Sobre o desapego de nós mesmos
Estive na Cidade do México há alguns anos.
Antes de sair de minha cidade e de meu país, eu pensava que poderia suportar a saudade de casa, dos amigos, da família, se me esforçasse para afogar a saudade com o exercício da razão. Ela me apontava as vantagens de estar num outro país, outro mundo, numa metrópole onde as oportunidades eram maiores e onde talvez eu pudesse exercitar livremente a possibilidade de ser outra pessoa.
Mas, mesmo longe de nosso lugar de origem – onde desenvolvemos uma personalidade a parir das influências primeiras adquiridas na família e, depois, através das interpretações que fazem de nós aqueles com quem convivemos ao longo da vida – é sempre difícil deixar de ser quem somos para nos tornar outro. Livres dos preconceitos alheios que nos delimitam perfis muitas vezes inadequados, inverossímeis e, portanto, prejudiciais ao nosso desenvolvimento como pessoas, cidadãos e cidadãs, longe de tudo isso, com certo esforço, talvez possamos gozar a possibilidade de descobrir quem verdadeiramente somos e do que somos mesmo capazes.
Anos depois, senti a mesma sensação e a mesma possibilidade quando estive em São Paulo, andando solitário pela Avenida Paulista. Mesmo ainda no Brasil, ninguém em minha volta me conhecia ou fazia de mim qualquer idéia. Ali, imaginei também poder ser qualquer outra pessoa, mas, como no México, senti quão difícil é nos livrarmos das lembranças que nos constituem como indivíduo e membro de uma determinada comunidade.
O antropólogo Carlos Castaneda (1925 – 1998), quando em pleno exercício de suas pesquisas sobre as realidades, sentidas e interpretadas sob o prisma de outras culturas e influências – pesquisas publicadas numa série de livros a partir de “A erva do diabo” – aprendeu com seu mentor, o índio mexicano Don Juan, que um dos requisitos básicos à percepção de nossa integração essencial com o Todo é nos livrarmos de nossa história pessoal.
Neste ponto, quero fazer uma observação àqueles que, na qualidade de espíritas, crêem na reencarnação.
A evidência da reencarnação está a nossa volta, acima e abaixo de nossas cabeças. A Vida, essa infinita força criativa a que atribuímos o status de "Deus", manifesta-se continuamente em forma de uma infinidade de seres invisíveis, como as "mônadas", os átomos e as células, tanto quanto na forma de estrelas, pessoas e demais seres orgânicos e inorgânicos. A confusão maior sobre o fato da reencarnação se dá quando pensamos que é nossa personalidade que reencarna, nosso eu, quando sequer de fato existem aqueles espíritos individualizados com quem muitos dizem se comunicar e que, fora da encarnação, acreditamos continuar a ser. Mas nossa identidade essencial, como a de tudo o que vive, é o Espírito único, universal – daí a razão fundamental para que amemos os outros “como se fossem” nós mesmos – enquanto nossa(s) identidade(s) histórica(s) são apenas produtos da sensibilidade, da memória (tanto no nível consciente quanto inconsciente, sendo as recordações de "nossas" vidas passadas nada além de acessos eventuais a uma memória ancestral) e da imaginação.
Crer que sobreviveremos e que outros sobreviveram a desencarnações é demonstrar nosso desentendimento sobre o necessário último desapego a que compulsória e necessariamente teremos que nos submeter: a perda completa de tudo aquilo que, agora, nos faz parecer aqueles que consideramos nós mesmos.