Práticas democráticas
Estamos em época de grave ataque à democracia no Brasil. Aliás, um fenômeno mundial. Intolerância, truculência e tirania crescem em todo o mundo. Analistas interpretam que é uma inevitável e periódica crise, uma explosão de ressentimento com o capitalismo, o consumismo, o neoliberalismo: arranjos que só fazem concentrar riqueza e disseminar miséria.
Infelizmente, condutas antidemocráticas acabam por estender-se às pessoas e às agremiações que se supõem democráticas. Talvez seja um fenômeno natural: numa sociedade em que grassam os logros e hipocrisias midiáticas e institucionais para manter os privilégios e o status quo, parece inevitável que todos, mesmo aqueles que sonham com um mundo mais inclusivo e justo, acabem contaminados por práticas manipuladoras, discriminadoras e mantenedoras da sociedade tal como está hoje. Com todas as suas imperfeições e efeitos que beiram a tragédia: crise climática e ambiental, epidemias, guerras, crescente criminalidade e impunidade, segregacionismos, aumento da pobreza, desinformação, tapeação religiosa...
A reação à mudança, mesmo entre as pessoas supostas progressistas e democráticas, é um traço da natureza humana: o Homo sapiens é movido sobretudo pelos instintos de agressividade e dominação, que tiveram (ainda têm?) valor crucial quando pensamos em preservação e evolução da espécie. Como resultado, sempre surgem os “donos” dos espaços em que vivemos. O planeta tem seus pretensos donos. As cidades, os bairros e as ruas têm seus donos. Às vezes, a padaria, o ônibus, o mercado têm seus donos, que julgam que os presentes têm que escutar e acatar suas bravatas. As instituições culturais, educacionais, científicas têm seus donos, que resistem visceralmente às mudanças. E os partidos políticos têm seus donos: eles também não querem mudar, ainda que se declarem progressistas.
Mas mudar, adaptando-se às transformações, é vital. Sob pena de extinção frente às alterações ambientais ao longo do tempo. A evolução tem nos ensinado isso ao longo da História da Terra. Os expedientes para tentar perpetuar a imutabilidade são rasos: decisões tomadas em encontros sigilosos; longos atrasos nos encontros abertos; tempo excessivo de fala aos “donos”, que só fazem comunicar decisões já tomadas; impedimento do debate franco e amplo; fomento do divisionismo entre concepções divergentes, evitando a construção de consensos mais amplos, refletidos e inclusivos...
São muitos os ardis tolerados por parecerem fazer parte do jogo democrático normal. Não é um jogo normal! É um jogo viciado, que dissimula os ardis para preservar os donos; estes, tão imbuídos que estão do papel de donos, não percebem quando violam os limites entre a democracia e um fingido autoritarismo.
Com lideranças que não conseguem despojar-se do papel de donos, não conseguem formar novas lideranças e nem cativar a parcela da população cansada de uma sociedade de dominação e privilégios, os progressistas não precisam de inimigos externos: já lhes bastam os internos.