Jihad ideológica: a infantilização da direita
I. Introdução: A metáfora da jihad ideológica
O termo “jihad”, originalmente associado à luta espiritual no islã, foi sequestrado pelo imaginário ocidental como símbolo de uma cruzada beligerante e irracional. Em um uso metafórico, pode-se dizer que parte da nova direita brasileira engajou-se numa verdadeira “jihad ideológica”, convertendo a política em uma guerra santa contra adversários imaginários e reais. A retórica inflamada, o apelo ao medo e a recusa em debater ideias adversas transformaram o campo político em terreno de extermínio simbólico, onde não há espaço para mediações.
A radicalização do discurso de direita, especialmente após 2013, mas com um pico explosivo a partir de 2018, configura não apenas uma reação às pautas progressistas, mas a construção de uma identidade política baseada no ressentimento e na paranoia. O Brasil, imerso em polarizações estéreis, necessita mais do que nunca de uma reconstrução política, baseada na razão crítica, no debate maduro e na busca de consensos mínimos.
II. A direita entre o projeto e o ressentimento
A tradição liberal-conservadora brasileira sempre foi frágil, mas não inexistente. Nomes como Roberto Campos, Miguel Reale, Gustavo Corção e José Guilherme Merquior propunham visões de mundo estruturadas, muitas vezes críticas à esquerda, mas fundadas em teorias políticas, econômicas e morais sofisticadas. Merquior, por exemplo, afirmou que “a liberdade não é um valor de esquerda ou de direita; é um valor da civilização” (MERQUIOR, 1991, p. 29). Essa perspectiva se perdeu diante da ascensão de influenciadores rasos e movimentos que operam por slogans.
A nova direita, marcada por figuras midiáticas e redes de desinformação, desfigurou esse debate, substituindo a crítica séria por fanatismo. O resultado é a exclusão de vozes que não se alinham integralmente à cartilha do dia. Aqueles que discordam, ainda que pontualmente, são acusados de “isentões”, “traidores” ou “esquerdistas disfarçados”. Scruton (2015, p. 72), conservador britânico refinado, advertia: “Quando a cultura política é reduzida a rótulos e ofensas, a civilização começa a ruir.”
Além disso, cresce dentro da própria direita a prática de cancelamentos internos. Líderes e pensadores que ousam questionar a linha dura — ou apenas divergir em estratégia — são silenciados. Trata-se de um fenômeno de autofagia ideológica, em que a pureza doutrinária se torna mais importante do que a eficácia ou a ética. Essa “teologia política” transforma a divergência em heresia, fazendo da política um campo religioso sem misericórdia.
III. O caso do demente ideológico e os microeventos da intolerância
O fenômeno da intolerância não se manifesta apenas em grandes escândalos ou brigas públicas, mas em microeventos diários — pequenos gestos que revelam uma mentalidade autoritária. Inclusive aqui mesmo, no Recanto das Letras, onde pessoas de direita se digladiam como se fossem adversários. O bloqueio em redes sociais, por exemplo, quando utilizado como resposta a um simples questionamento, torna-se símbolo do medo do contraditório. Em vez de contra-argumentar, o militante da nova direita prefere expulsar o interlocutor do seu pequeno universo digital, criando uma bolha de confirmação.
O “demente ideológico” é aquele que, fragilizado por uma insegurança intelectual profunda, adota a agressividade como defesa. Incapaz de sustentar um raciocínio coerente ou de reconhecer a complexidade dos problemas nacionais, ele opta por slogans, memes e ataques ad hominem. Como observa Umberto Eco (2015, p. 89), “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. Mas o problema não é apenas a fala — é a recusa deliberada do pensar.
Negar o diálogo torna-se, assim, uma forma de autoengano. Ao eliminar o outro, o militante radical protege-se de ter que rever suas crenças. É uma atitude infantil que impede o crescimento político e pessoal. Ricoeur (1991, p. 183) adverte que “o fanático é aquele que não suporta a tensão entre o ideal e a realidade”. Ao bloquear a tensão, sufoca-se também a possibilidade de reflexão.
IV. O perigo da infantilização política
Não há como reconstruir o Brasil com uma direita que age como um culto. O culto político, tal como o religioso, exige fé cega, sacraliza líderes e reprime dúvidas. O culto não tolera nuance, não aceita reforma, não admite imperfeições. Nesse cenário, o militante não é um cidadão, mas um devoto. E a política, em vez de espaço público, torna-se liturgia.
Princípios firmes são fundamentais para qualquer campo ideológico, mas não devem ser confundidos com inflexibilidade burra. Hayek (1983, p. 219), um dos ícones do liberalismo, já advertia: “a mente dogmática não constrói liberdade, mas apenas muda de tirania”. É necessário distinguir fidelidade aos valores de incapacidade de escuta. Não se trata de ceder ao adversário, mas de saber que as boas ideias resistem ao teste do contraditório.
Propostas políticas precisam de maturidade, e não apenas indignação. A raiva pode ser um ponto de partida, mas nunca o projeto inteiro. O Brasil exige soluções para a educação, para a saúde, para a economia. Isso implica planejamento, técnica, e, sobretudo, a disposição para ouvir. Berlin (2002, p. 55) já observava que “liberdade e responsabilidade caminham juntas”. Sem essa maturidade, a direita continuará a girar em torno do próprio ódio, sem oferecer alternativas viáveis.
V. Conclusão: sem diálogo, não há reconstrução
O Brasil precisa de uma direita pensante, estratégica e aberta ao debate. É possível criticar a esquerda com firmeza sem cair na gritaria histérica. É possível defender valores conservadores sem parecer um inquisidor medieval. É possível — e necessário — deixar de lado a jihad ideológica para construir uma política republicana, que reconheça o adversário como legítimo e o pluralismo como condição da democracia.
Como escreveu Hannah Arendt (2001, p. 33): “O sentido da política é a liberdade; seu campo é a ação.” Mas para agir com responsabilidade, é preciso deixar o campo da infantilização e entrar na arena da razão. O futuro do país não pode depender de memes, ódios reciclados ou messianismos decadentes. A esperança está em uma direita que recupere o espírito crítico e abandone a guerra santa contra a realidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
BERLIN, Isaiah. Liberdade e seus traidores. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
ECO, Umberto. Número zero. São Paulo: Record, 2015.
HAYEK, Friedrich A. Direito, Legislação e Liberdade: Volume 1 – Regras e Ordem. São Paulo: Visão, 1983.
MERQUIOR, José Guilherme. Liberalismo – Antigo e Moderno. São Paulo: Nova Fronteira, 1991.
RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. São Paulo: Perspectiva, 1991.
SCRUTON, Roger. Como ser um conservador. São Paulo: É Realizações, 2015.