O batom vermelho e o grito abafado

Caminhar é uma forma íntima de conhecer uma cidade. Eu costumo passear pelo Jardim da Luz, onde gosto de observar a paisagem e as pessoas, vendo o movimento suave do cotidiano. Passo horas ali, atento ao que está ao redor, ao que pulsa na cidade. O parque é um dos mais belos da cidade, mesmo com suas feridas, um cartão-postal que resiste. Nele, as meretrizes fazem parte da paisagem, com sua presença forte. Jovens. Seres humanos, iguais a todos nós. Nem melhores, nem piores.

Lá estão elas: loiras, negras, ruivas, morenas. Nunca me incomodaram. Entre nós, há respeito. Não sei os detalhes de suas histórias, mas sei que são sobreviventes. São vítimas de um sistema que as empurra para a margem, de um país que não oferece oportunidades. Sentem fome, dor, medo. A miséria e a exclusão são uma constante na vida delas. Resistir é a única alternativa. Elas vivem entre as ruínas da dignidade, num espaço invisível, onde a tristeza é uma companheira diária.

São filhas de um país que as esquece e as julga. São tratadas como criminosas por uma moral pública que só vê o que quer. Não podem amar livremente. Vendem o que deveria ser gratuito porque a necessidade as obriga. Oferecem amor como mercadoria, para sobreviver. Um amor rápido, sem ilusão, com hora para começar e terminar. João, Pedro, Joaquim, Tiago... são nomes que passam por elas, mas o afeto é negociado, não é real.

E ainda assim, lá estão. Todos os dias. Sob sol ou chuva, enfrentando o abandono e o perigo. Como qualquer trabalhador invisível. Elas seguem altivas, enfrentando a violência dos criminosos e a indiferença do poder público, com batons vermelhos e sonhos que, muitas vezes, se perdem. São fortes, mas carregam o peso de uma sociedade que não as respeita, mas cobra silêncio. Preferir as mulheres a políticos não é provocação, é constatação. Elas lutam. Eles recebem sem fazer nada, legislam em benefício próprio, alimentam seus privilégios com dinheiro público.

Essas mulheres não têm descanso. Vivem sob constante ameaça, na esquina do medo. Não são vítimas apenas da rua, mas da omissão do Estado e da conivência da sociedade. O mínimo que se espera é que elas tenham acesso à cultura, à saúde, ao trabalho digno. Melhorar suas condições de vida não é um favor, é uma questão de justiça. O Estado e a sociedade têm a obrigação de criar caminhos para que essas mulheres possam ter um futuro melhor, para que possam existir além da margem.

Num país que recompensa a negligência com poder e pune a pobreza com invisibilidade, elas continuam de pé. Lutam com o corpo o que outros não enfrentam nem com palavras. Elas não são o problema. São o reflexo. Elas nos mostram a falência de um sistema que oprime os fracos e protege os que nada fazem, além de usufruir.

Finalmente, é preciso dizer que a responsabilidade é de todos nós. Não se constrói uma nação justa ignorando aqueles que mais precisam. Direitos e dignidade não são privilégios. Devem ser garantias. Para todos. Sem qualquer tipo de distinção social, política ou econômica.

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