A DITADURA DAS IDEOLOGIAS

 

Ideologias, sejam elas religiosas, raciais, políticas, ou de qualquer outro naipe, quando são radicalizadas, colocam na mente das pessoas que as professam, imensos escotomas que as impede de ver qualquer outra coisa que não seja aquilo que eles querem ver. Escotoma, como se sabe, é um termo de oftalmologia que designa uma mancha no nosso sistema visual que obscurece um determinado campo da nossa visão. Em psicologia significa que a nossa mente “escurece” para outros conceitos que não sejam aqueles que queremos admitir como verdadeiros. Equivale a uma lavagem cerebral, onde todas as alternativas contrárias às nossas crenças e valores são simplesmente eliminadas do campo das possibilidades admissíveis.

A polarização que estamos vivendo hoje no campo político é um claro exemplo de escotoma que foi colocado na mente de grande parte da população brasileira. Estamos vivendo entre duas concepções políticas que parecem irreconciliáveis. Ou é uma ou é outra. Não há meio termo. Trata-se sempre de descontruir qualquer coisa que uma das partes faça, ainda que seja por meios criminosos como a mentira, a calúnia, a difamação e todo tipo de vilania. Tudo é válido desde que seja para atingir o adversário.

Quando as manchas morais desses escotomas obscurecem nossa razão nos tornamos incapazes até de perceber as contradições que existem no sistema que conquistou a nossa simpatia. Uma ditadura espiritual se impõe sobre nós restringindo a nossa liberdade de pensar, prendendo-nos numa visão unilateral das coisas que nos leva a recusar tudo aquilo que não estiver no campo dos nossos desejos. E como dizia Gandhi, pior do que não ter nenhuma religião é adotar uma que se julga a única que leva a Deus.

A ditadura espiritual das ideologias não é privilégio da politica brasileira, onde os bolsonaristas não conseguem ver nada que preste no inimigo petista e os petistas satanizam tudo que vem do espectro bolsonarista. Parece ser um fenômeno mundial. Com isso, nenhum dos lados consegue ver as deficiências de caráter de seus líderes, as inconsistências das suas propostas e as contradições que permeiam um e outro partido. No caso brasileiro nenhum dos lados percebe que ambos são apenas dois populistas apaixonados pelo poder, e a única diferença entre eles é o lado em que se colocam. Outro exemplo dessa insana dicotomia é o caso de Donald Trump nos Estados Unidos e Nicolás Maduro na Venezuela. Um, polarizador dos sentimentos da direita, o outro da esquerda. São as duas figuras mais desprezíveis que a moderna política do continente americano criou. Mas são os símbolos que guiam uma e outra facção, com suas ideias asquerosas e sinistras.

William Shirer, autor de uma das mais completas obras sobre a tragédia nazista (Ascensão e Queda do Terceiro Reich), ao analisar as causas que levaram povos tão cultos quanto o alemão, o italiano e o japonês ao fascismo, disse que há épocas na história da humanidade que se tornam desprezíveis pelo desprezo do sentido humanitário que leva os seres humanos a construir uma sociedade capaz de viver segundo as regras de respeito mútuo e da convivência pacífica. Nesses momentos avultam as ditaduras e crescem as visões estéreotipadas de pessoas que só conseguem entender suas sobrevivências através da supressão do seu adversário. Machado de Assis também abordou esse tema no seu famoso conto “Quincas Borba”, onde um personagem cultuava um deus chamado Humanitas, que dizia “Ao vencedor as batatas”.

Todavia, a história política das grandes nações tem provado, com fartura de exemplos, que a única forma de preservar o equilíbrio e o desenvolvimento sustentável de um país é a democracia. E esta pressupõe, em primeiro lugar, uma alternância de poder e a possibilidade de aplicação de conceitos diferentes daqueles que estão sendo aplicados em determinado momento e que, seja por que motivo for, não estão dando os resultados esperados.

Não precisamos entender o mundo como sendo um único campo de batatas disputado por duas tribos rivais, como na metáfora de Machado de Assis. E nem precisamos admitir conceitos darwinistas nas nossas concepções políticas, pois sabemos hoje que a vida das espécies não evolui por conta da supressão dos mais fracos, mas sim pela adaptação de seus organismos aos biomas nos quais a natureza os coloca. E a vida das sociedades só se equilibra pela tolerância e pela absorção de todas as tendências que nela se manifestam.

Abaixo as ditaduras e todas as concepções autoritárias de sociedade que exclui aqueles que pensam diferente delas. A única verdade que não pode ser desmentida é o resultado. Este, alias, é o melhor colírio que existe para limpar dos nossos olhos e das nossas mentes esse sinistro escotoma que, hoje, não está nos deixando ver nada além daquilo que queremos ver.