Seria Deus um injusto?

SERIA DEUS UM INJUSTO?

Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero

com aquilo que me pertence? (Mt 20, 15).

Por desconhecer em profundidade os mistérios dos dons de Deus, certas pessoas, de forma inadvertida ou leviana, dizem que Deus seria injusto, ao dar mais talentos a uns do que a outros. Olhando sob a ótima humana ou econômica, de fato, fica difícil compreender Deus tirando tudo de um pobre para tornar mais abastado um rico que tem dez vezes mais. No entanto, é prudente que não se busque refletir sobre as coisas de Deus com olhares naturais e materialistas. A história dos dons é eminentemente sobrenatural.

Há tempos, em uma reunião, dessas oriundas de movimentos eclesiais, reunindo pessoas de classe média foi levantado o assunto dom de Deus, à luz da chamada “Parábola dos Talentos” (Mt 25, 14-30). Recordo que algumas pessoas, por ignorar o assunto, se rebelaram contra a constatação, da forma, primeiro gratuita e depois misteriosa, como Deus dá seus dons.

Disseram que Deus seria injusto se desse mais dons a uns que a outros. E é de estranhar, que posições desse jaez tenham sido assumidas por pessoas com razoável formação teológica (ex-padres, ex-freiras) e que, de certa forma, refletem o pensar desinformado, no terreno da exegese, de muita gente.

Para compreender melhor o assunto, vamos nos socorrer da “parábola dos trabalhadores na vinha”. Curiosamente, a maioria das traduções da língua portuguesa fala em vinha, ao descrever a parábola contida em Mt 20, 1-16. A palavra aparece na vulgata como vineam, traduzida do original grego ampelona, cuja idéia aproximada é de chácara, lugar onde se planta alguma coisa, inclusive uvas.

Como as versões do português de Portugal apresentavam a palavra vinha, esta foi apropriada para os textos brasileiros, embora seja uma expressão pouco empregada entre nós. Por vinha, entenda-se, deste modo, uma pequena propriedade rural, um pequeno sítio, onde, entre outras árvores, há parreiras com uvas viníferas e de mesa.

Pois resolvi buscar a chamada “parábola dos trabalhadores da vinha”, por entender se tratar da que melhor propicia a compreensão da justiça e gratuidade do dom de Deus. A história é conhecida. Um homem precisava de trabalhadores em sua chácara. Saiu a contratar operários, em diversas horas do dia, a todos prometendo, como pagamento, uma moeda de prata. No meio da tarde, viu alguns desocupados na praça, e como perguntasse por que estavam ociosos, recebeu como resposta:

É porque ninguém nos contratou... (v. 7).

O patrão mandou-os igualmente para a vinha, auxiliar nos trabalhos. No fim do dia, chamou a todos, dando a cada um uma moeda de prata, conforme prometera, começando o pagamento pelos que havia começado mais tarde. Os que começaram a trabalhar cedo murmuraram contra o homem, pois, julgando terem trabalhado mais tempo, imaginavam receber uma remuneração maior, ao que o empregador respondeu:

Amigo, eu não fui injusto com você. Não combinamos uma moeda

de prata? Tome o que é seu, e volte para casa. Eu quero dar

também a esse, que foi contratado por último, a mesmo que dei

a você. Por acaso não tenho o direito de fazer o que eu quero

com aquilo que me pertence? Ou você está com ciúmes porque

estou sendo generoso? Assim os últimos serão os primeiros, e os

primeiros serão os últimos (vv. 13-15).

Deus não exclui ninguém. No Reino não há marginalizados, nem eleitos de segunda classe. Os dons de Deus são distribuídos a todos. Essa distribuição é uma grandeza tão complexa que supera as idéias humanas de justiça. No Reino de Deus não há lugar para ciúmes; é heresia tentar “julgar a Deus”, ou querer saber por que ele deu mais ou menos dons, por tempo maior ou menor.

Existem muitos dons, mas o conjunto teologal (fé, esperança e amor), impresso no batismo, é suficiente para a salvação, que é o dom maior. Os que julgam possuir mais méritos que os outros, em termos de dons sobrenaturais, devem assumir a consciência que esses são gratuitos, mas implicam em responsabilidade, por isso precisam ser cada vez mais desenvolvidos.

Esta parábola, em algumas bíblias protestantes, tem o título de “igualdade dos galardões”, pois afirma que todos os dons que recebemos concorrem igualmente para a nossa salvação. A parábola dos trabalhadores (Mt 20) tem algumas peculiaridades que vale a pena estudar:

O Reino é semelhante... (v. 1)

Toda a prática do patrão, dono da chácara, atitude essa incompreendida por alguns empregados, é igual à prática de Deus, também mal compreendida por muitos de nós;

a moeda de prata (v. 4.8.9)

Nesses versículos, o pagamento aparece, pela ordem, como “o que for justo”, “uma diária”, e “uma moeda de prata”. Essa remuneração, para um dia de salário, é excepcional. A retribuição significa o Reino, a “vida eterna”, o galardão daqueles que atendem ao chamado de Jesus; no caso da relação Deus/homem, a promessa da justiça de Deus, o combinado, é a vida eterna. Humanamente falando, com ciúmes da remuneração com uma moeda, o melhor seriam duas moedas; isso, no entanto, não existe: não há “duas vidas eternas”, ou “dois céus”;

... porque ninguém, nos contratou... (v. 7)

Os trabalhadores ociosos na praça são aquelas pessoas de bom potencial ainda não despertadas pela Palavra, sem fé,desencorajadas, sem esperança; em termos pastorais, seriam os que não foram atingidos pela catequese, kérygma ou anuncio da salvação;

... os primeiros contratados pensavam que iam receber

mais... (v. 10)

Para Deus, é salutar que se reconheça, não existe a dimensão temporal. Quem se converteu há cinqüenta anos, ou morreu em santidade há mil anos, recebe como prêmio o mesmo Reino (não existe outro), de quem fez sua conversão na semana passada, na véspera de morrer. Um conhecimento espiritual mais aprofundado levaria algumas pessoas a conhecer a justiça dessa ação divina. O galardão é tão imenso, que a cronologia ou ordem temporal se torna insignificante.

Na parábola ora em estudo, os que chegaram primeiro (este não é – por certo – o pensamento dos bem-aventurados que já estão no Reino), pensaram em receber mais (visão humana, de ciúme). Alguns segmentos da exegese protestante, de origem britânica, negam essa interpretação, afirmando, com fulcro no anglicanismo e também no calvinismo, que haverá, mesmo na eternidade, disparidade entre prêmios e castigos;

Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero...

(v. 15a)

Se entendermos esse versículo, teremos compreendido a prática divina de doar seus dons: os dons são dele e ele os distribui como quer. Como sua inteligência supera nossa humanidade, ele sempre sabe o que faz, ao distribuir “cinco talentos a um, dois a outro e um ao terceiro...”. Deus é soberano, livre e não está sujeito às interpretações (e interpelações) humanas;

Ou você está com ciúmes porque eu sou bom? (v. 15b)

Em algumas traduções aparece “... é mau o teu olho porque eu sou bom?” O “olho grande” da ambição, da inveja e do ciúme é um mal muito grande, que quebra a comunhão. Por não compreender o projeto de Deus, devido à nossa limitação, e querer julgá-lo, chamando-o de injusto, é uma blasfêmia.

Na teologia moral, blasfemar é dizer palavras injuriosas contra

Deus. A blasfêmia herética é (...) ou dizer que Deus foi injusto

comigo ou com a, porque fez ou deixou de fazer tal coisa...” (in:

R. SADA e outro. Curso de Teologia Moral, Ed. Rei dos Livros,

Lisboa, 1989).

Não reconhecer em Deus o sumo bem, o agathón, é uma heresia brutal;

Primeiros... últimos (v. 16)

Na justiça de Deus há que sempre se observar os que são primeiros, assim chamados por ele, e os que se julgam primeiros. Trata-se daquela gente que, mesmo em atividades da Igreja, gosta de “coordenar”, exercer uma autoridade dominadora, exibir sua “capacidade”, desrespeitando os demais com egoísmo e arrogância. Esses, por sua soberba, tornar-se-ão os últimos, excluídos;

De toda a parábola, podemos inferir, pela boca de Jesus, que a justiça de Deus é sempre correta e isenta de erro. Embora tenha praticado a justiça, Jesus pouco usou essa expressão, tão sacralizada no Antigo Testamento, como “justiça de Deus”. Ao referir-se ao Reino “... e sua justiça”, Jesus está declarando que uma das características básicas do Reino dos Céus, é a justiça, oriunda do amor, capaz de produzir a paz (cf. Mt 6, 33; Is 32, 17).

Ao mencionar a expressão justiça de Deus, São Paulo (cf. Rm 1, 17; 3, 5.21; 10, 3) refere-se à economia da salvação, ou seja, Deus é extremamente justo, pratica sua justiça, ao prover, ao homem, sua salvação e sua eterna felicidade.

Nesse particular, justiça perpassa a Escritura, como um atributo de um Deus rico em misericórdia, cujo projeto visa a salvação do ser humano. Igualmente em João (cf. 1Jo 1, 19), vemos que Deus mostra sua justiça, num sentido de perdoar e de acolher aquele que pecou.

Por isso, cabe a pergunta: seria Deus um injusto ao dar dons diferentes para as pessoas? Tem gente que afirma que sim. Já escutei pessoas, que se dizem cristãs, revelando certa inveja, revolta até, pelo fato de outros receberem mais dons que elas. Esse raciocínio é equivocado, racionalista e, de certa forma, materialista.

Do ponto de vista puramente humano seria aceitável pensar assim. Afinal vivemos em uma sociedade que se rege pelo toma-lá-dá-cá, pelo só passa quem tira nota dez, ou, ainda por critérios de obtenção na base do merecimento, do esforço e, não raro, do pistolão. Esses caminhos, todavia, são caminhos humanos, e não caminhos de Deus.

Certas pessoas, em acessos de incontida vaidade, recusam-se a admitir que Deus dê aos outros aquilo que não deu a eles, como se fosse obrigado a ter uma balança e uma régua, a fim de fazer a distribuição equânime de seus dons, graças e carismas.

Assim raciocinando, muitos deixam claro não entender nada a respeito da graça de Deus, vendo-a como coisa própria, sobre a qual tenham méritos ou direitos a reclamar. É prudente repetir São Paulo:

A respeito dos dons de Deus, queridos irmãos, não quero que

vivam na ignorância (1Cor 12, 1).

Os dons são de Deus. Ele é o administrador da graça e dá às pessoas, como bem lhe agradar, aquilo que lhes é útil para a salvação, dentro do mistério do projeto amoroso do Pai. Paradoxalmente, muitos dons não querem dizer mais salvação. Podem representar, isso sim, mais deveres, mais compromisso, mas não mais salvação, pois essa é gratuita.

Às vezes, pode suceder o inverso: não compreendendo o mistério do dom de Deus, como a mulher samaritana, a pessoa comece a imaginar que, aquilo que Deus lhe deu para a edificação de muitos, é conquista e propriedade sua, desviando-se, tornando-se infiel, enterrando talentos.

O que sucede, em muitos casos, é que, vaidoso e arrogante, o ser humano, não admite que outros, a quem ele considera social ou culturalmente inferior, possa ter recebido mais dons, e invoca critérios de justiça humana, direito de paridade, tempo de casa, etc., misturando valores, aptidões, conhecimentos e capacidades.

Quando alguém teima em invocar - e aí funciona a limitada ótica humana - critérios de justiça a respeito da distribuição dos dons, isso revela, no mínimo, falta de fé e uma tentativa de querer manipular a prática de Deus. Sobre isso, o Criador adverte, pela boca do profeta:

Os caminhos de vocês não são os meus caminhos...(Is 55, 8).

A graça que Deus concede a cada um é o próprio modo, de ser e de agir de cada pessoa. Esse modo de ser e agir, iluminado pela fé, se coloca à disposição das necessidades dos outros, a fim de que todos possam crescer, mediante a contribuição de cada um (cf. 1Cor 12). Deus não dá todos os dons a todas as pessoas.

A alguns dá certos dons, a outros agracia com outro tipo de graças, de forma que, como cada um tem um tipo de dom, através da vivência fraterna e comunitária, todos colocam os dons em comum, somando-os para o crescimento de todos. Os dons são de Deus – repito – e ele os administra de acordo com seu projeto.

A um deu cinco talentos, a outro dois, e um ao terceiro; a

cada um conforme a sua capacidade (Mt 25, 15a).

É herético querer saber os porquês de Deus, ou tentar decifrar, com nossa cabeça limitada, a profundidade de seus desígnios. Às vezes, e ele sabe bem disso, dar muitos dons pode até encaminhar a condenação de alguém. E é verdade que para uns ele dá mais e para outros dá menos; alguns ganham certo tipo, outros ganham dons diversos.

A chamada “parábola dos talentos” ratifica tal assertiva de forma inconteste: um ganhou cinco, outro dois, e um terceiro apenas um. Do primeiro foram pedidas contas de cinco talentos, do último apenas de um. Isso não faz com que Deus incorra em injustiça, pois ele não dá dons para envaidecer ninguém, nem por mero desejo de estimular a competição, mas dá com vistas à salvação e edificação da comunidade.

Nesse particular, mesmo aquele que recebeu menos dons, os terá de forma suficiente para sua própria salvação e para servir aos demais. Na “parábola dos trabalhadores da vinha”, podemos notar como Deus dá dons e graças a cada um sem ater-se a conceitos e medidas humanas, de tempo de casa, duração de serviço, ou mérito pessoal.

A justiça de Deus tem outros critérios, bem acima dos nossos. Confundir dom de Deus com aptidões humanas, técnicas ou intelectuais que se podem desenvolver, é querer aprisionar o Criador num tubo de ensaio de laboratório ou num programa de computador. Dom é presente, e como tal gratuito, independente de méritos e conotações temporais. Deus dá porque quer. O salmista reconheceu essa abundância e essa gratuidade:

O Senhor abre a mão e sacia à vontade seus filhos (Sl 145, 15).

Por usarem mais a lógica humana que os olhos da fé, alguns afoitos têm se assustado quando Jesus afirma:

A quem tem mais será dado, e a quem não tem, o pouco que

tem, será tirado e dado ao que tem mais... (Mt 25, 30; par.

Mc 4, 25).

Colocar talentos a render, na linguagem bancária dos evangelistas, é permitir a ação da graça de Deus em nós; é frutificar os dons em favor da alteridade, dos outros. Ao contrário, enterrá-los é usar de forma egoísta ou privativa aquilo que Deus destinou para uso comum. Tão errado quanto usar mal os dons, é não usá-los. Neste caso, o que tem mais, não quer dizer o mais rico, mas o que melhor colocou em serviço os dons que Deus lhe deu. A esse, porque sabe usar o que lhe foi dado, sempre será dado mais ainda...

Ao contrário, o que tem menos, não é como querem alguns, o mais pobre economicamente falando, mas o que, espiritualmente falando, empobreceu-se, não fazendo prosperar, não colocando a serviço os dons que recebeu. A esses, nessas condições, até o pouco que pensava ter, isso lhe será tomado.

A graça de Deus, infusa em nós, pode e deve ser desenvolvida. Não desenvolvê-la equivale a enterrar talentos. Quem não desenvolve a graça em si, não está apto a receber mais, e é candidato a perder o que tem. É como se um santo, lá no céu, resolvesse interpelar a Deus, por ter sido santo durante uma vida de noventa anos e o mesmo céu ofertado a um pecador que se converteu nas últimas horas de vida. No mistério do dom divino não existe essa graduação, nem de tempo nem de valor. Para Deus inexiste o vetor tempo. O Reino é para todos que queiram, para os que pedem agora e para os que pediram no passado.

Ele não se limita a critérios humanos. Sua doação perfila-se ao projeto de salvação, inacessível a nosso entendimento e às nossas cronologias. Seria Deus um injusto, por dar dons diferentes às pessoas? Por certo que não. Deus deu mais dons, por exemplo, ao Rei Salomão. No entanto, exigiu mais dele. Injustiça seria receber as graças e usá-las mal, ou não usá-las. Para encerrar esta questão, cabe repetir a pergunta que Jesus fez àqueles murmuradores, que reclamavam tratamento díspar na distribuição de pagamentos:

Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com

aquilo que me pertence? (Mt 20, 15).

O autor é Filósofo, Biblista e Doutor em Teologia Moral. Prega retiros de espiritualidade e assessora workshops de Teologia, História Antiga e Ética. Escritor, com mais de cem livros editados no Brasil e exterior, entre eles “O dom de Deus. Um Pai que vem ao nosso encontro”. Ed. Ave-Maria, 1999.