Por que o governo Lula não desencanta?
POR Rudá Ricci *
Este artigo nasceu da leitura de um texto elaborado por Juarez Guimarães e Marilane Teixeira em que indicam cinco iniciativas para se retomar o diálogo com a esperança popular. Os autores admitem que a série histórica de pesquisas (Quaest, IPEC, DataFolha, Atlas, CNT/MDA) iniciada no início do segundo semestre de 2023 sugere uma tendência decrescente da popularidade do governo Lula.(ver https://aterraeredonda.com.br/retomar-o-caminho-da-esperanca/ )
Os autores avaliam que “há um perigoso processo de erosão da esperança construída nos anos de resistência aos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro”. Não se trata de uma opinião qualquer. Juarez é um líder histórico da corrente petista Democracia Socialista, professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, um intelectual fiel a todos governos Lula. Marilane é economista da Unicamp e participa como formadora em cursos do PT e de movimentos sociais.
Juarez e Marilane relativizam a importância da frágil comunicação social e a inércia do governo Lula para enfrentar – e mobilizar – os projetos e ofensivas de direita e extrema-direita. Mas, refletem sobre a necessidade do governo “sair da posição pública governamental de se conformar” com as travas impostas pela lógica neoliberal que teria na presidência do Banco Central e na liderança de Arthur Lira seus aríetes.
Além de enfrentar o projeto da direita, sugerem que é preciso apresentar alternativas, um conjunto de políticas públicas que projetem o ideário à esquerda como factível e potente para retomar a esperança popular no futuro.
A partir deste texto, provoquei os participantes de um grupo de WhatsApp que criei em 2014 e que leva o nome de Unidade na Diversidade. Este grupo é formado por lideranças religiosas progressistas (evangélicas, católicas, de religiões afrobrasileiras), sindicais, ex-ministros dos governos Lula, governadores, membros do Consórcio Nordeste, dirigentes de ONGs, policiais antifascismo, ambientalistas, pesquisadores, dentre outros.
A questão que sugeri foi: haveria uma agenda possível, mais à esquerda, para o atual governo Lula, que não inviabilizaria sua governabilidade? Algo que vai na busca que o artigo de Juarez e Marilane abriram.
Sugeri, à título de ilustração, uma primeira agenda que passo a expor. Não se trata de uma agenda conclusiva, mas de um esboço que nos faz perceber a inércia e acanhamento da versão Lula3.
Minha sugestão se apoiou em 10 pontos:
1. Criar uma rede de solidariedade para dar organicidade a uma característica nacional que mobiliza principalmente setores médios e trabalhadores, principalmente em tragédias, como a que ocorreu recentemente no RS
2. Criar Escolas da Cidadania para formar conselheiros e lideranças sociais no controle de políticas públicas
3. Articular campanha nacional contra o racismo e criar uma ampla frente feminista (incluindo até a Globonews)
4. Estruturar o atendimento social domiciliar em todo território nacional envolvendo agentes de saúde e assistência social e criando o agente educacional de atendimento domiciliar com foco nas crianças, adolescentes e mães. Muitas pesquisas recentes indicam que as mães (seguidas pelas avós) se constituem no principal fator de desempenho escolar e comportamento social de crianças e adolescentes de nosso país. Mães estruturam a noção de ordem e dignidade nas famílias brasileiras mais pobres
5. Criar porta de saída para o Bolsa Família com amplo financiamento de negócios de mulheres articulando Fundação Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Institutos Federais e SEBRAE. É na emancipação econômica feminina que está a chave, acredito, para a quebra do clientelismo patriarcal nos grotões do país
6. Federalizar o Ensino Médio adotando o modelo dos Institutos Federais
7. Retomada dos Territórios da Cidadania reforçando a governança social territorial
8. Reforçar o programa Educação Fiscal da Receita Federal, envolvendo toda rede pública de ensino
9. Criar um programa de extensão universitária – uma residência social obrigatória envolvendo todos os cursos - em regiões de concentração de populações vulneráveis
10. Criar brigadas estudantis de alfabetização de adultos (com antecipação das férias escolares para engajamento na campanha)
Desta provocação surgiu uma série de propostas que foram se sucedendo neste grupo de WhatsApp. Vou socializar algumas delas.
Paulo Peterson (coordenador-executivo da ONG AS-PTA - Agricultura Familiar e Agroecologia e membro do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia) e Carlos Eduardo Leite (Caê é coordenador da Articulação Semiárido Brasileiro) sugeriram a adoção da articulação social e intersetorial territorial como base organizativa dos programas governamentais tendo a questão alimentar como lugar de transversalidade nesse conjunto de medidas. O incentivo a redes solidárias de produção, transformação artesanal, distribuição e consumo de alimentos saudáveis e adequados de âmbito territorial seria capaz de enfrentar, na sua visão, mazelas socioecológicas que seguem prendendo nossa sociedade ao seu passado colonial primário exportador.
Hustana Vargas, do Programa de Pós-Graduação em Educação UFF, citou a necessidade de problematizar o financiamento da educação e destacou, ainda, a mudança do atendimento da população carcerária, degradada e desumanizada nos subterrâneos das políticas.
Outros participantes sustentaram a necessidade de a estratégia da área de saúde adotar a ênfase na promoção do bem-estar para superar a lógica do atendimento e foco na doença. A ênfase na promoção da saúde significaria construir melhores condições de vida (moradia, alimentação, lazer).
Cláudia Garcia citou o "Projeto de Extensão" que é uma disciplina obrigatória na grade dos cursos de graduação na Universidade Católica de Brasília. No curso de Medicina da UCB, as turmas são divididas e cada grupo desenvolve projetos ao longo do semestre, aplicados em diferentes localidades habitadas por populações socialmente fragilizadas.
Foram muitas outras sugestões que foram nomeadas por outro participante do grupo como “enfrentamento propositivo”: pautas que independem do enfrentamento das ameaças de fundamentalistas e são caminhos que podem ser trilhados se o olhar for dirigido para a sociedade organizada que propõe o fortalecimento social, econômico e político da sociedade civil.
Na minha leitura, o governo Lula não faz o possível. Ao contrário, parece assumir o papel de fiador de uma aliança conservadora, de manutenção da ordem, com algumas concessões de caráter mais progressista e inclusivo. Algo que foi forjado inicialmente por Tancredo Neves e que ganhou a alcunha de Nova República, o pacto entre elites política, militar e empresarial do Brasil.
Este papel foi um dia assumido pelo PMDB. Sabemos o que ofereceu politicamente às suas lideranças: forte instabilidade eleitoral, forte enraizamento no território nacional, transformação momentânea em potência eleitoral, dificuldades para conseguir emplacar uma candidatura nacional e que, finalmente, levou o partido a perder sua identidade ao ser superado por forças portadoras de propostas programáticas mais definidas. O meio-termo político em nosso país ganha impulso num primeiro momento, mas perde viço em seguida. Por um simples motivo: o Brasil é rico, mas profundamente desigual. Não há como a maioria dos brasileiros querer a ordem imutável em que somente as elites são beneficiárias eternas.
Lula3 vive uma encruzilhada. Parece aguardar um cenário internacional mais favorável, um fenômeno imprevisível que o catapulte ou um sinal dos céus. Parece não conseguir liderar uma ofensiva que lhe dê identidade e razão de ser. A consequência é o que Juarez e Marilane retrataram como a perda de esperança popular. Não há futuro promissor porque não há projeto nítido do governo Lula que recebeu a confiança da maioria dos brasileiros.
Aliás, pesquisas recentes indicam que mais de 40% dos brasileiros acreditam que a sua situação econômica piorou desde a posse de Lula, mas o mesmo percentual acredita que vai melhorar. O que é isso senão um fio de esperança e confiança?
A questão aqui é como este governo se desfaz de suas próprias amarras e convicções. Talvez, esteja tão preocupado com as eleições que não enxerga o eleitor.
*Ruda Ricci é Sociólogo, trabalha com educação e Gestão Participativa. Preside o Instituto Cultiva em BH.