O ATEÍSMO É UMA CRENÇA?

É comum encontrar teístas e até não-teístas sustentar que o ateísmo é uma crença. Essa estratégia pretende, implicitamente, inverter o ônus da prova para o ateísmo, passando a ele a obrigação de provar que Deus não existe, ou pelo menos dividi-lo entre ateus e teístas. O ônus da prova é um procedimento lógico que estabelece quem deve provar determinada afirmação. Assim, quem afirma algo tem que provar o que é afirmado. Se o ateísmo é uma crença, a saber, a crença de que Deus não existe, então cabe aos ateus apresentarem argumentos e/ou evidências que provem ou sustentem sua afirmação. Em alguns textos mais antigos tentei refutar a noção comum entre apologetas cristãos de que o ateísmo é uma crença. Nesse texto cometi alguns erros que espero corrigir aqui.

Primeiramente, começemos com a definição de crença. De acordo com Álvaro Nunes, crença é um “estado mental disposicional, que tem como conteúdo uma proposição, verdadeira ou falsa”. Temos aqui dois termos ou sentenças importantes: “estado mental disposicional” e “proposição”. Estados mentais são tudo que faz parte da nossa existência não-física, psíquica, “espiritual” ou mental. Uma disposição é uma inclinação para alguma coisa. Proposição é, segundo Desidério Murcho, “O pensamento literalmente expresso por uma frase declarativa”, ou seja, aquilo que pensamos expresso em palavras. Por exemplo, a frase “Está chovendo” e a frase “It’s rainning” expressam a mesma proposição: a proposição de que está chovendo. Crenças se relacionam com proposições, não com coisas. Esse foi meu erro nas primeiras tentativas de justificação do ateísmo como uma descrença, e não como crença. Se crenças se relacionassem com as coisas, meu raciocínio poderia estar mais provavelmente correto, mas elas se relacionam com proposições. Por isso também não faz sentido dizer que um cético pirrônico tem crenças, mesmo que se comporte como se as tivesse. Suas aparentes crenças se relacionam com as coisas, não com proposições. Os céticos pirrônicos não acreditam em qualquer proposição.

Sendo assim, uma crença é um estado mental que se relaciona com uma proposição através de uma disposição, o que Bertrand Russell chama de “atitude proposicional”. A disposição é uma inclinação para aceitar como verdadeiro e seguir o que está sendo expresso na proposição. Se aceito como verdadeira a proposição “Está chovendo”, provavelmente não vou querer sair de casa, pois isso implica que irei me molhar e, talvez, conseqüentemente, ficar resfriado. Não deve-se confundir crença com conhecimento. Enquanto crença é um estado mental de aceitação de uma proposição, conhecimento é, segundo Platão, uma crença verdadeira justificada. Embora para conhecer seja necessária uma crença, quem crê não necessariamente conhece. Alguém dizer que acredita em Deus é uma coisa, mas dizer que sabe que ele existe é outra totalmente diferente. Ora, quem tem uma crença deve ter algum bom motivo para aceitar uma proposição qualquer. Sendo assim, todas as crenças precisam de alguma justificação, mesmo que esta não seja suficiente para tornar tal crença um conhecimento. É aqui que alguns desses aplogetas teístas tentam virar ou igualar o jogo: se a crença teísta precisa de justificação, então o ateísmo, se for uma crença, também precisa. Caso uma boa justificativa para o ateísmo não seja apresentada, então também não faz sentido ser ateu. Mas será mesmo o ateísmo uma crença?

Se o ateísmo é uma crença, então ele tem que ser uma disposição mental para aceitar alguma tese como verdadeira. Segundo esses falazes apologetas, os ateus aceitam como verdadeira a proposição “Deus não existe”, assim sendo, o ateísmo é uma crença na inexistência de Deus. Como estamos falando de proposições e não de coisas, faz sentido falar em crença na inexistência, no entanto é falso que o ateísmo seja uma crença na inexistência de Deus. Porém, mesmo sendo falsa essa afirmação, ela não é totalmente falsa, como veremos em seguida. Segundo a maioria dos ateus, o ateísmo não é uma crença, mas uma descrença, ou seja, uma mera rejeição da proposição “Deus existe”. Essa afirmação é verdadeira, embora também não seja completamente verdadeira. O que há de falso nesta afirmação e de verdadeiro naquela, é que alguns ateus sustentam sim que Deus não existe. No entanto, o que os torna ateus não é necessariamente o que eles aceitam, mas sim o que eles rejeitam, que é a proposição “Deus existe”, uma vez que se alguém aceita que Deus não existe, obrigatoriamente ele rejeita que Deus exista. O que há de complicado aqui é pensar que rejeitar a afirmação “Deus existe” significa dizer que é falso que Deus existe, ou aceitar a afirmação “Deus não existe”, o que não é verdade. Se rejeito a proposição "Deus existe", não significa que a considero falsa. Posso apenas considerá-la indeterminada ou não comprovada, sem obrigação de aceitar como verdadeiro que Deus não existe. Alguém pode rejeitar ambas as proposições, ou aceitar apenas uma. O primeiro caso é o que Anthony Flew chama de ateísmo negativo ou ateísmo fraco, ao passo que o segundo caso, caso a pessoa em questão aceite apenas a proposição “Deus não existe”, é o que ele chama de ateísmo positivo ou ateísmo forte. É logicamente possível aceitar apenas uma ou rejeitar ambas, mas não é logicamente possível aceitar as duas.

Sendo assim, um ateu pode aceitar que Deus não existe (ateísmo forte), ou não aceitar a existência de Deus nem a sua inexistência (ateísmo fraco), pois, o que determina o ateísmo é apenas a rejeição da proposição “Deus existe”, a não aceitação, no sentido de descrença, da sua existência. Desta forma, um desses apologetas pode sim justificadamente fazer o ônus da prova recair contra o ateísmo forte, mas jamais contra o ateísmo fraco. Este não afirma nada, não sustenta nenhuma opinião e não aceita nenhuma proposição sobre a existência ou inexistência de Deus: ele não acredita em nenhuma das duas afirmações por não achar que possam ser ou foram devidamente justificadas. O fato d’ele rejeitar a afirmação de que Deus existe é o bastante para ser ateísmo. O ateísmo forte pode, por exemplo, tentar sustentar a inexistência de Deus afirmando que tudo que existe é natural, e Deus, não sendo natural, não pode existir. Esta é, obviamente, uma justificação muito fraca, uma crença que se baseia em outra crença, mas pode ser suficiente para o sujeito em questão. O ateísmo fraco, por sua vez, não tem que justificar nada, pois não afirma que Deus não existe, apenas rejeita a afirmação de que ele existe por alguma razão qualquer.

Mas isso não seria o que se chama atualmente de agnosticismo? Não! Agnosticismo é a crença de que a existência/inexistência de Deus não pode ser conhecida, o que não vem ao caso. Em primeiro lugar, quem não aceita a afirmação “Deus existe”, independentemente de aceitar ou não a tese contrária, isto é, “Deus não existe”, é ateu. Em segundo lugar, alguém pode não aceitar a existência nem a inexistência de Deus e ainda não ser agnóstico. Alguém assim pode achar que depois da morte poderá saber se Deus existe, caso ele exista, mas para os agnósticos, saber se Deus existe ou não é um empreendimento impossível até mesmo depois da morte por conta da própria natureza de Deus. E, por último, em terceiro lugar, ninguém pode ser exclusivamente agnóstico, pois este é um posicionamento epistemológico, enquanto teísmo e ateísmo são posicionamentos teológicos. É impossível fugir da pergunta: “você aceita como verdadeira a proposição ‘Deus existe’?”. Caso a resposta seja afirmativa, temos um teísta de alguma espécie (deísta, panteísta ou teísta propriamente dito), caso a resposta seja negativa, temos um ateu. Como não existe outra resposta para essa pergunta, só podemos ser teístas ou ateus, o que exclui o agnosticismo como posicionamento teológico.

Identificar o ateísmo como a simples descrença pode levar a alguns problemas que pretendo evitar. Se ateísmo é apenas não aceitar a afirmação de que Deus existe, podendo haver ateus que não aceitam proposições nenhuma acerca de Deus, ou seja, ateus que simplesmente não têm crenças nenhuma em relação a existência/inexistência de Deus, então é lícito concluir que coisas inanimadas como as pedras, animais como os gatos ou pessoas que ainda não têm consciência como os bebês são ateus, afinal de contas, eles também não têm crença na existência de Deus. Como já vimos, crenças são estados mentais, o que significa dizer que para termos crenças precisamos pelo menos ter uma mente. Mas para não ter crenças não precisamos ter mente, logo, seres que não tem mente não podem ter crenças, só descrenças. Todos os seres inanimados, animais e bebês seriam ateus negativos. Creio que esse raciocínio está errado por ignorar um elemento relevante para se ter ateísmo: embora não seja necessário ter uma mente para não ter crenças, é preciso ter consciência dessa descrença para ser realmente ateu. Assim, uma pedra, um gato ou um bebê não tem crença na existência de Deus, mas também não tem consciência de que não tem essa crença. Portanto, não podem ser considerados ateus. Somente uma pessoa que não tenha crença na existência de Deus, e saiba que não tem crença pode realmente ser considerada ateísta.

Por fim, podemos concluir que essa fracassada inversão do ônus da prova para o ateísmo se dá apenas por ignorância do que sejam crenças ou do que seja ateísmo. Mesmo que, como dissemos, existam ateus que sustentem crenças explícitas de que Deus não existe, não é necessariamente isso que os torna ateus, e nem é verdade que todos os ateus afirmam que Deus não existe, pois o ateísmo não se define como crença na inexistência de Deus. Não importa o que o ateu em questão acredita, ou se não acredita em nada. O que é determinante para classificá-lo como ateu é simplesmente não aceitar como verdadeira a proposição “Deus existe”. O ateísmo pode sim aparecer na forma de uma crença (ateísmo forte), mas não se define como tal. Na verdade, uma pequena minoria acredita no ateísmo forte ou positivo. A maioria simplesmente diz no seu confessionário íntimo: eu não acredito que exista um Deus.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 18/09/2010
Reeditado em 26/07/2011
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