Um projeto de lei inútil
"Atrás de todo paladino da moral reside um canalha"
Nelson Rodrigues
Toda a discussão sobre o PL 1904, que equipara o aborto após a 22.ª semana de gestação ao crime de homicídio tem chamado a atenção para o quanto a extrema direita está tentando ocupar espaço no Brasil. Por um lado, há os que dizem que o PL só está defendendo estuprador e criminalizando as vítimas de estupro, considerando que muitas são meninas que com frequência demoram a perceber que estão grávidas. Já do outro lado, os que são favoráveis ao PL dizem que estão defendendo a vida. Entre eles, está o sempre polêmico Nikolas Ferreira, que diz que não se vinga do estuprador matando um inocente e também Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro, Julia Zanatta e Mário Frias. Os mais árduos defensores desse projeto são os deputados Sóstenes Cavalcante, que é pastor e Chris Tonietto, deputada conhecida por ser uma ferrenha antiabortista. Os políticos da esquerda, como a deputada Erika Hilton, estão lutando pelo arquivamento do projeto, que dizem que é um retrocesso na luta pelos direitos da mulher.
No meio de toda a polêmica, vamos ser sinceros sobre o tal projeto: é um projeto totalmente inútil. Criminalizar o aborto após a 22.ª semana não irá impedir que abortos ocorram. As leis não costumam ser cumpridas no Brasil. Pela lei, é proibido roubar e matar, não é? Mas todos os dias ocorrem assassinatos e assaltos. Há anos foi criada a lei Maria da Penha. E a lei que poderia significar um avanço não diminuiu os feminicídios e casos de violência doméstica. Enfim, vemos como essa extrema direita está mais preocupada em ser fiscal da vida alheia do que em elaborar projetos de lei que realmente façam a diferença na vida dos cidadãos. Fazem muito barulho dizendo que criança não é para ir a paradas gay mas parecem ignorar, muito convenientemente, que onde elas mais sofrem abuso sexual é em lugares onde deveriam estar seguras, como em casa e na igreja e se calam diante de casos como o do pastor que beijou a própria filha na boca ou do ilustre Jonas Pimentel, pastor que disse que criança também é culpada pelo abuso. E vale salientar que o pastor Lucinho Barreto, que beijou a filha na boca, fez live com Nikolas Ferreira. No caso desse projeto, o que acontecerá? Mulheres pobres recorrerão a métodos brutais, remédios com efeito abortivo ou clínicas clandestinas, sujeitando-se ao risco de morrer de hemorragia ou infecção. No caso das mulheres que são de famílias abastadas, elas poderão recorrer a médicos que, sendo pagos, farão o aborto em segredo. Não há a menor dúvida que se o projeto passar adiante apenas mulheres pobres serão penalizadas, afinal terão à sua disposição apenas um defensor público enquanto uma mulher rica terá um advogado pago que recorrerá a todos as brechas que a lei oferece.
Sóstenes Cavalcante, por sinal, é uma figura realmente bizarra. Ele disse que a menor estuprada que fizesse aborto poderia se sujeitar a medidas socioeducativas. O que é isso? Punir uma vítima de violência? Se todo mundo ficar com esse tipo de mentalidade, daqui a um tempo terá de se punir a vítima de estupro por ter supostamente provocado o estuprador ou então se dizer que se um gay foi espancado até à morte porque deu motivo. Vale salientar que políticas da direita como a Ana Campagnolo e Damares Alves já se intrometeram em casos de abortos que haviam sido autorizados por lei, porque envolviam meninas que tinham sido estupradas. Ana Campagnolo, por sinal, fez discurso de ódio em suas redes sociais contra a antropóloga Simony dos Anjos, dizendo que "toda feminista é abortista, toda abortista é do demônio e não há feminista cristã." Simony resolveu processar Ana Campagnolo por conta disso. Como estamos vendo, a extrema direita é muito perigosa. Para acrescentar, Sóstenes Cavalcante ainda falou que fetos abortados eram usados na indústria de cosméticos, o que lembra o discurso do infame Olavo de Carvalho que, com a gentileza que lhe era habitual, disse que a Pepsi-cola fazia adoçantes com células de fetos abortados. Chega a ser engraçado como tanta gente tem esse pseudointelectual, que não dizia coisa com coisa, como exemplo de sabedoria. Ana Campagnolo disse que sentia uma grande tristeza por não ter podido abraçá-lo em vida.
Gente, entendamos bem uma coisa: esse projeto não servirá para nada. Não vai impedir que continue havendo abortos. Por que essa extrema direita, em vez de posar de paladina da moral, não faz projetos de lei para começar a melhorar de vez a educação no Brasil, por exemplo? Há anos, vemos estudantes sendo aprovados muitas vezes sem nem saber ler ou fazer uma conta. Eles também nada fazem para começar a combater a corrupção nos presídios ou melhorar a segurança no Brasil. Só defendem que o cidadão se arme, como se isso fosse resolver algo. Estão mais preocupados com coisas que no final só dizem respeito às vidas privadas das pessoas. Dois bons exemplos são Nikolas Ferreira, que expôs uma adolescente trans no banheiro quando era vereador e Mário Frias, que, sendo deputado, falou mal de uma atriz lésbica por ela ter falado num podcast sobre como é fazer sexo com mulher. Incrível como eles têm tempo de ficar na Internet se preocupando com o que as pessoas fazem entre quatro paredes. Isso só mostra o quanto estamos bem representados.