O bem e o mal - Objetos de estudo da ética

O BEM E O MAL

Objetos de estudo da ética

Antônio Mesquita Galvão

Se o bem e o mal existem você deve confiar,

é preciso saber viver... (Roberto Carlos)

O homem, porque é um ser social, não vive sozinho. Assim se torna necessá-rio a criação de normas para mediar as relações entre os membros desta sociedade. Toda cultura e cada sociedade institui uma moral, isto é, valores concernentes ao Bem e ao Mal, ao permitido e o proibido, e à conduta correta, válidos para todos os seus membros. No entanto, a simples existência da moral não significa a presença explicita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que dis-cuta, problematize e interprete o significado dos valores morais.

Aqui já podemos separar ética e moral. Moral são os valores que a sociedade define para si mesma, o que julga ser a violência e o crime, o mal e o vício e, como contrapartida, o que considera ser o bem e a virtude. Somos formados pelos costu-mes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valo-res propostos por ela como bons, e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa maneira, valores e deveres parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser na-turais e intemporais, somos recompensados quando os seguimos, e punidos (ou recriminados) quando os transgredimos.

A palavra costume se diz, em grego, ethos – donde ética – e em latim, mores – donde moral. Em outras palavras, ética e moral referem-se ao conjunto de costu-mes tradicionais de uma sociedade e que, como tais, são considerados valores e obrigações para a conduta de seus membros. Os costumes por serem anteriores ao nosso nascimento e formarem o tecido da sociedade em que vivemos, são conside-rados inquestionáveis e quase sagrados.

Bem (do latim bene) é a qualidade da excelência ética que leva a uma melhor compreensão do amor, da obediência, da humildade e da sabedoria. Esse conjunto de virtudes favorece a conscientização sobre a vida humana, tanto do ponto de vista material quanto espiritual. Nas religiões, assim como na filosofia e na ética sociológica, os vocábulos bem e mal se referem à avaliação de objetos, desejos e comportamento através de espectro dualístico, onde estão aqueles aspectos considerados moralmente positivos e negativos.

O bem é por vezes visto como algo que implica a reverência pela vida, continuidade, felicidade ou de envolvimento humano, enquanto o mal é considerado o recipiente dos contrários. Não há consenso, se o bem ou o mal são intrínsecos à natureza humana. O dualismo bem/mal aparece nas figuras bíblicas dos “dois caminhos” (cf. Dt 30, 19s) e do pai que tinha dois filhos (cf. Mt 21,28-32). Sempre há, na frente do ser, duas alternativas de escolha. Em toda a cultura hu-mana desponta a necessidade de o homem ser bom, de semear o bem, para trans-formar:

Não paguem a ninguém o mal com o mal; a preocupação de vocês seja fazer o bem a todos (Rm 12,17).

Caríssimo, não imite o mal, mas o bem. Quem faz o bem, é de Deus. Quem faz o mal, não viu a Deus (3Jo 11).

Para os “pais da Igreja”, o bem é teo-lógico (vem de Deus), enquanto o mal é onto-lógico (vem das criaturas). Em muitos desses autores sobressai-se aquela i-déia do “mal necessário” para que se dê valor ao bem. Deus projetou que deveria haver distinção entre coisas boas e más; que devemos conhecer, através do que é mau, as qualidades do que é bom, bem como do que é bom a partir do que é mau. Não pode ser entendida a natureza de um sem a existência do outro.

A natureza da bondade tem recebido muitos tratamentos; em um deles, o bem é baseado no amor natural, vínculos e afetos que se desenvolvem nos primeiros estágios do desenvolvimento pessoal; no outro, a filosofia grega afirma que a bondade é um produto do conhecimento da verdade.

Como um conceito filosófico, a bondade pode representar a esperança de que o amor natural seja contínuo, expansivo e abrangente. Num contexto religioso monoteísta, é desta esperança que deriva um importante conceito de Deus como uma infinita projeção de amor, manifesta como bondade na vida das pessoas. Em outros contextos, o bem é visto como algo que produz as melhores conseqüências na vida das pessoas, especialmente em relação a seus estados de bem estar. Com a palavra os clássicos:

Aristóteles – o bem é a atitude racional para com as sensações e os desejos.

Demócrito – a bondade não é uma questão de ação; depende do desejo interior do homem. O homem bom não é o que pratica o bem, mas o que deseja praticá-lo sempre.

Parmênides – segundo os Estóicos – o mais alto bem do homem está em agir em harmonia com o mundo.

Santo Agostinho – o mal é ausência do bem, da mesma maneira que as trevas são a ausência da luz.

Pierre Abelard – justiça e injustiça de um ato não estão no ato em si, porém na in-tenção de quem o pratica.

Santo Tomás de Aquino – o mais elevado bem é a concretização de si mesmo con-forme Deus ordenou.

Freud – o indivíduo que tem saúde mental saudável é aquele que estabelece rela-cionamentos profundos e duradouros, com vistas ao bem.

A filosofia de Platão começa onde parou Sócrates, pela questão da essência do bem. O conceito de valor era tão multiforme no seu tempo como o é hoje. Em Sócrates, mesmo Platão viu o valor moral, prático e vivo. Mas como deveria ele ser concebido e determinado teoricamente? O ensinamento que Sócrates tinha deixado soava: sê sábio e serás bom.

Nietzsche propõe pensarmos para além do Bem e do Mal: “Perguntai aos es-cravos quem é o mau?, apontarão a personagem que para a moral aristocrática é bom, isto é, o poderoso, o dominador”. Então, o Bem e o Mal, dependem da pers-pectiva e dos interesses de quem julga. Deveríamos nos colocar no lugar do outro. Por exemplo, por que Bin Laden era um homem mau para o Ocidente-cristão e um herói bom no Oriente-islâmico? Por que algumas igrejas fazem show contra o mal, mas terminam mais falando das terríveis forças do mal do que do bem?

O grande problema de nossas hermenêuticas modernas (e o homem moderno adora essas “interpretações”) é superar a contradição entre um Deus, que apren-demos ser bom, e um mal cruel, que nos violenta e enche de temor. No terreno das avaliações, o mal é quase sempre desproporcional ao pecado cometido. Daí a ques-tão: por que eu? Nessa perspectiva, o mal é e será como a imagem de uma aterra-dora esfinge, que nos devora antes que possamos decifrar seus enigmas. O mal é a realidade ligada à vida humana que temos mais dificuldade em aceitar, entender e justificar. Ao que tudo indica, nossa cultura, social e religiosa ainda não sabe lidar com o espectro do mal.

Em certos momentos, ocasiões e circunstâncias, é desconcertante falar sobre o mal, tentar explicar o inexplicável, como o padre que realiza o ritual das exéquias de uma criança que foi assassinada por um desconhecido. Há momentos em que a dura realidade de alguém, assolado pelo sofrimento, não se satisfaz com nossas te-orizações filosóficas ou teológicas, mesmo que elas estejam fortemente embasadas no conhecimento ou na fé, Pretendemos, nesta reflexão, desenvolver roteiro e peda-gogia próprias, a partir das questões levantadas sobre alguns casos reais, ocorridos nos últimos tempos:

1. Um descomunal furacão, seguido de maremoto (chamado de Tsunami) abateu-se sobre o Sudeste Asiático em 26 de dezembro de 2004, matando mais de 300 mil pessoas, além de provocar uma destruição material sem precedentes;

2. Um menina de quatro anos, num bairro pobre de Porto Alegre, em março de 2005, sofreu violências sexuais e depois foi morta, pendendo enforca-da, em uma árvore;

3. Uma idosa foi morta, por uma “bala perdida”, no Rio de Janeiro; seu a-partamento ficava a 300 metros de um morro onde grupos rivais disputa-vam a hegemonia do tráfico de drogas. Era dia de Natal, dezembro de 2004.

Assistindo ou vivenciando estas tragédias, alguém, certamente terá se per-guntado: Por que, meu Deus? Ou, quem sabe, indagado, de uma forma mais pro-funda: Se Deus é bom, Então por que existe tanto mal?

Não é difícil explicar ou entender o mal a partir do ato do agente, daquele que pratica o mal. Em geral, aliado ao fator culpa, que no direito tem três atributos (im-perícia, imprudência e/ou negligência), pode-se enxergar na liberdade, a porta a-berta para a prática de uma ação dolosa. Por que matou? Matou porque quis! Por-que é bandido! Por vingança! O que leva um indivíduo a cometer um estupro? De-sajuste, tara, pressão psicológica, etc. E o ladrão? Roubou porque faz parte de sua natureza? Porque precisava? Estava com fome? Ou porque se deixou levar por más companhias? Olhando-se, pois, sob a ótica do agente, sempre se encontrará o moti-vo ou o móvel para a prática de um ato ilícito, imoral e criminoso. Nessa conformi-dade, o mal é facilmente explicado. Por que fez? Porque tinha liberdade de fazer ou não; e preferiu fazer. Aí funciona integralmente o livre-arbítrio, ou seja, o indivíduo é livre para fazer o que lhe vem à cabeça, seja o bem ou o mal.

A dúvida, a questão e mesmo a indignação surge quando passamos a enxer-gar o mal – o ato e seus efeitos – através da ótica da vítima, do inocente, daquele que, sem fazer nada, sem concorrer para o evento, sofreu em si todas as conse-qüências. Porque o criminoso mata, a gente sabe. E por que o inocente é morto? Essas questões, muitas vezes, nas fráguas iminentes de um drama, escutamos tra-duzidas por um clamor que sobe aos céus: por que, meu Deus?

A incidência do mal na vida humana – ocorrência esta que sempre nos preo-cupou – foi-nos justificada nos catecismos preliminares, como “vontade de Deus”, quando as pessoas morriam porque havia necessidade de mais anjos no céu. De-pois, mais tarde, descobriram que “Deus é amor”, é Pai e “rico em misericórdia”, e essa nova visão não se enquadrava com o Deus vingativo, mais retributivo que mi-sericordioso, do Antigo Testamento.

Nesse contexto, foi-nos dito que o mal é fruto do pecado, e que este ocorre, desde Adão e Eva, por culpa da má condução que o ser humano vem dando à sua faculdade de agir livremente. Então a liberdade, ao invés de um dom, uma graça, passou a ser um perigo, uma ameaça? Sim, pois se o homem não fosse livre, não cometeria as faltas que a liberdade lhe faculta.

A grande verdade é que o mal existe, a despeito de nossos protestos e recla-mos. E existindo afeta diretamente nossa perspectiva de vida, uma vez que o mun-do infenso sempre nos apronta armadilhas. Estamos bem agora mas podemos ser vítimas do mal daqui a pouco e, na maioria das vezes, não temos explicações para o fato. O caso, assustador, é que muitos de nós têm teorias sobre o mal, mas nin-guém está preparado para conviver com ele.

.

As questões, no tocante à existência do mal, são várias, freqüentes e recidivas. Quem criou o caos ou o mal? A resposta é imediata: “Não foi Deus! Pode ter sido o Diabo...”. Ora, sabemos que o Diabo não é criador de nada; ele não tem poder para criar. Deus podia ter evitado o surgimento do mal? Por certo que sim, mas em fun-ção do mistério insondável não se sabe porque motivo não o fez. Ah, dirão, então o mal é criação do homem, que por uma mixórdia moral entre decisões e liberdade permitiu que o mal... O homem não poderia, pois o mal é anterior a ele. Além disto, o homem é criador? E criador de algo tão forte que nem Deus consegue erradicá-lo? A questão é complexa...

Por que existe o mal? De onde ele vem? Se do mais íntimo de seu ser o ho-mem deseja o bem e almeja a felicidade, por que ele pratica o mal? Por que o mal o acompanha em todas as circunstâncias de sua vida, em todos os seus atos, em to-das as suas experiências? Se o homem foi criado por um Deus bom não deveria e-xistir apenas o bem? Essas perguntas fazem parte dos mais importantes questio-namentos que o homem pode fazer a respeito de sua existência.

De fato, o mal é a outra face da realidade e a idéia que tivermos dele constitu-irá parte considerável da idéia que construiremos de toda a realidade. Ele precisa, pois, ser entendido para que se possa entender o mundo. E também para que se possa limitar suas investidas, de maneira mais eficaz. Durante toda a história hu-mana, várias respostas foram dadas às questões sobre o mal. Em geral tais enunci-ados se apresentam ou de forma insatisfatória ou com argumentos bastante negati-vos, estendendo um véu sombrio, capaz de cobrir a existência do homem, gerando medo, pessimismo ou um fatalismo irracional.

Mesmo sabendo que não teremos condições de responder a muitas questões, pretendemos transcrever aqui uma série de indagações, reproduzindo aqueles questionamentos que nossa relativa experiência, como professor, evangelizador, conferencista, pregador de retiros de espiritualidade e ministro das exéquias nos proporcionou. A pergunta que se faz é se essas idéias tradicionais, negativas mui-tas delas, poderiam ainda hoje ser consideradas válidas? Ou há outra forma de compreender a questão do mal? O surpreendente avanço do saber humano, a partir da filosofia, da teologia e das demais “ciências humanas”, realizado nos últimos tempos não estaria possibilitando e, mesmo, exigindo de nós uma nova compreen-são do mal?

Paradoxalmente, quando se fala no mal, parece que todos têm a sua defini-ção, sua forma de enxergar a questão, ou suas definições próprias. Embora o mal seja uma coisa dificilmente “digerida” pela humanidade, ele hoje é um assunto que muita gente pretende demonstrar conhecimentos. A verdade é que o mal enseja perguntas e respostas, nem todas respondidas satisfatoriamente. Definimos melhor o mal do quem o bem.

Indaguei várias pessoas – gente simples, pouca cultura, faixas etárias varia-das, homens e mulheres do povo – a respeito do mal. As respostas são interessan-tes: “É uma ‘coisa ruim’ que a gente sofre, ou faz os outros sofrerem; é a doença, a falta de dinheiro, a inveja, o roubo, as ofensas, as dores, as pisaduras, as enchentes, a seca, as tempestades, as dores, o desprezo, a mentira, as tentações, os vícios, o ódio, os pecados, os desvios morais, a morte e a perdição eterna”.

É curioso notar que muitos têm uma noção prática do mal, semelhante àque-la elaborada por filósofos, teólogos e psiquiatras. Isto revela que certas categorias sociais têm uma visão intuitiva (e porque não dizer dedutiva) a respeito do mal. De-pois de escutar esse elenco de fatores que caracterizam o mal, foi perguntado: e quem é o autor de todos esses males? Com o mesmo desembaraço dos simples, as respostas fluíram: a gente mesmo; os outros; a natureza, o diabo; ou a vontade de Deus. Nessas respostas (por isto eu falei em “conhecer por intuição e dedução”), todas vindas de pessoas que desconhecem a filosofia e a psicanálise, há curiosa-mente uma relação com mestres do pensamento. Se não, vejamos: a) a gente mes-mo (o si-mesmo – complexo de culpa – de Freud); b) os outros (“o inferno são os ou-tros” – Sartre); c) o diabo (Dostoiévski); d) a vontade de Deus (Jung).

Por que existe o mal? De onde ele vem? Se do mais íntimo de seu ser, o ho-mem deseja o bem e almeja a felicidade, por que ele pratica o mal? Por que o mal o acompanha do berço ao túmulo, em todos os seus atos, em todas as suas experiên-cias? Por que sofro se tento ser bom? Não deveria existir apenas o bem? Circulando tais questões, há um conjunto positivo e outro negativo. Poderíamos dividir, preli-minarmente, as questões em dois grandes grupos: as respondíveis e as não-respondíveis. As questões respondíveis: a) o que é o mal? b) de onde vem o mal? c) por que sofremos?

As questões sem resposta: a) por que os maus prosperam e os bons sofrem? b) por que o inocente sofre castigos injustos? As “respondíveis” são mais ou menos fáceis de equacionar. As não-respondíveis vão perpassar todo este trabalho, onde a tônica vai girar em cima do sofrimento do inocente. Se como “advérbio” o mal é tu-do aquilo que é contrário as normas eticamente admitidas, qualquer que seja seu campo de aplicação (um trabalho mal feito, por exemplo), como “substantivo” ele designa tudo o que constitui um obstáculo à perfeição do ser humano, e engloba as experiências em que predominam o sofrimento e o dano.

Em geral concebido sob os auspícios de uma carência, pelo pensamento teo-lógico, ou de uma degradação progressiva do ser, o mal está presente no movimen-to dialético sob a forma binária do erro que se contrapõe à verdade, ou do trabalho necessário à luta do escravo por sua liberdade, tornando-se assim o “motor da his-tória”. Como questões respondíveis, embora não se queira afirmar nada definitivo, ainda, relacionamos: O que é o mal? Ora, o mal é tudo aquilo que contraria o bem, o equilíbrio, a felicidade e a plena realização de nossos projetos. O mal é visto como uma “privação do bem”.

À outra questão, de onde vem o mal, nós sempre temos respostas prontas. Ele vem de nós mesmos, dos outros, da natureza e do sobrenatural. Oriundo de nós mesmos, vemos o mal que é fruto das doenças. Elas se maturam dentro de nós, como resultante de nosso desleixo (falta de cuidado na alimentação, descuido com a forma física, etc.), também por problemas genéticos, congênitos ou hereditários (doenças mentais na família, deficiências físicas, gestações em idade avançada, ví-cios como bebida, tabagismo, drogas, pais com sífilis ou outros distúrbios capazes de prejudicar a posteridade). Isto tudo é capaz de gerar organismos deficientes, pessoas fracas e suscetíveis às enfermidades, e que, assoladas pelas doenças, atri-buem-nas a outras causas, como “mau-olhado”, “inveja” ou até os irracionais “car-mas” das doutrinas espiritualistas.

No tocante ao mal que “vem dos outros”, é aquele que acontece através da violência, dos acidentes, e pelos descaminhos políticos que geram sofrimentos, etc. A natureza, às vezes, produz o mal: são as enchentes, os furacões, maremotos, se-cas, etc. Há também o sobrenatural, o mistério do pecado (que a maioria dos espe-cialistas chama de “mal moral”), a influência negativa dos “trabalhos” de macumba, do “olho-grande”, e a influência dos “espíritos maus”.

Por fim, por que sofremos? Sofremos porque somos fracos, vulneráveis, frá-geis às doenças, às agressões, aos fenômenos da natureza e às ameaças metafísi-cas, o medo, o pecado e coisas do gênero. Estas respostas é o que de mais superfi-cial existe. Elas foram colocadas aqui, na abertura do trabalho, para orientar o ra-ciocínio e abrir caminho para uma especulação mais concreta. Tudo faz parte de um contexto a ser mais debatido e ampliado.

Nas questões, aqui classificadas como sem resposta, “por que os maus pros-peram e os bons sofrem?” ou “por que o inocente sofre castigos injustos?” As solu-ções já não brotam com tanta facilidade, ensejando respostas imperfeitas, ambí-guas, às vezes contraditórias, e tendentes à evasão. Falar em “livre-arbítrio” e “mis-tério” para justificar essas questões, nem sempre satisfaz o coração das vítimas, ou de seus familiares. O assunto é o fio-condutor do trabalho, cuja iluminação, pelo menos parcial, se pretende estabelecer até as últimas páginas.

É interessante chamar a atenção no fato de, por causa da problemática do mal, as religiões enfrentam grandes dificuldades em lidar com a questão, especial-mente na hora de explicar uma circunstância trágica, justificar uma perda ou defi-nir algo imprevisto. A alegação “foi vontade de Deus” não satisfaz mais os porquês do homem moderno.

E nós, sabemos identificar o mal? Somos capazes de avaliar, de forma cristã e inteligente, seu estrago na vida das pessoas e na nossa? As pessoas, em geral, têm respostas e julgamentos para todas as circunstâncias, sempre no aspecto empírico, na teoria dos achismos cotidianos. Saberão converter a teoria, na hora do desastre?

No campo da filosofia constata-se que como “oposto ao bem”, o mal coloca em questão a responsabilidade da pessoa que cometeu o erro, embora sua origem pri-mitiva deva ser buscada, de acordo com a teologia, nos poderes sobrenaturais in-trinsecamente maus (o Diabo). Na modernidade, o psiquiatra suíço C. G. Jung († 1961) foi mais longe, ao criticar a privatio boni de Agostinho: “a separação entre o mal e a divindade sempre causou prejuízo à humanidade. Bem e mal alternam-se como uma ‘estética’ que repousa equilibradamente sobre duas colunas”. Para Jung, a doutrina da privatio boni tende a diminuir a realidade do mal, tornando as pesso-as vulneráveis às suas investidas.

A trajetória histórica da maldade no mundo é uma coisa que dá o que pensar. Mais ainda quando vemos que o mal não é um problema entre outros, mas, ao con-trário, ele rege todos os outros. A verdade é que o mundo e a vida humana instau-raram-se sob a dialética do conflito entre o bem e o mal. A teologia moderna, diante de tantos questionamentos, busca uma forma de ordenar o estudo e conscientizar a necessidade do debate a respeito do mal e suas origens. O estudo se presta para dirimir dúvidas e para trazer a luz sobre determinados assuntos, incluídos nos ta-bus das religiões, seitas, culturas e filosofias da humanidade. Desde que o ser hu-mano abriu os olhos, na noite do tempo, ele convive com a realidade dúbia, que os-cila entre o bem e o mal.

Os teólogos, desde cedo, reconheceram a presença do mal em um mundo que busca seu significado moral. Por que – perguntam – Deus procura levar seus filhos para o céu? Para “livrá-los do mal”, para preservá-los do ataque das forças malig-nas. Desde o homem das cavernas, observa-se um medo do mal, das forças incom-preensíveis que atacam a família humana, as pessoas e seus clãs.

Na idade antiga, o povo temia a bruxaria, a peste e as guerras. Depois passou a temer os inquisidores, os senhores feudais e continuou temendo os conflitos ar-mados. Na modernidade – que ninguém assume o risco de dizer quando começou – as Guerras Mundiais foram o flagelo da humanidade. Na Primeira, uso do gás letal, gerou mortes em largas escalas. O que era uma invenção recente, o avião, empre-gado para matar, a ponto de seu criador, o brasileiro Alberto Santos Dumont se suicidar, ao ver a deturpação de sua invenção. Igualmente os tentáculos do mal manifestaram-se nos “golpes de estado” e nas “revoluções” da América-Latina (es-pecialmente no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai e outros países),onde ditaduras ilegítimas provocaram um banho de sangue no continente.

Quando teólogos, biblistas e estudiosos se dispõem a especular a respeito do mal, suas raízes e conseqüências, algumas pessoas, neófitas por certo, ficam meio chocadas, aconselhando que não se mexa “nestas coisas”. Outros acham que estu-dar a origem e as ramificações do mal na sociedade humana, pode atrair maus flu-ídos, despertar bruxas ou evidenciar uma tendência do pesquisador para este as-sunto. Ainda há muito tabu – superstição até – envolvendo o debate e a especula-ção sobre este tema, obscuro, assustador e controvertido. Há quem veja – como foi aludido – heresia em questionar as origens do mal.

Na constatação global, enxergamos o mal no mundo, no coração humano, e em todas as atitudes da sociedade. O mundo é mau? Costumamos escutar essa pergunta, e nem sempre sabemos responder. Isto, talvez, porque não sabemos con-ceituar o que é mundo?

O verbete mundo tem muitos significados. Desde “quantidade” até espaço pessoal de privacidade. Na versão filosófica, o conceito de mundo gira em torno de dois eixos fundamentais. Por um lado designa o conjunto das realidades materiais que constitui o cosmos ou o universo e, em um sentido mais restrito, o sistema planetário terrestre. Por outro lado, aplicada à vida do homem, no aspecto psíquico, a noção remete aos fenômenos de consciência, como na expressão “mundo interi-or”. Na fenomenologia de E. Husserl († 1938), o mundo exterior e o das relações humanas dão lugar a uma significação distinta do conhecimento objetivo e científi-co. Não é esta definição que se presta a nossa especulação.

O mundo é hostil na medida em que não acolhe o Filho de Deus (cf. Jo 1,10), por isto os evangelhos afirmam que Jesus não era “desse mundo”. Na mesma trilha de idéias, podemos encontrar a figura de Satanás como “príncipe deste mundo” (cf. Jo 12,31; 14,30; 16,11). Assim, temos o mundo criado por Deus, cheio de bens e maravilhas, disponível à criação e onde se desenrola a história humana. Aqui a pa-lavra mundo tem uma conotação eminentemente positiva e perfilada ao projeto di-vino. De outro lado, encontra-se referências a mundo, como algo “mundano”, dife-rente (e até oponente) de céu, situação esta que é regida por Satanás, o líder desse tipo de mundo, onde prolifera o egoísmo, o pecado e o mal.

O mal – nunca é demais repetir - nos compêndios de filosofia, teologia, psico-logia e história das religiões, é aquilo que é realizado em oposição ao que é lícito (mal moral) ou o que se contrapõe ao desenvolvimento normal da vida e da nature-za em geral (mal físico), ou, ainda, ocorre a partir de ações negativas das for-ças/causas sobrenaturais (mal metafísico). É em cima dessas três características (mal físico, moral e metafísico) que vamos ordenar nosso estudo daqui para frente. Dissertando sobre os aspectos das crenças, na luta contra o mal na história huma-na, aos quais designa como “veneráveis objetos da fé religiosa”, Jung chama a a-tenção, já no prefácio de sua emblemática obra, sobre o risco de os leitores serem reduzidos a pedaços, no entrechoque das partes que discutem essa dialética do bem e do mal. O mal se torna um corolário da relação do tentador com a humani-dade. Deus parece nada ter a ver com isto...

É esta a grande lição das religiões a respeito do pecado de “Adão e Eva”. Con-fiar em Deus, seguindo o caminho que ele mostra, é fonte de bênção. Afastar-se de Deus para seguir os próprios caminhos, é a causa de toda a miséria da humanida-de. Por causa do seu pecado, Adão e Eva são expulsos do paraíso, onde viviam feli-zes juntos de Deus. É uma imagem das conseqüências da recusa de Deus e do seu amor. Mas a bondade de Deus supera essa maldade. Ele promete a salvação por meio da descendência da mulher. Jesus esmagará a cabeça da serpente...

Uma questão capaz de auxiliar a prossecução de nosso debate: O homem de hoje, desde o jovem estudante ao grande estadista, é menos maldoso que o adam pré-histórico? Tem menos tendência à ruptura? Por certo que não! Por que não damos chance a Deus fazer o mundo como ele projetou? Nós nos queixamos do mal, mas geralmente ficamos só no discurso; fazemos pouco para melhorar as coi-sas. No entanto, repete-se a questão crítica: por que Deus não deu outra chance à-quele casal, a quem ele criou e amava tanto? O que importava mais: ser justo ou ser misericordioso?

O problema do mal tem sido uma preocupação central dos filósofos e de to-das as grandes religiões. Em fins do século IV, Santo Agostinho sugeriu que o mal, que não foi criado por Deus, é a privação ou ausência do bem, filosofia que teve grande influência entre os pensadores cristãos posteriores. No século XVII, G. W. Leibniz († 1716) afirmou que o poder de criação de Deus se limitava a mundos logi-camente possíveis e que o mal é uma parte necessária do “melhor de todos os mundos possíveis”.

Curiosamente – há quem classifique como “tragicamente” – lê-se nas obras clássicas, máxime Santo Agostinho, que a morte vai nos livrar da influência do mal. Ao que tudo indica, o triunfo do bem só vai ocorrer na dimensão da escatologia. E os sessenta ou oitenta anos da vida terrena? Fica tudo restrito a um “vale de lágri-mas”? Os escritos cristãos, desde o período medieval parecem assestar sua argu-mentação no sentido de que, de todo o mal Deus faz brotar um bem maior. Nessa linha de argumentação, devemos considerar o exemplo bíblico de José, no Antigo Testamento.

Na narrativa, o filho preferido de Jacó foi vendido como escravo pelos seus irmãos. Embora eles quisessem o mal dele – tinham inveja de sua inteligência e sua influência junto ao patriarca –, as coisas se encaminharam para um desfecho me-lhor possível. O mal estaria no mundo, parcialmente, porque nós damos lugar a ele. Nesse aspecto, a fé cristã – parece-nos – é meio estóica, uma vez que imprime à questão um desfecho inédito, no qual o mal não é problema a solucionar antes de crer em Deus. Mesmo assim, mesmo sem ser explicado – pelo menos em suas ori-gens e causas – o mal se converte em um mistério a ser vivido através da fé. O mal é uma das questões clássicas da moral e filosofia da religião.

Para muitos filósofos modernos, a ignorância (que também poderíamos cha-mar de mal epistemológico) não é, todavia, hoje tratada sob título de mal, assim como a finitude humana também não é tida como sendo realmente um mal. Ao contrário, a doutrina ética de Platão († 347) apontava a virtude como fonte de todo bem. Logo, o mal era fruto da ignorância.

A arte mitológica do Oriente Médio, observada, entre outros sítios, na Porta de Ištar (local histórico de Bagdá) representa o bem e o mal como duas serpentes, enrodilhadas, que se cruzam, se misturam e se interpenetram, uma tentando devo-rar a outra. Na dialética que contempla o confronto entre o bem e o mal, nem sem-pre é possível identificar contornos, princípios ou conseqüências.

Aliás, em se tratando dessa dialética do bem e do mal, há uma história inte-ressante, verídica ou não, inserta na vida do famoso pintor Leonardo da Vinci († 1519). Contam que o consagrado artista estava procurando homens, mais ou me-nos jovens, para servirem de modelos para Jesus e Judas para uma de suas obras-primas, A última ceia (1495/1497), um mural para o refeitório do mosteiro de Santa Maria delle Grazie. Nesta busca, ele encontrou, num coral de igreja, um rapaz, de seus trinta anos, de fisionomia alegre e serena, e convidou-o para posar. O jovem aquiesceu e seu rosto foi retratado no contexto da tela, como Jesus Cristo. Estava perfeita a imagem do Redentor, pintada.

Para achar alguém que se parecesse com a imagem que o artista concebera de Judas foi mais difícil. Por conta disto, a obra esteve parada por três anos. Um dia, andando na rua, Leonardo viu um homem vestido de farrapos, caído em uma sarjeta. E ainda por cima, bêbado. Tratava-se de uma pessoa prematuramente en-velhecida, face amargurada, com olhos duros e frios. O artista viu em seu rosto as marcas da impiedade, do egoísmo e do pecado. Convidou-o a posar e o mendigo a-ceitou. Quando terminou a sessão, já mais sóbrio, o homem disse: “Eu já vi este quadro antes?”. Da Vinci perguntou: “Viu quando, se ele nunca saiu daqui?”. O jo-vem baixou a cabeça e com voz trêmula respondeu: “Há três anos... antes de perder tudo o que eu tinha, eu posei para a face de Jesus!”.

Isto mostra que o bem e o mal podem ter a mesma face; tudo depende da é-poca em que cruzam o caminho do ser humano. Olhando as catástrofes e tragédias do cotidiano de nosso mundo, quando tanta gente morre – especialmente crianças – outros sofrem mutilações no corpo e na alma, e tantos perdem seus haveres, suas esperanças e um sentido mais claro para suas vidas, ficamos nos perguntando: porque há tanto sofrimento? por que algumas pessoas sofrem tanto? Será que as vítimas merecem, indistintamente, sofrer tantos males?

Falando em catástrofes, teríamos que mencionar o terremoto de 1556, na ci-dade chinesa de Shaanji, que matou 800 mil pessoas (foi o maior da história da humanidade), e o recente (dezembro de 2004), no Sudeste Asiático, que matou cer-ca de 300 mil pessoas. A questão do mal inflete para o sofrimento dos inocentes, crianças, turistas, trabalhadores. Sabe-se que um evento assim é provocado pela natureza, movimentação das placas tectônicas, que geram terremotos e maremotos. Isto tem explicação. O que fica difícil de justificar é, mais uma vez, o sofrimento do inocente.

No terreno do mal natural, os fenômenos da natureza têm sua explicação no tempo, quente, frio, frentes de instabilidade, choques térmicos, etc. Explicação téc-nica existe. Mas, se temos uma Providência, para a qual nem a queda de um fio de cabelo de nossa cabeça escapa, por que é permitido ocorrer o fenômeno, se vai a-carretar tanto sofrimento? E as orações do povo, que clama “livrai-nos do mal...”, não são ouvidas nestes casos?

Muita gente sugere que a ocorrência do mal é capaz de fornecer oportunidades adequadas para a sociedade praticar grandes ações (solidariedade, envio de remédios, água, comida, material de construção) para remediar/minimizar os processos do desastre. Os males naturais – em geral ocorridos com os outros – criam oportunidades para fazermos várias escolhas entre o bem e o mal e a ocasião de desempenhar ações de tipos particularmente valiosos e solidários. Mas será que o mal acontece apenas para provocar a nossa solidariedade? São questões que pretendemos costurar, no decorrer deste trabalho.

Na “visão pessimista” de Voltaire há tópicos dignos de estudo. Se há uma coi-sa que é capaz de colocar em dúvida tudo o que a Teologia ensina é a questão do mal. A história está cheia de relatos a respeito de pessoas cuja fé, tida como “inaba-lável” vacilou (e até sucumbiu) diante do tormento da dor, do sofrimento injusto e da morte. No início do Gênesis já tinha ficado claro que tudo o que Deus criou era muito bom. Então por que existe o mal?

O filósofo François-Marie Arouet, chamado Voltaire († 1778) viu o mal no mundo através do inverso das opiniões vigentes, em geral religiosas. Seu trabalho Candide (Cândido) é uma das obras mais conhecidas, insertas nos clássicos da lite-ratura mundial, e que mais controvérsia tem gerado. Não se sabe se o autor, um ateu confesso, titulou o livro com um nome próprio, ou tratava-se de um indivíduo candide, cândido, puro, ingênuo.

No mês de novembro de 1755, era feriado, dia da festa de “todos os santos”, a cosmopolita cidade de Lisboa foi sacudida por um terrível terremoto, cuja violência praticamente destruiu toda a cidade, deixando consternada toda a Europa. A ori-gem desse mal, que não pode ser determinada pelo povo daquele tempo, iria, mais tarde, influenciar definitivamente o pensamento de Voltaire. Ele tomou conheci-mento da tragédia alguns dias depois, quando teria escrito o poema “Sobre o De-sastre de Lisboa”, onde, em um trecho, ele afirma: “Um dia tudo estará bem, eis nossa esperança. Tudo está bem hoje, eis nossa ilusão”. Usando sua capacidade de filósofo e ensaísta, Voltaire transformaria, com grande criatividade, a catástrofe em um evento notável, de múltiplas facetas, ao utilizá-lo como exemplo para criticar o paradigma do “otimismo filosófico” e a doutrina cristã da Providência Divina. Voltai-re era agnóstico e manifesta isto em seus trabalhos.

E foi através do terremoto de Lisboa, que a concepção leibniziana do “melhor dos mundos” seria rechaçada pelo pensamento de Voltaire, que julgava ser corrobo-rado por aqueles que presenciaram o desastre. Se tudo está bem, qual é o significa-do da tragédia? Se o mundo está em ordem, nada garante que a ordem se faça para o bem-estar do homem. Qual a razão do mal que vitimou tanta gente?

Como no exemplo bíblico de Sodoma e Gomorra, muitos diriam que Deus castigou a cidade, e a desgraça foi o preço pago por sua luxúria. Mas, e quanto aos inocentes? Ou, por outra, por que Lisboa e não Paris, Roma ou Londres? Se Deus não poderia ter feito um mundo diferente, inclusive melhor – eis a questão – como poderíamos restringir seu poder, a ponto de questionar se ele não poderia ter con-cebido sua criação de outra maneira? Se é Deus quem está por trás de tudo e ele é bom e justo, então qual é a finalidade do sofrimento humano?

Recai-se na questão original: se Deus é bom, então por que existe o mal? Se o mundo é um vale de lágrimas, então o universo contradiz o otimismo: como com-preender a lição de um Deus bondoso que permite a existência do mal? Nessa ar-gumentação, Voltaire cita Epicuro em sua exortação a Lisboa ao concluir que ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou pode e não quer, ou nem quer e nem pode. Mas, se quer e não pode, não é Deus; se pode e não quer, não é bom, o que é con-trário a Deus. Por fim, se quer e pode, o que é a única coisa compatível com a di-vindade, “qual é a origem de todos os males?”, pergunta Voltaire, fazendo coro ao pensador grego.

Voltaire admitia a idéia de uma ordem geral no mundo, mas percebeu que Leibniz não respondeu a Epicuro, e que a maioria das questões sobre o mal – espe-cialmente o sofrido pelo inocente – ficava sem resposta. A teoria providencialista e a ciência explicam o incidente em Lisboa, mas não o demovem da idéia de que o ter-remoto é um exemplo da ruptura da razão, um exemplo de como o ser humano é frágil e vive num lugar onde tudo pode acontecer, sem que possamos fazer nada. Ele usa uma figura alegórica que ficou célebre: desordenado, o mundo mais parece um relógio maluco, que não pode sequer ser compreendido pelo homem.

Porém, essa ignorância seria o reconhecimento dos limites da razão humana em debater-se sem jamais encontrar uma resposta satisfatória. Ao filosofar sobre o mal em Cândido, por exemplo, ele conclui que é melhor trabalhar a terra, o que não seria uma forma de resignação, mas o reconhecimento da impotência, de sua “igno-rância” diante de um exagerado otimismo. Isso leva-o a acreditar, de uma forma “cândida”, que o mundo não seria tão mau quanto parece. Mais do que cético, pa-rece-nos estóico.

A Europa e toda a Cristandade viveram uma grande crise com o terremoto que devastou Lisboa, fazendo mais de 20.000 vítimas. Depois do terremoto veio a ressaca do mar trazendo consigo a morte, e depois desta, o fogo, a peste, a fome e os saques. Qual a visão dos nefastos “quatro cavaleiros” do Apocalipse, de repente, o cataclismo, qual um ataque demoníaco, a cidade foi destruída. A tragédia foi i-nesperada. Tudo estava bem, de repente ocorreu a catástrofe. Era “dia de todos os santos”...

Fiel ao estilo francês, Voltaire expõe suas concepções com fina ironia, bor-dando tudo com uma fina crítica às instituições de sua época. O romance, na maio-ria dos seus parágrafos, caracteriza-se como uma sátira às idéias de Leibniz, que afirmara, pelo menos assim o entendeu Voltaire, que este mundo é o melhor possí-vel, que Deus não poderia ter construído outro melhor, e que tudo corria às mil maravilhas. Os elementos de sua teodicéia, baseada em Santo Agostinho, perdura até hoje.

Para Voltaire, diante das circunstâncias, era impossível compartilhar com a idéia otimista, pois sua visão estava focada em prisões e perseguições, a tal ponto que, por volta de 1753, ele já não podia fixar-se, sem risco, em lugar algum da Eu-ropa. Nesse mundo atormentado, o personagem Cândido, como tantas pessoas da-quele tempo, foi expulso de onde morava. Preso e torturado, ele perdeu sua amada Cunegundes, e seus melhores amigos. Em todos esses eventos ocorreram fatos constrangedores, com requintes de crueldade. Mas a cada um desses fatos, Cândi-do meditava sobre como explicar o melhor dos mundos possíveis, sempre com um deboche mais ou menos sutil.

Como é peculiar a todos os seus trabalhos, a obra de Voltaire também criti-cou frontalmente os costumes, a cultura, a religião e as artes de seu tempo. Embo-ra haja escassas referências ao fato, a obra questiona a criação do melhor dos mun-dos possíveis na perspectiva do recém ocorrido “terremoto de Lisboa”, onde milha-res de pessoas perderam a vida. O livro enfoca fatos desse jaez, perquirindo o por-quê da morte do inocente.

Para salvar o homem, o Deus onipotente deverá vencer o Mal e o Maligno (cf. Ez 38-39; Ap 12,7-17). Sabemos que Jesus se encarnou para libertar a humanida-de. Trata-se de uma libertação futura, escatológica. Os homens anseiam pela vitó-ria do Bem sobre o Mal ainda nesta vida. Sabemos que Deus é bom; quando ocorre-rá esta vitória, se o ser humano ainda sofre penas tão cruéis? De qualquer modo, sabe-se que a questão do mal, não passou despercebido pelos grandes teólogos da Igreja, e tem havido muitas tentativas de resolvê-la, ou pelo menos explicá-la. É ne-cessário examinar cuidadosamente os argumentos.

Sabendo que o mal ofende a Deus, em primeiro lugar, injuria e age contra o projeto divino, cabe ao teólogo o dever de mostrar a legitimidade do grito daquele que sofre, desnudando assim o lado cruel da maldade e a face paterna de Deus. Neste terreno, os outros podem calar; o teólogo não.

Na hora de perquirir a origem do mal é que os raciocínios se confundem. Sa-bemos que Deus não é criador do mal. Mas, assim como sabemos isto, questiona-mos o fato de ele prever sua incidência e não evitá-la. Os teólogos oficiais vinculam o mistério do mal ao sofrimento de Cristo. Respeitando a liberdade dos maus, o Pai permitiu a paixão e a morte do Filho. Este sofrimento tinha um propósito, o resgate da humanidade (pelo binômio morte/ressurreição). O sofrimento do inocente é uma dor gratuita. Sabendo-se – como já vimos lá atrás – que Cristo sofreu e morreu “de uma vez por todas” (cf. Rm 6,10), ninguém precisaria “completar” o que faltou, pois não faltou nada na obra da redenção.

Há outra explicação a se buscar: por que os “milagres” de Deus não seguem uma lógica? Se formos examinar detidamente, veremos que não existe nenhuma lógica nos milagres de Deus: pessoas sofrem pequenos acidentes, às vezes domésti-cos, e morrem ou ficam inválidos; outros, passam por problemas gravíssimos, onde o esperado é a morte, e alguns escapam “por milagre”. Deus tem um projeto para o homem, sabemos. A questão é: a quem ele contempla com seu socorro? Às vezes os descrentes se dão bem, em outras, devotos sofrem

O ato de saber-se fraco e vulnerável, pode levar o ser humano a vários tipos de reação: a) torna-se angustiado por sua fragilidade; b) por um exacerbado com-plexo de culpa, passa a ver pecado em tudo; c) assume atitudes de um misticismo exagerado, como se tudo cheirasse a “fim-do-mundo”, ou d) assume um “deixa a vida me levar”, perdendo referenciais, por sentir-se vítima de uma situação para a qual ela não tem solução nem resposta.

A palavra angústia, para o contemporâneo M. Heidegger, surge do confronto do indivíduo com o nada e com a impossibilidade de encontrar uma justificativa última para a opção que cada pessoa tem de fazer. O desesperançado Sartre, em-prega a palavra náusea para descrever o reconhecimento, pelo indivíduo, da contin-gência do Universo. Essa náusea torna-se um fastio de viver.

Mesmo que se diga que o mal é simplesmente a “ausência do bem”, isso não significa que ele deixa de ser um problema, ou que é menos danoso por causa desta forma de defini-lo. Uma conceituação como “ausência do bem” é uma falha tão no-tável quanto à existência do mal. Aqui se dá propriamente o deslocamento da pro-blemática centrada em Deus para a problemática centrada no homem. Observa-se aqui uma visão unilateral de Agostinho: o autor do mal é o próprio homem pois, [...] cada pessoa ao cometê-lo é autor de sua má ação.

Se o homem é o autor do mal, a pergunta que se impõe, e Evódio a fará a A-gostinho: “Unde male faciamus?” – de onde vem o praticarmos o mal?” A resposta a essa pergunta será a culminância do tratamento da problemática do mal em Agos-tinho, e ele a faz limpidamente, sem deixar dúvidas.

Para provar que Satã estava errado, Deus permitiu que ele cobrisse o inocente Jó de incalculáveis desgraças. Embora a história de Jó seja uma ficção (uma pará-bola), há alguns desencontros doutrinários, pois parece que o autor desconhece a onisciência de Deus, uma vez que, enxergando à frente, ele sabe(ria) da fidelidade de Jó, sem necessidade de provar coisa alguma ao Diabo. A respeito dessa dualida-de bem/mal que os povos primitivos viam nas atitudes de Deus, há um texto inte-ressante, do grego N. Kazantzakis:

Alguém veio. De certo foi Deus. Deus... Ou foi o Diabo? Quem pode separá-los? Eles trocam suas faces. Deus às vezes se torna silêncio e escuridão; o Diabo, luz total, e a mente do homem se torna confusa (In: The last temptation, Creta, 1955).

O nosso mundo, cheio de vícios e pecados, é o infeliz resultado da escolha humana. Nossas escolhas geralmente são desastradas. Nem mesmo Satanás pode nos forçar a pecar. Nosso coração é um santuário onde só Deus pode penetrar. O Maligno pode influenciar nosso agir, induzir-nos ao desajuste, mas jamais saber o que vai dentro de nosso coração. As dores, os sofrimentos e mesmo a morte são partes integrantes do mundo material em que vivemos, tudo ocorre devido ao peca-do de Adão. O cristianismo, no entanto, oferece a esperança através do sofrimento de Jesus Cristo. O mal deste mundo não é prova de que Deus não existe, mas uma constante lembrança da nossa necessidade do socorro do Deus perfeito, revelado na Bíblia (cf. 2Cor 1,8-9).

O autor é escritor, filósofo e Doutor em Teologia Moral. Sua tese de doutorado, que versou sobre a obra de Paul Ricoeur foi “Deus é bom. Então por que existe o mal?”. Pregador de retiros de espiritualidade, conferencista internacional e assessor de cursos bíblicos e workshops de teologia. E-mail: kerygma.amg@terra.com.br