobre religião, mas de um dos primeiros livros sobre a alma. Dá para verificar o quanto o conceito cristão de alma se inspirou em Aristóteles (e também em Platão, algo insólito e sincrético), e também observar o quanto deturparam o real sentido que a filosofia grega pretendia com termos que, de tão manipulados, tornaram-se completamente desprovidos de significado. Isso mostra o que a “fé cega” pode fazer com um texto filosófico, apropriando-o a seu favor.

19. MAX WEBER. “Sociologia das Religiões” (Editora Relógio D´Água). Essa edição foi elaborada em Portugal, e traz os textos de Weber, autor de outra obra seminal, “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”. Weber introduz o conceito de “sacrifício do intelecto”. O religioso, pode até servir-se da razão e da ciência nos demais campos de sua vida (medicina, direito etc.), mas quando se tratar de “questões de fé”, ele deixa sua capacidade intelectiva em suspenso, “sacrificando-a” em favor dos “mistérios” da fé. É isso o que o faz conciliar fé e razão. Do contrário, ele teria que admitir a realidade empírica e a força da dialética. O “sacrifício do intelecto” é o artifício que permite ao religioso conviver com os avanços da modernidade.

20. MIRCEA ELIADE. “O Sagrado e o Profano: a Essência das Religiões” (Martins Fontes). O autor é referência em antropologia da religião. Eliade aponta os motivos pelos quais o ser humano, ele próprio, sem ajuda de outrem, inscreve o sagrado no seu cotidiano. O homem religioso vive sob a égide de uma “sede ontológica”, isto é, de participar do Ser, e por isso só consegue viver num mundo onde se instaurou o sagrado. Ele igualmente possui verdadeiro terror do conceito de caos, e medo diante do nada. A realidade do mundo e a presença do homem nesse mundo o deixam perplexo. A consequência de tudo isso é sua vontade de situar-se no “centro do real”, que para ele é a comunicação com os deuses, o que o torna semelhante à divindade. Mircea resume: “a nostalgia do homem religioso é habitar um mundo divino, ter uma casa semelhante à casa dos deuses”.

21. BÍBLIA DE JERUSALÉM (Editora Paulus). Convenhamos: o ideal seria lermos o manuscrito das escrituras no original, em hebraico (Antigo Testamento) e grego (Novo Testamento), e ainda conferir a emblemática versão latina da “Vulgata”. Mas essa tarefa é hercúlea. Se isso não for possível, a melhor solução é ter um bom texto bíblico, uma tradução séria e consensual, feita por estudiosos renomados, e não exatamente uma “versão autorizada” de uma determinada igreja que, por coincidência, terá as doutrinas respaldadas pelos termos que o “tradutor oficial” astutamente selecionou. E, se alguém não quiser ficar confuso por completo, fuja das “orientações” nas notas de rodapé daquelas versões “explicadas” das escrituras: isso pode distrair o leitor, e não deixá-lo perceber contradições de todos os tipos: históricas, geográficas, matemáticas, astronômicas, linguísticas etc.

Se pudéssemos acrescentar livros estrangeiros, não terminaríamos o artigo tão cedo. Cremos, porém, que no momento eles poderiam ser considerados não essenciais à fundação da “biblioteca do ateu esclarecido”. Adiante, quem sabe...

Portanto, terminada a lista, findos os nossos comentários, finalizemos com os votos de que os leitores desse espaço se mantenham em constante busca de conhecimento nessa seara, pois assim acabarão por encontrarem, por si próprios, as respostas de que tanto necessitam. Com efeito, muito se escreveu e muito se publicou.

O que falta, parece-nos, é fazer com que o leitor alcance esses livros “seminais”, isto é, obras aptas a semear pensamento crítico e reflexivo, coisa que, realmente, e disso ninguém discordará, torna o ser humano o mais altivo dos entes.

Quase divino, arriscaríamos afirmar.

Laelius
Enviado por Laelius em 02/10/2011
Reeditado em 02/10/2011
Código do texto: T3253762
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