Brasil, uma distopia: audiência de custódia; acusações sem provas; duplipensar orwelliano; um peso, duas medidas.
Vamos por partes, querido leitor. Tu percebeste que no título deste artigo, que entrará para a história, e dela jamais irá sair, há quatro temas, e os quatro, digo, para tua informação (e eu poderia dispensar-te de ler o que tu irás ler nas próximas linhas, poucas, mas não te dispenso, não, pois, se escrevi o que escrevi eu o escrevi para que tu o leias), estão, conquanto independentes, interconectados, e um não vive, não no meu modo de ver as coisas - as coisas que vejo, que fique bem claro -, sem os outros três, todos os quatro a participarem da confecção da realidade distópica nacional.
Então, solicito-te paciência, e não muita, e de ti não exijo muito esforço na leitura deste artigo, que, prometo, é curto.
Logo no começo está escrito o nome da,benquerida de uns, malquerida de outros, senhora Audiência de Custódia, senhora, esta, dona de proverbial amor e carinho pelas vítimas da sociedade, aquelas pessoas que são oprimidas, e oprimidas violenta, e desumanamente, pela sociedade capitalista burguesa, que só visa o lucro do capital, o grande, especulativo improdutivo, sociedade, a da qual falamos, a que oprime as suas inocentes e inofensivas e desamparadas vítimas, dominada pelos supremacistas brancos cristãos europeus e americanos, racistas e por natureza intrinsecamente dotados de masculinidade tóxica, espírito genocida e cultura do estupro; aquelas vítimas, prosseguimos, da sociedade capitalista a senhora Audiência de Custódia trata com todo o carinho do mundo, com amor contagiante, inspirador, amorosa e amavelmente, a esmerar-se em oferecer-lhes cuidados humanitários de sensibilidade rara e admirável, e é ela, a senhora Audiência de Custódia, severamente justa com aqueles tipos asquerosos que se atrevem a impedir as vítimas da sociedade de, na calada da noite, adentrarem nas propriedades deles (não sabe essa gente que a propriedade é um roubo?!).
Encerrada a minha nota acerca da senhora Audiência de Custódia, que as más línguas insistem em dizer que está a proteger bandidos e criminosos e assassinos e estupradores e ladrões e assaltantes e outros seres iníquos, para ela criaturas gentis e amáveis, e a ferrar com a vida de honestos policiais e outros cidadãos, pulo para o segundo tema apresentado no título, tema do qual pouco tenho a dizer: aqui, por estas bandas, as brasileiras, um homem qualquer, de cabeleira leonina, encastelado num edifício horrivelmente suntuoso de arquitetura medíocre, vem a público, acusa, sem prova alguma, trilhões de pessoas de tramarem um holocausto em praça pública, no planalto central, onde se desenrola a rocambolesca e folhetinesca história do faroeste caboclo, em homenagem aos deuses, sejam estes quais forem, e fica por isso mesmo, e por muitos é tido como herói nacional, dos maiores, se não o maior, que o mundo já viu. Não é para fazer cair o que tem de cair de onde tem de cair?!
A depender de quem acusa e quem é o acusado ao acusador não cabe o ônus da prova, e a acusação já está provada, comprovada, e o acusado contra quem pesa a acusação já se sentou no banco dos réus, já foi julgado, condenado, e está, de frente para um paredón, à espera de uma bala, cuspida por um fuzil revolucionário que jamais perde a ternura, cravada na nuca. Entramos de cabeça no universo onírico de Franz Kafka.
E agora, querido, e paciente, leitor - a ti, que te dispuseste a me acompanhar até aqui, os meus mais sinceros votos de amizade eterna -, vamos ao terceiro ponto no título deste artigo apontado: o duplipensar orwelliano. Tu já reparaste que as palavras têm os significados, quaisquer que sejam eles, que quaisquer pessoas lhes atribuem?! Ninguém mais sabe o que as palavras significam. Estamos num inferno bem infernal, o dantesco, sem cachorro e sem gato. Estamos, num universo insano, a nos enlouquecer, num mundo de loucos. E os loucos de hoje em dia não são tais quais os loucos clássicos, os de antigamente, do tempo dos nossos avós, que eram (os loucos, e não os nossos avós) malucos, desparafusados, doidos-de-pedra: são retardados, esquisitíssimos; não têm carisma algum; não são divertidamente extravagantes, malucos-beleza, alegremente tagarelas; são odientos e odiosos, odeiam tudo e tudo querem destruir.
E de que trato, afinal, tu me perguntas. De loucos dos dias que correm e dos de antanho?! Não. Do duplipensar orwelliano. Não foi o George Orwell quem inventou a transmutação semântica espúria (eu gosto desta palavra: espúrio: é tão... tão... sei lá eu tão o quê: eu gosto dela) e criminosa das palavras, mas o fez com tal arte que tal fenômeno associou-se umbilicalmente com o seu britânico nome. Inverteu-se tudo: democracia é, hoje, o governo de um só, que manda e desmanda a torto e a direito e não admite que seja uma objeção às suas vontades intestinais, e não um governo do qual o povo participa, opondo-se-lhe, preferencialmente, e principalmente, de viva voz, aberta, e francamente; e anti-democrático é quem defende a participação do povo na política; e liberdade de expressão não admite liberdade de expressão especialmente se quem dela usa fala verdades verdadeiras; e censura é o mesmo que respeito aos limites da liberdade de expressão desde que quem desta faz uso... Já me entendeste, leitor.
E vamos para o último ponto que apontei no título, pois este artigo já está maior do que eu o pensei de início: um peso, duas medidas.
Um peso e duas medidas é o que se vê nas decisões de autoridades constituídas que, diante de dois casos equivalentes, ao julgá-los julga-os, usando critérios distintos, mal, inocentando, num deles,o que no outro condena, e vice-versa.
Estamos a assistir, na imprensa, a tal fenômeno: a má condição de vida dos yanomamis e a morte de muitos deles durante os anos Bolsonaro recebem da imprensa um tratamento e durante o governo Lula fenômeno equivalente recebe tratamento diferenciado:a imprensa condena o Bolsonaro e inocenta o Lula.
Sigamos: o aumento do preço dos alimentos é ruim se o governo é do Inominável, e bom se é do Éle o governo.
E mais um exemplo: se um homem qualquer xinga uma jovem beldade de esquerda é ele machista e misógino, mas se um homem de esquerda insulta uma mulher de direita é ela o que ele disse que é, sem tirar nem pôr - talvez ela até seja pior, mas ele nada mais disse contra ela porque ele é um cavalheiro.
E conto uma história do balacobaco, para encerrar este artigo: uma senhora, apoiadora do Lula, desacata a polícia judiciária e ameaça pôr em liberdade algum agente químico ou biológico em local público, depõe, assina um documento qualquer e vai-se, leve, livre e solta, para o seu lar, doce lar. E se é um apoiador do, como dizem, Inominável, a quebrar uma janela de um prédio público, é ele condenado a morrer numa enxovia fétida juncada de cadáveres e habitada por uma populosa comunidade de roedores peçonhentos. Se tu, leitor, desejas inteirar-se do interessante caso da mulher, assista, no Youtube, ao vídeo "Eleitora de Lula detida por ameaça terrorista é solta no mesmo dia.", publicado, dia destes, no canal Revista Oeste.
E todas as palavras que estão acima, reunidas, indicam ser o Brasil, de fato, é inegável, uma distopia.
E aqui encerro este artigo, que diz pouco acerca dos pontos no título apontados, mas diz, penso, bem