A esquerda pó de arroz

Primeiro, temos de relembrar o significado de “esquerda”: na Assembleia Nacional que assumiu o poder após a Revolução Francesa, no final do século XVIII, tomavam lugar à esquerda do seu presidente aqueles que ganhavam seu sustento com o próprio trabalho. Eles eram partidários da revolução e do fim da monarquia. À direita, tomavam lugar ricos negociantes, empreendedores, empregadores, proprietários de terras e de bens: os burgueses. Eles eram leais à monarquia. Resumindo, era já o embate trabalho x capital.

E a expressão tão brasileira “pó de arroz”? Ela tem história bem controvertida, mas aceita-se que resulte da mistura de conflitos raciais, sociais e futebolísticos, no início do século XX, no futebol carioca: em alguns times mais racistas, os jogadores negros e pardos usavam o pó de arroz para branquear a pele; tentavam assim ser menos discriminados pela cartolagem e pelos torcedores racistas. Afinal, tratava-se do aristocrata esporte bretão, importado das elites da Inglaterra.

O pó de arroz tinha então dois significados: para quem o usava, era uma tentativa de ser aceito pelos racistas, e assim poder praticar sua arte; para os racistas que o viam, e sabiam que era uma maquiagem, era uma maneira de driblar o próprio preconceito. Uma hipocrisia, para perdoar os próprios instintos racistas. E para franquear a manifestação da paixão nacional: o futebol. Atualmente, as lutas por igualdade racial afastaram o uso do pó de arroz. Mas são feridas abertas, o racismo ainda não foi superado.

Aliás, como bem destacou o músico e literato José Miguel Wisnik em seu livro “Veneno remédio: o futebol e o Brasil” (Cia. das Letras, 2008), o futebol é o único esporte que para o planeta! Porque é esporte popular, que pode ser praticado na praia ou na várzea, e no qual os resultados são muitas vezes imprevisíveis. Não é o mais rico que ganha sempre, como nos esportes dos poderosos. Amiúde prevalece a raça, a alma, a atitude. Ou pelo menos era assim até pouco tempo atrás, quando o deus dinheiro ainda não tinha estendido seu manto também sobre o futebol.

Há mais de dois séculos, quando se consolidou a Revolução Industrial, a luta trabalho x capital vem se acirrando, e produzindo seus frutos: hiperconsumismo, concentração da riqueza, disseminação da pobreza, crises sociais, éticas, ideológicas, políticas, ambientais, de segurança...

Bem recentemente, fala-se em direita e esquerda radicais. É fácil enxergar a direita radical: ela se manifesta no fascismo, na truculência, no autoritarismo, no negacionismo, na desinformação, que levam ao caos, à ignorância, à guerra... E o que é a esquerda radical? Aqui muito cuidado: não confundir esquerda autêntica com esquerda radical. Existem sim aqueles radicais que condenam o sistema, e até defendam fazê-lo de forma arbitrária e violenta. Mas tais radicais não podem ser chamados de esquerda, se são conduzidos por impulsos pessoais e não causas coletivas, de classe. A esquerda autêntica comunga com as aspirações da classe de trabalhadores, secularmente explorada pela direita dona do capital.

E a esquerda pó de arroz? É possível a esquerda disfarçar-se para não sofrer a repulsa e o preconceito da direita? Não! Convicção política não é o mesmo que futebol. Hoje, até o futebol nos ensina: os negros afirmam sua negritude numa luta sem cessar pelo reconhecimento de sua identidade.

A esquerda precisa aprender com o futebol, e firmar-se na luta de classes com sua identidade e autenticidade. Tem que abandonar o clientelismo, o corporativismo e o fisiologismo interno, que são marcas da direita. Ainda que isso signifique reveses momentâneos nas urnas. A firmeza de ideais e a perseverança hão de mostrar à população que urge a humanidade encontrar formas mais justas de distribuir a riqueza que o trabalho produz e de incluir socialmente os trabalhadores. Senão, em breve será o colapso. Não é possível fazer de conta que não existe a luta de classes. Na verdade, guerra de classes.

A esquerda autêntica tem que mostrar e defender seus princípios. Se for uma esquerda “pó de arroz”, só vai implodir-se e prolongar o injusto sistema que vivemos.