Eu, porém lhes digo... {SERMO CXXXI)
EU, PORÉM, LHES DIGO...
Prof. Dr. Antônio Mesquita Galvão
Eu, porém, lhes digo: amem os seus inimigos,
e rezem por aqueles que perseguem vocês... (Mt 5,43).
Um dos livros que mais me impressionou foi “Eu porém vos digo...” do teólogo francês René Voillaume († 2003), presente de uma amiga de Pelotas. Comecei sua leitura no fim da década de 80, numa fase mística da minha vida, quando iniciei minha conversão, após um Cursilho e ingresso nos estudos da teologia, na Paraíba, com os mestres – a quem presto minha homenagem – José Comblin († 2011) e Dom Manoel Pereira da Costa († 2006), bispo emérito de Campina Grande, PB.
Recordo que no livro citado, Voillaume (pronuncia-se voaiôme) comparou o “Sermão da Montanha” como o ruidoso rolar de sete pedras “montanha abaixo” agitando irreversivelmente as calmas águas da indiferença humana. Naquela época, os admiradores dos textos do “Sermão da Montanha” eram curiosamente chamados de montanhistas. Recentemente estive em Israel onde visitei a Igreja das Bem-aventuranças e constatei que a montanha não é tão “montanha” assim, mas uma suave colina, em Cafarnaum, na margem esquerda do Lago Genezaré.
O livro, que está esgotado na editora, inexplicavelmente sumiu da minha biblioteca; não está mais comigo. Mudanças de residência, reduções de espaços em armários, expurgos, empréstimos e mistérios, tudo contribuiu. O fato é que um desses fatores oportunizou a lacuna aludida. O fato é que na necessidade de pesquisar para este trabalho que ora apresento, tive que me valer de outras fontes.
No contexto do “sermão da montanha” (cf. Mt 5–7) vamos encontrar no conjunto 5,17-48 uma contundente e significativa interpretação da vetusta lei judaica, adaptada ao cristianismo. Não se trata de estabelecer uma mudança da lei divina, pois esta é essencialmente imutável, mas coloca uma nova forma de vê-la, de senti-la e – sobretudo – de colocá-la em prática.
Jesus quer demonstrar, através do evangelista, que muito da antiga fé deve ser aceito. Não seria prudente criar um cisma entre a antiga e a nova lei, quanto a conceitos básicos. Todavia, em muitos textos da pregação do rabi da Galiléia há um ponderável confronto entre o antigo e o novo. Ver, por exemplo, nos vv. 33-37 onde Jesus passa por cima de todos os juramentos, algo muito comum e seguidamente praticado no judaísmo. Embora diga que não veio abolir a lei, Jesus ao dar novo entendimento aos textos antigos, através do egôo dé lego ymin (eu porém digo a vocês...) Como um novo Moisés, Jesus altera a lei antiga produzindo um novo texto.
No início do texto, ora em estudo, Jesus, referindo-se à Lei (torá) e à justiça (sedaqah) afirma suas propriedades eternas, imutáveis e pedagógicas mas, mesmo assim, o ato de dar-lhe um pleno cumprimento equivale a, dando uma nova interpretação à mesma, modificar a maneira de empregá-la nos casos concretos do dia-a-dia.
Não pensem que eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas dar-lhes pleno cumprimento. Eu garanto a vocês: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem sequer uma letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo aconteça. Portanto, quem desobedecer a um só desses mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu. Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do Céu (Mt 5,17ss).
Nessa determinação, o Mestre, dando continuidade às bem-aventuranças ressalta a preponderância da justiça inspirada no amor de Deus e nos critérios do evangelho, que atua supervenientemente àquela praticada nos tribunais humanos e em muitos segmentos das igrejas.
Com efeito, eu lhes garanto: se a justiça de vocês não superar a dos doutores da Lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino do Céu (Mt 5,20).
Muitas crises do cotidiano, sociais, econômicas, políticas, familiares e até religiosas são fruto da ausência de justiça, solidariedade e de comunhão fraterna. Essas crises no seio de nossa sociedade geram revoltas, manifestações, confronto e greves, perturbando a paz, a ordem e o progresso. Os que buscam ardentemente a justiça haverão de encontrá-la pela palavra de Cristo. Vão alcançá-la porque a justiça nasce do coração puro, da alma simples e do desapego das coisas materiais.
O nosso povo, hoje em dia, especialmente na América Latina, por conta de muitos sistemas injustos e excludentes, passa fome, sofre constrangimentos e não tem seus direitos respeitados. Sua fome se caracteriza pela privação de diversas coisas. Primeiro é a crise dos bens. Os ricos buscam saciar-se, sem olhar para os lados, desprezando o sofrimento dos outros. Com isto sobra menos farinha na panela do carente.
O pobre, especialmente na América Latina, a despeito de tantos “programas sociais” e “bolsa disto e daquilo” ainda é assaltado por diversos sobressaltos, como o desemprego, pelos problemas de saúde pública, educação, golpes de estado e segurança, sem falar nas questões da habitação e pela exploração dos bancos e dos grandes conglomerados mercantis. Isto é um processo endêmico de injustiça institucionalizada que fere e maltrata. Falta, por aqui, o respeito à dignidade humana por diversos segmentos da sociedade. Não adianta bradar “Senhor, Senhor!” e não fazer o que ele manda (cf. Mt 7, 21). Jesus veio para alterar nossa maneira de ver e nossos critérios de justiça.
As coisas velhas e novas sempre sustentaram um confronto pragmático, funcionalista e ideológico. Até nas pessoas se revelam traços dessa conduta, com conflitos de gerações, para saber quem tem mais sabedoria, experiência e vitalidade. Enfim, sempre se buscou a síntese do certo e do errado, do útil e do inútil, da verdade e da mentira.
Jesus também se moveu no meio dessa dialética. De um lado as antigas Escrituras, os Doutores da Lei, Escribas, Sacerdotes e Fariseus, brandindo os rigores dos dogmas da Lei de Moisés. Jesus preconizou um abrandamento dessa rigidez, mas ao mesmo tempo, um aprofundamento às origens de onde brotam todos os pecados. Acima do preceito está o amor; acima da lei, a justiça.
A primeira alteração que Jesus propõe, no campo das relações entre as pessoas, se refere às ofensas e à reconciliação. A antiga lei mosaica era muito rígida, como de resto eram todos os estatutos morais do mundo antigo. Não se encontrava, entre os antigos comportamentos, o perdão e a misericórdia. Não havia tolerância entre aqueles povos. Tudo era levado a ponta de faca.
Nesse novo contexto doutrinário, Jesus começa citando a lei antiga (vocês ouviram o que foi dito aos antigos) para depois amenizar aquela radicalidade com uma nova forma de julgar e agir (... eu, porém lhes digo...) sintetizando a forma evangélica de dar nosso sentido à vida e à sociedade humana.
Violência e ofensa
A ira encabeça as faltas que tinham na lei antiga uma conotação diversa. Essa diversidade aponta para uma nova lei, que aprofunda, vai ao detalhe, não deixa lacunas nem espaços para interpretações. O pecado (ou o crime) não é apenas o de matar, mas o simples querer o mal já equipara a falha ao delito maior.
Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: “Não mate! Quem matar será condenado pelo tribunal”. Eu, porém, lhes digo: todo aquele que fica com raiva do seu irmão, se torna réu perante o tribunal. Quem diz ao seu irmão: “imbecil”, se torna réu perante o Sinédrio; quem chama o irmão de 'idiota', merece o fogo do inferno (5,21s; Gn 9,6; Ex 20,13; Dt 5,17; Eclo 10,6).
O ato de matar alguém não começa com o empunhar uma arma, mas por desenvolver no íntimo um ódio sem retorno ou perdão. Quem odeia é assassino, pois já assassinou o outro dentro do seu coração... Tudo isto por quê? Por causa do mandamento novo: “Que vocês se amem com eu amei vocês...” (Jo 13,34).
A superveniência do perdão sobre a discórdia
Ao invés da ira Jesus ensina o perdão: Não perdoar sete vezes, mas setenta vezes sete (cf. Mt 18,22). A partir de Jesus, não matar não é suficiente para a virtude e santidade. Mesmo que não se tenha desejos de matar, abrigar a cólera e desejos de vingança no coração já é um pecado grave.
Querer o mal, irar-se com o outro, encher-se de raiva é o mesmo que ferir, agredir e matar. O pecado maior tem nas mais simples intenções seu berço e suas origens. É salutar a gente nunca esquecer a necessidade do perdão, da benignidade e da misericórdia. Mesmo que o outro tenha me ferido, em todos os aspectos, eu devo – e isto nem sempre é fácil – tentar perdoá-lo, pois esses sentimentos positivos têm inspiração divina, enquanto que o salário do pecado é a morte (cf. Rm 6,23). Jesus ensina que é preciso ir além...
Portanto, se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois, volte para apresentar a oferta. Se alguém fez alguma acusação contra você, procure logo entrar em acordo com ele, enquanto estão a caminho do tribunal; senão o acusador entregará você ao juiz, o juiz o entregará ao guarda, e você irá para a prisão. Eu garanto: daí você não sairá, enquanto não pagar até o último centavo (vv. 23-26).
Contra os desejos da carne e concupiscência
A cultura ocidental, em geral machista, trata o adultério com uma ambigüidade cínica, pois releva-o no homem e imputa-o como crime e transgressão quando cometido pela mulher. Nossa sociedade, via-de-regra corrupta e imoral, sempre tem voz de condenação contra a adúltera e nunca contra o homem que comete a mesma falta. Ao contrário, certos segmentos acham o adultério como coisa natural, expressão de virilidade, símbolo de masculinidade.
Vocês ouviram o que foi dito: “Não cometa adultério”. Eu, porém, lhes digo: todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração. Se o olho direito leva você a pecar, arranque-o e jogue-o fora! É melhor perder um membro, do que o seu corpo todo ser jogado no inferno. Se a mão direita leva você a pecar, corte-a e jogue-a fora! É melhor perder um membro do que o seu corpo todo ir para o inferno (vv. 27-30; Ex 20,14; Dt 5,8; Eclo 9,5).
O adultério é pecado, pois não nasce de um encontro sexual de duas pessoas, mas brota no coração, muito antes, quando se deu liberdade ao pensamento e ao desejo. Já há pecado quando se consente com o coração. Se bem-aventurados são os puros, cujo prêmio maior será a visão íntima de Deus (cf. Mt 5,8) no seu Reino, esses puros são aqueles que fogem de qualquer ocasião de pecado, fogem do adultério, não se dedicam às obras da carne (cf. Gl 5,19ss) nem se permitem albergar maus pensamentos em seus corações. Jesus ensinou que quem comete pecado se torna escravo do pecado (cf. Jo 8,34) e quem se dedica às obras da carne se torna um escravo da concupiscência, incapaz de se elevar, de se libertar e de aspirar aos dons mais elevados.
Quando Jesus nos diz “eu porém digo a vocês...”, referindo-se aos pecados da impureza, cabe a nós a reflexão de que não cometer o pecado não é o bastante, mas é importante não consentir, não o acolher no nosso coração, pois é do coração que saem todos os males, daí a necessidade de se orar sempre: “Senhor, dai-me um coração puro!”.
Matrimônio e divórcio
O divórcio, no tempo de Moisés era tolerado, em caso de traição (adultério ou fornicação). Alguns fariseus (como ocorre hoje em dia) pensavam que o homem podia repudiar sua mulher a seu bel-prazer. A proibição do divórcio, a partir do cristianismo visou a defesa da mulher e da família, que abandonados pelo marido corriam o risco da miséria ou da prostituição.
Também foi dito: 'Quem se divorciar de sua mulher, lhe dê uma certidão de divórcio'. Eu, porém, lhes digo: todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por causa de fornicação, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada, comete adultério (vv. 31s; cf. Dt 24,1-4; Os 1,1; Ex 20,7; Nm).
Quem abandona marido ou mulher é responsável por eventuais adultérios cometidos a partir daí. Igualmente, quem se une a uma pessoa divorciada, igualmente comete adultério. Buscando sair pela tangente, como os argumentadores de todos os tempos, os judeus tentaram confundir a Jesus:
Os fariseus perguntaram: “Então, como é que Moisés mandou dar certidão de divórcio ao despedir a mulher?” (Mt 19,7; cf. Dt 24,1)
A resposta do Mestre é desconcertante e coloca as coisas nos seus devidos lugares:
Moisés permitiu o divórcio, por causa da dureza dos corações de vocês. Mas não foi assim desde o início. Eu, por isso, digo a vocês: quem se divorciar de sua mulher, a não ser em caso de fornicação, e casar-se com outra, comete adultério (v. 8; cf. Dt 5,32).
A separação de um casal sempre traz consigo a chance de conduzir um dos cônjuges (ou os dois) ao desvio do adultério e de outros deslizes desse gênero.
Juramento e verdade
O juramente é hoje uma coisa bastante desconsiderada, especialmente por quem jura ou promete. Pessoas juram nos tribunais, mas cometem grotescos falsos testemunhos; casais fazem juramento no altar mas muitos deles descumprem seus compromissos de respeito e fidelidade. Muita gente quebra juramentos e votos de vocações e de estados de vida, demonstrando irresponsabilidade, frivolidade e comportamento imaturo. Outros ainda, para fortalecer mais suas afirmações, juram “por Deus Nosso Senhor”, por suas vidas, pelos filhos, pela alma da mãe, e nem sempre praticam um ato de coerência com a verdade. Não adianta jurar e não cumprir aquilo que jurou. Jesus veio para valorizar o julgamento dando a ele uma nova dignidade:
Vocês ouviram também o que foi dito aos antigos: “Não jure falso, mas cumpra os seus juramentos para com o Senhor”. Eu, porém, lhes digo: não jurem de modo algum: nem pelo Céu, porque é o trono de Deus; nem pela terra, porque é o suporte onde ele apóia os pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei. Não jure nem mesmo pela sua própria cabeça, porque você não pode fazer um só fio de cabelo ficar branco ou preto. Diga apenas “sim”, quando é “sim” e “não” quando é “não”. O que você disser além disso, vem do Maligno (vv. 33-37; cf. Sl 48,3).
A dialética do sim e do não é empregada hoje em dia para falsear a verdade. É comum o emprego do sim em lugar do não, e vice-versa. Nosso modelo social já está acostumado, a partir das promessas dos políticos e do juramento de alguns casais, a essa variação. É preciso dizer sim com a boca e professar com o coração e com as atitudes.
É falsidade, inspirada no Maligno, pensar não e dizer sim, ou ter convicção positiva no coração, mas por covardia ou por interesse, dar um solene “não”; Jesus ensina, pela repetição do “sim” ou do “não” a firmeza da convicção no que é certo ou errado. Quem leva a sério o culto da verdade não precisa recorrer a juramentos para obter a confirmação de suas intenções.. Quem é mentiroso jura em falso, desagrada a Deus e perde a credibilidade com as pessoas.
Vingança, opressão e resistência
No livro do Siracida encontramos um texto que pode ser visto como a idéia base para a oração do Pai-Nosso que Jesus nos ensinou:
Aquele que se vinga sofrerá a vingança do Senhor, que guardará seus pecados na memória. Perdoa a teu próximo o mal que ele te fez e os teus muitos pecados serão perdoados quando o pedires (Eclo 28,1s).
Embora contemplada com o beneplácito legal das leis do mundo antigo, a vingança sofreu acérrimas críticas do cristianismo, por contrariar o mandamento do amor e as normas que estatuem o perdão. A lei do talião mandava responder “olho-por-olho” e “dente-por-dente” para que nenhuma ofensa ficasse sem revide. Tais atitudes só serviam para acirrar os ânimos e fomentar uma violência maior do que a que pretendia combater.
Vocês ouviram o que foi dito: “Olho por olho e dente por dente”. Eu, porém, lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda! Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto. Se alguém obriga você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele. Dê a quem lhe pedir, e não vire as costas a quem lhe pedir emprestado (vv. 38-42; cf. Ex 15,7ss; 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21).
A nova ordem, instituída por Jesus após a “aula magna” proferida no Sermão da Montanha deixa bem claro, de forma cristalina e irrefutável que o cristão não é alguém que resiste ou se vinga, mas um membro da comunidade que vai mais além, que transcende, que é capaz de dar a quem pede e a servir a quem precisa. Esse ir além significa amar mais, doar-se mais, rivalizar-se para ver quem serve mais (cf. Rm 12,10) e assim demonstra mais amor por Cristo e pelo Pai. Neste aspecto, Jesus preconiza a pureza e a prudência de atitudes a todos os seus discípulos:
Eis que eu envio vocês como ovelhas no meio de lobos. Portanto, sejam prudentes como as serpentes e simples como as pombas. Tenham cuidado com os homens, porque eles entregarão vocês aos tribunais e açoitarão vocês nas sinagogas deles. Vocês vão ser levados diante de governadores e reis, por minha causa, a fim de serem testemunhas para eles e para as nações (Mt 10, 16ss; cf. Gn 3,1; 13,13; Eclo 13,17).
A vingança embrutece o ser humano, deteriora as relações em sociedade, anestesia o espírito e cria uma cegueira espiritual. O homem, muitas vezes, busca desforra contra os outros porque não pode se vingar dele mesmo. O célebre escritor francês Georges Bernanos (†1948) afirmou que “o homem se vinga porque transfere para o outro seus erros, falhas e imperfeições”.
Amar como o Pai ama: a perfeição
O ser humano foi criado para a perfeição e para a imortalidade. Esta é uma verdade incontestável e um artigo de fé. Nós nos tornamos mortais, vulneráveis e imperfeitos por causa da queda original, a qual assumimos com nossa liberdade (livre-arbítrio) mal administrada. No entanto, o Verbo de Deus se fez carne para livrar a carne de todo o pecado (pela graça) e da morte (pela ressurreição).
No evangelho ora em estudo, vemos que Jesus nos convida a sermos perfeitos como o Pai. Vejam que no “eu, porém, digo a vocês...” há uma série de exigências que nos afastam daquele formalismo da lei judaica, para ingressarmos na esfera do cristianismo, onde a justiça, o perdão e o amor se tornam distintivos. Assim devemos amar, pois é desta forma que Deus nos ama...
Vocês ouviram o que foi dito: “Ame o seu próximo, e odeie o seu inimigo”. Eu, porém, lhes digo: amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês. Assim vocês se tornarão filhos do Pai que está no céu, porque ele faz o sol nascer sobre maus e bons, e a chuva cair sobre justos e injustos. Pois, se vocês amam somente aqueles que os amam, que recompensa vocês terão? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? E se vocês cumprimentam somente seus irmãos, o que é que vocês fazem de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa? Portanto, sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu (vv. 43-48; cf. Gn 4,7; Lv 19,2.18; Dt 23,4.7; Eclo 4,10).
Não adianta praticar um cristianismo de palavras ou boas intenções. É preciso uma tomada de atitudes. Os critérios revolucionários do evangelho apresentam a motivação para explicarmos (e entendermos) o alcance e a raiz do ser-cristão e de ser perfeito como o Pai é perfeito.
Trata de um amor que não pode ficar restrito ao “grupo” ou ao “círculo” mais próximo, mas a todos, aos distantes, aos não-simpáticos e aos que não pensam como a gente. Deus ama a todos, bons e maus, justos e injustos. É assim que ele nos ama e este deve ser nosso “distintivo” (cf. Jo 13,35). Esta é a modificação mais radical da Lei de Moisés
Eu creio que nós podemos ser perfeitos, sim. Se Jesus recomendou assim é porque isto é possível. Ele não faz jogo de palavras, nem nos apresenta charadas ou armadilhas. Os santos se tornaram santos e perfeitos na caminhada para o Reino, por conta do amor e da perseverança. Nós todos somos chamados à santidade.
No evangelho, ora em questão, Jesus usa a expressão grega teléios que aponta para uma perfeição de conduta. O Mestre equipara a perfeição humana (relativa e circunstancial) à perfeição de Deus (absoluta e eterna). Pela doutrina da transformação do crente à imagem de Cristo, sabemos que a perfeição não somente é possível, mas resultante daquele processo de santidade que vem implícito no projeto de Deus. Qual o objetivo desse projeto? A santidade e, por conseguinte, a perfeição. Essa transformação não é imediata, mas ocorre durante a vida humana e vai desembocar em um ponto futuro, que conhecemos como “salvação”. A perfeição deve incluir os princípios preconizados por Jesus no “Sermão da Montanha
No Antigo Testamento era recomendado que se imitasse a santidade de Deus (cf. Lv 19,1). No evangelho Jesus retoma o assunto da perfeição e a centraliza no amor (cf. Jo 13,34s). A vida em comunidade é o ninho onde o amor acontece. Sabemos, através de Thomas Merton († 1968) que “Homem algum é uma ilha...” Isto evidencia a necessidade de um modelo de vida associativo, através do amor, da partilha e da participação. Nesse esforço cabe ao cristão sempre ir além, ficando um passo a frente. Nunca é demais repetir:
Portanto, se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois, volte para apresentar a oferta (v. 23)
Para um coração que busca a conversão nunca há lugar para o ódio ou para a vingança. Nisso reside, como afirmou Santa Tereza, os caminhos da perfeição. Deus não odeia nem se vinga. Ele é pleno de gratuidade, perdão e acolhida. Para Jesus, a libertação dos homens é uma obra histórica confiada a eles mesmos.
Por isso eles devem fabricar os meios de libertação mais adequados à sua época. Jesus não vai fazer aquilo que nós podemos fazer. A libertação dos vícios e dos pecados, que pode levar à perfeição, deve ser a obra de uma vida, intentada a partir do esforço humano, com a inspiração e ajuda do Deus Uno e Trino.
Jesus estatuiu algumas “regras de convivência”, ensinando que não basta viver, é preciso con-viver... Só assim se descobre o verdadeiro sentido de uma vida com paz, justiça e harmonia... É difícil para muitos, mas só assim é possível nos integrarmos no espírito das Bem-aventuranças.
Escritor, com mais de uma centena de livros, entre eles “O Sermão da Montanha. Uma proposta de vida nova”, Ed. Santuário, 1992. Este é o texto-base de um retiro espiritual pregado pelo autor a um grupo de padres em São Paulo, SP nos dias 3 e 4 de agosto de 2011.